São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001


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HERANÇA
Enquanto a Europa atravessava a "era das trevas", os países da órbita islâmica aprimoravam a filosofia, a medicina, a matemática e a astronomia

Época áurea legou avanços na ciência e na cultura

"Meu querido pai, você me pergunta se deve me trazer dinheiro. Saiba que, quando deixar o hospital, receberei roupa nova e cinco moedas de ouro, o que permitirá que eu não volte a trabalhar tão cedo. Mas você deve se apressar caso ainda queira me encontrar. Estou no serviço de ortopedia, ao lado da sala de operação. Para me achar, após atravessar o portão principal, pegue a galeria sul. Fica aí a policlínica para onde me levaram depois que eu caí. Os doentes são examinados nesse local, quando chegam, pelos médicos assistentes e pelos estudantes. Aos que não precisam ser hospitalizados, é entregue uma receita preparada ao lado, na farmácia do hospital. Assim que o exame terminou, registraram-me e fui levado ao médico-chefe. Depois disso, um enfermeiro me transportou para a seção dos homens, me fez tomar um banho e me deu uma roupa limpa. Então você deve virar a esquerda junto à biblioteca e ao grande anfiteatro onde o médico-chefe ministra seus cursos... Se ouvir música ou cantos através da divisória, adentre a sala. É possível que eu esteja na sala de estar reservada aos convalescentes, onde a gente se diverte com música e livros. Esta manhã o médico-chefe veio, como de costume, fazer sua turnê, acompanhado de seus assistentes e de seus enfermeiros. Depois de me examinar, deu uma ordem ao médico responsável por mim. Este me informou que eu poderia me levantar no dia seguinte e que em breve sairia do hospital. Mas saiba que eu não tenho a mínima vontade de ir embora. Tudo aqui é tão claro e tão limpo!"


PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO

Essa carta foi escrita há cerca de mil anos. As instalações descritas não se encontram em muitos dos hospitais atuais. No século 10, a cidade de Córdoba, na Península Ibérica, possuía 50 estabelecimentos hospitalares. Ao contrário dos hospitais europeus, onde era oferecido conforto religioso mais que tratamento médico, os do mundo islâmico eram vistos como um lugar em que os doentes podiam talvez ser curados.
Escolas de medicina e bibliotecas se ligavam aos hospitais. Os alunos aplicavam o que tinham aprendido na sala de aula no atendimento aos doentes, na ala masculina ou na feminina. No século 11, já havia clínicas móveis, que levavam assistência médica aos que moravam longe ou estavam enfermos demais para ir ao hospital.
No mesmo período, o Cânone (Qanun) de Abu Ali al Hussain Ibn Sina (Avicena) trouxe descrições de doenças e tratamentos. A obra do médico, filósofo, astrônomo, físico, músico e poeta foi usada nas escolas de medicina durante mais de 700 anos.
O uso da anestesia em cirurgias foi observado nessa época, assim como o estudo da ótica. A ciência da visão combinava conhecimentos de disciplinas muito diferentes: a anatomia do olho e do sistema nervoso óptico foi descrita na literatura médica; a psicologia da percepção era uma questão de filosofia; a natureza da luz era abordada pela física propriamente dita. O tratado de Ibn al Haytham -"A Ótica"- foi traduzido para o latim e exerceu grande impacto sobre a ciência européia.
Um dos primeiros tratados farmacológicos foi feito em 760, por Jabir ibn Hayyan, considerado o pai da alquimia árabe. A farmacopéia era extensa e incluía a descrição da origem geográfica, das propriedades físicas e dos métodos de aplicação do que pudesse ser útil ao tratamento. Os farmacêuticos muçulmanos introduziram vários medicamentos na prática clínica, como a cânfora, o sândalo, a mirra, o mercúrio e outros.
No início do século 9º, as primeiras farmácias particulares foram abertas em Bagdá -os preparados eram disponibilizados sob várias formas: pomadas, pílulas, elixires, tinturas, supositórios e inalantes. Na cidade iraquiana, que foi um grande centro civilizatório ao lado de Damasco e Cairo, Ibn Barmak inaugurou o primeiro hospital particular em 803.
Arrazi (conhecido na Europa como Razes) escreveu mais de cem trabalhos científicos, incluindo a primeira avaliação clínica da varíola. O debate em torno da ética médica foi outra contribuição importante de muçulmanos.
Enquanto a Europa atravessava a "era das trevas", os países da órbita islâmica aprimoravam diferentes áreas da ciência.
Produziu-se um conjunto significativo de literatura científica na língua árabe, com livros traduzidos do grego, sânscrito, siríaco e pérsico, além de muitos tratados originais. O islã serviu como uma ponte entre a antiga cultura grega e a chamada Idade Moderna.
Segundo o filósofo palestino Edward Said, "toda a criação de uma retórica científica em ótica, em física e em astronomia, principalmente do século 10 ao século 15, foi invenção dos árabes".
Foram matemáticos árabes que introduziram na Europa os algarismos indianos (também conhecidos como arábicos) e o conceito do número zero, fundamental para chegar aos números negativos. A trigonometria e a álgebra (aljbr) foram desenvolvidas sobretudo por adeptos do islã.
Em 875, Muhammad al Khwarizmi (de onde veio o termo algarismo) utilizou uma letra para representar a incógnita. O uso do "x" vem de "shay" (coisa, em árabe). A classificação de equações segundo seus graus, por Omar Khayyam, em 1131, é outra contribuição matemática.
O desenvolvimento dos astrolábios permitiu a confecção de tabelas astronômicas precisas, necessárias a fiéis que precisavam orar voltados em direção a Meca. Muito antes de Nicolau Copérnico, o astrônomo Abu Reyhan Biruni (973-1048) descreveu o sistema solar com precisão, desafiando os dogmas que faziam da Terra o centro do universo. Abu Nasr al Farabi (872-950), mestre de Biruni e de Avicena, era conhecido como "almuaalem aththani" (o segundo mestre da humanidade -o primeiro era Aristóteles).
No século 8º, muçulmanos estudaram as mecânicas celestes e elaboraram tabelas astronômicas a partir do desenvolvimento do astrolábio. Uma teoria embrionária da gravidade apareceu no Livro da Sabedoria (1121-2).
Muçulmanos conceberam equipamentos para destilação, evaporação e outros processos no século 9º. No século seguinte, a divisão entre animais, vegetais e minerais foi estabelecida. Descreveram-se substâncias como amônia e ácido nítrico, e foi realizada a extração do álcool (do árabe alkuhul).
Todo esse conhecimento transferido de muçulmanos para a Europa foi matéria-prima vital para a revolução científica.
A primeira palavra revelada ao profeta Muhammad, dizem os muçulmanos, foi "Leia" (Iqra'). Entre os ahadith (ditos atribuídos a Muhammad), há vários que incentivam a pesquisa, como "busque o conhecimento do berço até o túmulo" e "a tinta do sábio vale mais que o sangue do mártir".


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