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Gladiador, o ciberépico

Ridley Scott faz cinema do pão e circo


JOÃO BONTURI *
especial para o Fovest Online

O filme tem a fórmula certa para uma grande bilheteria: o herói "do bem", que arrasa quarteirões, a mulher instigadora e sedutora, o jovem imperador "do mal", um velho imperador fisicamente debilitado e duas crianças, uma crucificada e a outra ameaçada em todos os momentos. Esses ingredientes bem concatenados e competentemente dirigidos, causam interjeições de admiração. Aos que costumam chorar, um recado: o final é emocionante e borra até rímel à prova d’água.

No aspecto visual, o filme tende ao ambiente de videogame não só nas cores como em certas sequências de ritmo computadorizado, faltando apenas na cadeira do cinema um mouse com as opções de mais zoom, menos zoom e quadro-a-quadro. O diretor Ridley Scott usa os últimos recursos tecnológicos e o filme deve levar alguns Oscar.

A história contada no filme é uma ficção cuja composição concentra em poucos atores os diversos elementos e indivíduos que coexistiram na mesma época. No ciberépico, os roteiristas editam os personagens. Marco Aurélio, Cômodo e Lucila existiram de verdade; os demais personagens, inclusive Maximus, são fictícios.

Realidade x Ficção

Em termos de comportamento no filme:

Marco Aurélio é o que mais se parece com a realidade histórica; na verdade faleceu de morte natural, e não assassinado por Cômodo, a quem proclamou oficialmente imperador em 27 de novembro de 176.

Cômodo, muito bem interpretado por Joaquim Phoenix, apronta menos do que o verdadeiro, cuja lista de absurdos e abusos tem excentricidades como a mudança dos nomes dos meses do ano para cada um dos seus títulos; a aplicação obrigatória do adjetivo derivado do seu nome, por exemplo: povo comodiano, frota comodiana, exército comodiano, como se tudo existisse por sua graça e mercê; também reivindicou o título de fundador de Roma, por ter reconstruído parte da cidade destruída por um incêndio; ainda assumiu o nome de deuses e se fazia chamar por Júpiter, Marte e principalmente Hércules, sendo representado em mármore com a clava e a pele do leão de Neméia como aquele semideus.

Lucila condensa três mulheres; ela própria, Crispina, esposa de Cômodo, e Márcia, concubina do imperador. Na história real, Lucila conspirou contra Cômodo, foi exilada em Capri e executada por ordem do irmão, no ano 181; Crispina, acusada de adultério, teve fim idêntico em 182; Márcia foi a verdadeira responsável pela morte de Cômodo, que não ocorreu na arena, mas sim numa escola de gladiadores no monte Célio, uma das sete colinas que circundam Roma; ela lhe serviu comida envenenada, mas como o veneno não fez o efeito previsto, o gladiador Narciso o estrangulou em 31 de dezembro de 192.

Maximus é um personagem construído a partir de vários praefectus praetorio, comandantes da Guarda Pretoriana, cuja função era salvaguardar o poder imperial e proteger fisicamente o imperador . Por serem os elementos que com ele se relacionavam diretamente, esses oficiais, de influente papel, eram sempre os primeiros suspeitos de conspiração ou então os mais prováveis no caso de uma adoção. Cômodo mandou executar Paterno, implicado na conspiração de Lucila; Perene, sucessor de Paterno, hostilizado pelo Senado, acusado de traição, foi assassinado com a mulher, a irmã e dois filhos; Cleandro, sucessor de Perene, acusado de especulação pelo povo romano, foi morto e esquartejado pela multidão, com a concessão de Cômodo; o sucessor de Cleandro, Emílio Leto, fez parte da conjuração de Márcia, que liquidou Cômodo. Após a morte do imperador, acaba a dinastia dos Antoninos, o poder não é devolvido ao Senado e a Guarda Pretoriana indica Pertinax como imperador.

O dia-a-dia no império

Dos pontos realmente históricos se destacam, entre outros:

Princípio da adoção - Costume romano de entregar a direção de uma família e no caso dos imperadores, o poder político, a um indivíduo considerado capaz para o exercício dessas funções, em detrimento dos filhos ou parentes naturais. A adoção é consumada diante de um pretor (encarregado da Justiça) em Roma, e nas províncias diante do governador. O ato é feito em três partes: no primeiro, é negado o poder ao pai natural; no segundo, o adotante reivindica como filho aquele que deseja adotar; no terceiro, é transferido o direito de propriedade, o adotado adquire o nome do novo pai, torna-se seu herdeiro e adquire o direito de venerar os deuses domésticos. O poder do adotante não se estende aos descendentes do adotado.

Pão e circo - Durante os espetáculos na arena era costume atirar alimentos para as arquibancadas; o imperador faz o gosto da multidão, que por sua vez se sente poderosa ao determinar o destino dos gladiadores.

O circo como atividade social - O espetáculo com gladiadores é monopolizado pelo Estado a partir de 105 a.C., para que o povo não se desacostumasse das guerras. Poucos não apreciavam as lutas, o que fica claro no filme num diálogo rápido na arquibancada entre os senadores. O patrocínio das lutas dava prestígio popular, daí a vibração com a presença do imperador na arena. As mulheres iam em massa; enquanto as proletárias se contentavam em tocar os gladiadores, as patrícias pagavam importâncias consideráveis para com eles satisfazerem as suas fantasias sexuais. Foi definitivamente proibido em 423 d.C., após o Cristianismo ter se tornado religião oficial.

