Revista da Folha

Morar

30/03/2007

Morar Mundo: O homem que retalhou NY

Exposições e livros resgatam o arquiteto que, durante 30 anos, fez e desfez a maior cidade dos EUA

por SÉRGIO DÁVILA

MTA Bridges and Tunels
Mid Manhattan Expressway (projeto), visto do leste do rio Hudson em março de 1959
Mid Manhattan Expressway (projeto), visto do leste do rio Hudson em março de 1959
Robert Moses foi provavelmente o norte-americano mais poderoso de sua época que nunca ocupou um cargo público. Um dos mais polêmicos também. Durante os 30 anos em que exerceu sua arquitetura e urbanismo na cidade mais poderosa do país mais poderoso, mudou sozinho a face de Nova York -para o bem e para o mal. Não fosse por ele, não haveria o Lincoln Center, o Shea Stadium, e a sede mundial da ONU (Organização das Nações Unidas) seria em San Francisco, não em Nova York.


Andrew Moore
Hall de entrada do Sunset Pool and Recreation Center
Hall de entrada do Sunset Pool and Recreation Center
Não fosse por ele, também, e a ilha de Manhattan e o pedaço do continente por onde se espalha o resto da cidade não seriam ziguezagueados por pelo menos 13 importantes grandes vias, entre elas a Staten Island Expressway, nem interligados por pelo menos um túnel, o Brooklyn Battery, e quatro pontes, a mais importante a Verrazano Narrows, que o mundo inteiro vê pela TV pelo menos uma vez por ano, quando um mar de gente atravessa a construção após a largada da Maratona de Nova York.

Ele foi acusado de "desfavelizar" a cidade sem levar em conta a vida das pessoas afetadas por seus projetos. De reimaginar uma Nova York dominada por carros, não por transporte urbano. De destruir quarteirões e bairros históricos inteiros para construir prédios novos que abrigavam o mesmo número de residências que haviam sido demolidas, tudo em nome apenas do "novo". De ser racista.

MTA Bridges and Tunels
Fotocolagem da baía de Nova York com a Brooklin Battery Bridge
Fotocolagem da baía de Nova York com a Brooklin Battery Bridge
Se tivesse feito valer todas as suas vontades, a tradicional Washington Square, no Greenwich Village, aquela do conhecido arco que aparece em nove em cada dez filmes sobre Nova York, teria sido atravessada por uma grande avenida, e bairros como o SoHo e partes de Chinatown, Little Italy e mesmo o Village teriam virado pó para dar lugar à Lower Manhattan Expressway, natimorta.

Andrew Moore
Marine Parkway Bridge
Marine Parkway Bridge
Seja como for, se Nova York tem a aparência que tem hoje, Moses é um dos grandes responsáveis. Desde sua morte, em 1981, aos 92 anos, o urbanista tem sido comparado em influência ao barão Haussman, que remodelou Paris no século 19, e ao papa Sixtus 5º, que repensou Roma 300 anos antes. Seu trabalho passa por novos escrutínios e por um revisionismo ardente que deram em pelo menos três exposições, todas atualmente em cartaz em -onde mais?- Nova York.

Samuel Gottscho
Rotunda do Riverside Park Manhattan em 1937
Rotunda do Riverside Park Manhattan em 1937
Sob o mesmo "chapéu", "Robert Moses and the Modern City -The Transformation of New York" (Robert Moses e a Cidade Moderna - a Transformação de Nova York), e a mesma curadoria, de Hillary Ballon, professora de história da arte e arqueologia da Universidade Columbia, cada exibição toca num aspecto importante da carreira desse judeu de origem alemã nascido em New Haven (Connecticut), que alcançaria sucessivas graduações nas universidades de Yale, Oxford e Columbia.

Andrew Moore
Washington Square Village
Washington Square Village
"Remaking the Metropolis" (Refazendo a Metrópole), que fica no Museu da Cidade de Nova York até o final de maio, é uma reunião de seus trabalhos mais ambiciosos e de maior impacto; "The Road to Recreation" (O Caminho para a Recreação) centraliza as atenções nos parques (mais de 600), praias (apenas uma delas, Jones Beach, acomoda 60 mil pessoas) e piscinas públicas e na trama de avenidas e vias que as ligam e pode ser vista até o final do mesmo mês no Museu do Queens.

Andrew Moore
Morning Side Gardens
Morning Side Gardens
Já "Slum Clearance and the Superblock Solution" (Limpeza das Favelas e a Solução das Superquadras) toca num tópico mais delicado e polêmico, como o próprio título sugere, e encontra guarida na Wallach Gallery da Columbia até o meio de abril. Das três, essa é a menina-dos-olhos da professora Ballon, que assina a organização de um livro de ensaios sobre Moses com seu colega Kenneth T. Jackson, professor de história e sociologia e uma das pessoas que mais estudaram Nova York.

Samuel Gottscho
Asturia Pool Triborough
Washington Square Village
A idéia do livro é ser uma contraposição atual ou um complemento ao que é considerada a biografia definitiva de Moses, "The Power Broker - Robert Moses and the Fall of New York" (O Mediador do Poder - Robert Moses e a Queda de Nova York), de 1974, que valeu o prêmio Pulitzer ao seu autor, Robert Caro, e serviu para desmitificar o homem que é chamado por Lucas Mendes de "faraó" ("Em 30 anos, das décadas de 30 a 50, Robert Moses construiu mais do que qualquer faraó do Egito", escreveu o jornalista brasileiro, um expert na cidade em que vive há algumas décadas).

C.M. Spieglitz
Robert Moses com a maquete da proposta da Brooklyn Battery Bridge, 1939
Robert Moses com a maquete da proposta da Brooklyn Battery Bridge, 1939
É a Caro que Moses responde, quando indagado sobre a diferença entre construir rodovias em terras vazias e no meio da cidade: "A única diferença é que na cidade há mais pessoas atrapalhando o caminho". Em outra frase famosa, sem meios tons, como seus projetos, o urbanista diria ainda que o projeto da avenida que cruzaria a Washington Square foi impedido por "um bando de mães".

A certa altura, o "faraó" tinha 80 mil operários trabalhando para ele. Exercia seu poder por meio de "authorities" (autoridades), entidades que eram um prenúncio das parcerias público-privadas tão em voga hoje em dia, nas quais conseguia ao mesmo tempo passar ao largo das burocracias do poder e levantar os fundos de que necessitava para realizar as obras. Uma dessas "autoridades" persiste até hoje e é responsável pela administração do espaço que um dia foi ocupado pelo World Trade Center.

Não fosse por ele, defendem os professores Ballon e Jackson, Nova York não seria o que é. Sem o poderoso esqueleto criado por Moses e preenchido nas décadas seguintes por um fluxo quase incessante de capital financeiro e intelectual do mundo inteiro, a cidade mais interessante do mundo seria apenas mais uma grande cidade. Chicago, no máximo. Nunca Manhattan.

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