São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001


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ISLÃ POP
Rap norte-americano é território dominado por artistas convertidos que fazem de suas letras um lugar de pregação

Guerrilha urbana ataca com ritmo e poesia


Foi nos subúrbios pobres, onde os islâmicos começaram a pregar durante a Depressão dos anos 30, que o discurso dos muçulmanos e o rap se encontraram; tanto o Harlem quanto o Bronx, os berços do rap, têm mesquitas desde os anos 50, pelo menos


MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Allah, que ouve tudo e tudo vê, sabe que a guerra é inevitável e que eu sou o terror. Quando granadas cruzarem os céus causando pura destruição, queimando completamente a Babilônia, os demônios comedores de animais envenenados saberão que nós -os deuses, os pais da civilização, o homem original, o creme do planeta Terra- somos os escolhidos porque nenhum demônio consegue enganar um muçulmano nos dias de hoje."
Não, a mensagem acima não é uma suma das idéias do terrorista saudita Osama bin Laden. É uma montagem de frases retiradas do disco "Wu-Tang Forever" (1997), do grupo de rap Wu-Tang Clan. Demônios ou comedores de animais envenenados, uma referência aos porcos proibidos pelo islamismo, são formas como eles designam os brancos.
Wu-Tang Clan é o mais radical, mas não é único grupo de rap dos EUA formado por muçulmanos. A lista de rappers que se proclamam muçulmanos é tão extensa quanto os palavrões que eles intercalam nas letras: Public Enemy, Ice Cube, Afrika Bambaataa, Digable Planets, A Tribe Called Quest, Everlast, Gang Starr, Eric B and Rakim, Sister Souljah, Queen Latifah, Brand Rubian, Big Daddy Kane, Poor Righteous Teachers e Nas. Até cantoras mais pop, como Lauryn Hill, se dizem simpatizantes do islamismo.
"No rap americano, os artistas muçulmanos são os mais importantes e os mais influentes", disse à Folha a pesquisadora norte-americana de rap Adija Banjoko, que está escrevendo um livro sobre o tema chamado "A Luz do Oriente: a História da Influência islâmica na Cultura Hip Hop". Segundo Adija, ela própria uma muçulmana convertida, nenhuma outra religião afetou tanto o rap como o islamismo.
Os números ajudam a atestar a idéia de Adija de que o rap cantado por americanos convertidos em muçulmanos é hegemônico hoje: só o Wu-Tang Clan vendeu mais de 30 milhões de CDs pelo mundo. O CD com as barbaridades citadas na abertura desse texto vendeu 3 milhões de cópias no mês de lançamento nos EUA. Superou até Spice Girls.

O rap como propaganda
Com cerca de 6 milhões de adeptos nos EUA, o islamismo é a religião que mais cresce naquele país. Os seguidores norte-americanos não cansam de repetir que essa cifra supera a soma de mórmons, testemunhas de Jeová, adventistas do Sétimo Dia, "quakers" e cientistas cristãos.
O avanço do islamismo nos EUA começou nos anos 60 com um golpe de marketing que se repete até hoje: a conversão de pessoas famosas. O marco zero dessa estratégia talvez seja a adesão de Cassius Marcelus Clay Jr., um dos boxeadores mais mitológicos da história. Em 1965, quando já havia jogado num rio a medalha de ouro que ganhara numa Olimpíada, em razão do crescente racismo nos EUA, ele torna-se Muhammad Ali, ou "o adorado de Allah".
Ali aderiu à Nação do Islã, a mais estridente das facções islâmicas dos EUA naquela época. Foi o próprio Malcolm X, o mais famoso pregador da Nação do Islã, quem converteu Ali.
O radicalismo político que acompanharia certos grupos islâmicos também nasceu com Ali. Em 1966, ele alegou razões de fé para não lutar na Guerra do Vietnã, para deleite dos esquerdistas e fúria dos republicanos.
Quase 30 anos depois, Mike Tyson seguiria o mesmo caminho de Ali. Sua conversão ocorreu na penitenciária, espaço em que os islâmicos têm uma presença tão forte quanto os evangélicos nas prisões brasileiras.
Foi nos subúrbios pobres, onde os islâmicos começaram a pregar durante a Depressão dos anos 30, que o discurso dos muçulmanos e o rap se encontraram. Tanto o Harlem quanto o Bronx, os berços do rap, têm mesquitas desde os anos 50, pelo menos.
Um dos primeiros rappers a entremear citações a Allah com incitamentos à derrubada do poder foram os do Public Enemy, talvez o grupo mais influente na história do rap, ainda na década de 80.
No disco "It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back", de 1988, eles aconselhavam: "Farrakhan é um profeta que eu acho que você deve ouvir".
Louis Farrakhan é o líder da Nação do Islã e organizador da marcha que levou mais de 1 milhão de pessoas a Washington em 1995. Ele sabe perfeitamente que o rap é a melhor forma de propaganda entre os negros pobres: "Um rap é muito mais valioso para vocês do que mil dos meus discursos", disse num encontro de rappers em junho deste ano.

Morte aos brancos
Seria ingênuo imaginar uma unidade no discurso dos rappers ditos islâmicos. Há pacifistas ferrenhos (Afrika Bambaataa), islâmicos que flertam com o marxismo (Digable Planets e seus tributos aos Panteras Negras, grupo esquerdista dos anos 60) e rappers que pregam a supremacia negra, caso do Wu-Tang Clan e Poors Righteous Teachers.
Na década de 80, o discurso radical de certos grupos islâmicos parecia substituir para os jovens a militância de esquerda, praticamente inexistente nos EUA.
Nos anos 90, porém, a ascensão de um subgênero de rap que prega abertamente a violência dos negros contra os brancos (chamado "gangsta") vai desembocar na intolerância, e os rappers ditos islâmicos não ficam incólumes a esse fenômeno.
O discurso do orgulho negro, cuja divisa é uma frase de James Brown dos anos 70 ("Eu sou negro e me orgulho disso"), é substituído pela misoginia, pela pregação da supremacia negra e pelo anti-semitismo.
Os pregadores da supremacia negra são ligados a um grupo islâmico chamado 5% Nação do Islã. Criada em 1964, a facção tem uma mitologia muito peculiar: os 5% se referem aos integrantes do grupo, que se autodenominam "deuses", e se consideram os escolhidos de Allah. Acreditam que Deus é negro e que os negros são os homens originais da Terra. Chamam Manhattan e Brooklyn, respectivamente, de Meca e Medina, as cidades sagradas do islamismo.
O fato de esses rappers serem cultuados tanto nos guetos pobres habitados por negros e latinos e nos subúrbios brancos de classe média é, paradoxal e perturbador, segundo o antropólogo Ted Swendenburg, professor da Universidade de Arkansas.
É paradoxal, nota Swendenburg, porque os jovens brancos estão dançando com um som que prega a morte deles. É perturbador porque revela a incapacidade dos norte-americanos de entender a diferença. O maior sintoma dessa incapacidade, diz Swendenburg, é o silêncio das elites pensantes sobre esse tipo de música.



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