Ritual da arena - O espetáculo (munus) é precedido de um desfile (pompa) e o promotor do espetáculo (editor muneris) apresenta os gladiadores; na seqüência há o teste da qualidade das armas (probatio armorum) e as trombetas anunciam o combate que é acompanhado de música. Os espetáculos, inicialmente com poucos gladiadores, no auge de Roma transformaram-se em verdadeiras batalhas, às vezes com até 300 participantes.


Quadro que inspirou Ridley Scott
Saudação - Ave Caesar! Morituri te saludam (Salve Cesar! Aqueles que vão morrer o saúdam). Os combates entre gladiadores começaram nos funerais, onde se lutava até a morte. Os romanos acreditavam que os morituri iam servir o defunto ilustre na vida eterna como criados. O diretor Ridley Scott foi influenciado pelo quadro Pollice Verso (Thumbs Down) de Jean-Léon Gérôme (veja acima), e reconstituiu o ambiente retratado, inclusive no traje de um dos gladiadores. O quadro está no Phoenix Art Museum e descreve a cena vista da arena, onde um triunfante gladiador, com o pé sobre a vítima caída, olha para o público e recebe a mensagem para matá-la. À direita do quadro é possível ver as virgens entusiasticamente virando o dedo polegar para baixo (thumbs down), selando o destino do perdedor.

Culto familiar - Entre as divindades pertencentes aos rituais familiares estavam os manes, gênios relacionados com o culto dos mortos. A invocação dos manes era uma maneira de satisfazer a esses espíritos. Há uma cena em que Juba pergunta a Maximus o que ele havia conversado com os familiares mortos.

Ideal de simplicidade - Os romanos sempre evidenciaram o amor à terra, e intitulavam-se como um povo de agricultores. Num diálogo entre Maximus e Marco Aurélio, quando o imperador pergunta o que ele deseja, Maximus fala da família e da propriedade rural.

Adivinhação - Em várias cenas que antecedem as lutas, Maximus pega um punhado de terra; através da textura, temperatura e umidade interpreta o que pode ocorrer em relação ao momento. Os romanos possuem vários deuses associados ao solo. Na religião romana existem os auspícios, os augúrios e outras formas de adivinhação.

Conflito entre o imperador e o senado - Marco Aurélio passa a maior parte do seu governo fora de Roma, em campanhas militares por diversos pontos do império. Enquanto isso, cresce a centralização da burocracia imperial, são colocados juízes itinerantes na Itália, o que naturalmente incomoda o senado, instituição na qual se concentravam os donos das maiores fortunas que nele defendiam os seus interesses. A constante presença de Cômodo em Roma desencadeia uma pressão senatorial; o imperador desvairado e desequilibrado apela para o autoritarismo, precipitando assim o seu final.

Suborno - É discretamente abordado por Cômodo em sua ida ao Senado, quando indaga se a fidelidade dos senadores custou caro. A corrupção, uma constante em Roma, ao que parece era uma questão da quantidade de sestércios (moeda romana de prata) , pois raros eram os honestos, e comuns os que se vendiam consecutivamente.

Escravidão - No Direito Romano os escravos são classificados como instrumentum vocale (objeto falante), diferenciando-se dos animais, instrumentum semivocale, (objeto que emite sons). Desta forma, são mercadorias que podem ser compradas, trocadas ou vendidas. A escravidão é hereditária e os senhores têm direito sobre a vida dos escravos.

À sombra de Spartacus


Kirk Douglas, em "Spartacus"
Além dos aspectos ligados ao passado romano, o diretor Ridley Scott não esconde a sua admiração pelo épico Spartacus (1960), dirigido por Stanley Kubrick, com um elenco all star encabeçado por Kirk Douglas, Jean Simmons, Lawrence Olivier, Charles Laughton, Peter Ustinov, e Tony Curtis.

Como exemplos dessa referência podem ser relacionados:

  • A escola de gladiadores , embora em Spartacus as cenas sejam mais detalhadas e demoradas.

  • A amizade entre Maximus e o negro Juba, clonada da entre Spartacus e Draba.

  • O ato de Maximus poupar o gladiador "Tigre", idêntico ao de Draba em relação a Spartacus.

  • O senador Gracchus, defensor das instituições republicanas, tem um papel semelhante ao Gracchus vivido por Charles Laughton em Spartacus.

  • Final fictício semelhante - Maximus e Cômodo se enfrentam na arena, ocorrendo a morte de ambos; Spartacus e Antoninus são obrigados pelo general Crassus a lutar até a morte, Spartacus mata Antoninus, mas é crucificado em seguida; sendo assim, ambos morrem. Maximus e Antoninus são historicamente fictícios, Cômodo e Spartacus reais.

    Mesmo com essas semelhanças, Gladiador não é um remake de Spartacus, inclusive são cronologicamente distantes; o primeiro se passa durante o Império Romano, no século 2 depois de Cristo, e o segundo durante a crise da República, entre 73 e 71 antes de Cristo. Gladiador nunca será um filme de importância na história, como foi Spartacus, que despertou a curiosidade do então presidente John Kennedy, e colaborou decisivamente para enterrar o macartismo, uma triste página da Guerra Fria para Hollywood e para os Estados Unidos, porém ambos, de gerações distintas, colaboram para despertar o interesse pelo estudo da história.

    * JOÃO BONTURI é professor de história do colégio Singular e do cursinho Singular-Anglo. Escreva para o professor.


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    Duração: 2'27''

    28k; 56k; alta velocidade

    Leia a sinopse do "Gladiador"
     
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