07/09/2002
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06h12
"Cidade de Deus" questiona produção nacional
JOSÉ GERALDO COUTO colunista da Folha
"Cidade de Deus" é um filme-marco não apenas pela discussão que suscita em torno de seus temas (favela, violência, juventude, drogas), mas por colocar em debate -e de certo modo em crise- o próprio cinema brasileiro.
Muitas das críticas que a fita de Fernando Meirelles e Katia Lund vem recebendo são legítimas.
Do ponto de vista político, por exemplo, pode-se questionar a apresentação da favela como um espaço de violência fechado em si mesmo, como se a droga fosse produzida e consumida toda lá dentro e o resto da sociedade não tivesse nada a ver com o tráfico.
Invertendo o dito popular, o filme parece dizer: "Eles são pretos, eles que se desentendam". Nesse sentido, o contraponto natural seria "O Invasor", de Beto Brant, cuja conclusão é: "Estamos todos no mesmo barco".
Do ponto de vista sociológico, pode-se condenar -como a antropóloga Alba Zaluar- a proporção falsa entre negros e brancos na favela. Do ponto de vista moral, a exposição de crianças a situações de extrema brutalidade.
Pode-se ainda criticar a adoção de fórmulas narrativas do filme de ação americano, destinadas a garantir a identificação do espectador com os bandidos "do bem", contra os "do mal".
O que não se pode, porém, é dizer que se trata de um filme ruim, e muito menos rejeitá-lo em bloco sob o argumento de que estetiza a miséria, configurando uma "cosmética da fome".
Esse rótulo foi um achado da pesquisadora Ivana Bentes para caracterizar uma leva de filmes edulcorados e publicitários que passeiam como turistas pelas mazelas sociais do país. Mas hoje a expressão tende mais a esconder do que a revelar os traços da produção cinematográfica recente.
"Cidade de Deus", a despeito de sua composição, digamos, "estilosa", tem pouco a ver com essa estética (ou cosmética).
Visto sem antolhos, é um filme de vigor espantoso e de extrema competência narrativa. Seus grandes trunfos são o roteiro engenhosamente construído (sim, à maneira americana, sem gorduras nem pontos sem nó) e a consistência da "mise-en-scène".
Não há, que eu me lembre, uma única cena frouxa ou malfeita em "Cidade de Deus", nem tampouco um diálogo que soe pobre ou artificial. Se existe alguma redundância e autocomplacência, ela está na narração em "off".
A atuação do elenco como um todo eleva a interpretação cinematográfica no Brasil a um novo patamar. É a culminância de um processo iniciado em "Pixote" e que teve outro momento alto em "Bicho de Sete Cabeças". Nada a ver com teatro ou televisão.
Nesse aspecto ocorre algo curioso. Ao constituir seu elenco com semi-amadores oriundos das favelas, Meirelles incorporou ao próprio modo de produção de "Cidade de Deus" algo que é cobrado do filme: a apresentação de alternativas positivas para os jovens das comunidades faveladas.
Todas essas conquistas -sem falar da hábil assimilação de técnicas da publicidade e do videoclipe com propósitos narrativos essencialmente cinematográficos- correm o risco de ser obscurecidas por uma reação defensiva e ressentida, armada com o slogan "cosmética da fome".
Cidade de Deus Direção: Fernando Meirelles Com: Matheus Nachtergaele, Seu Jorge e grupo Nós do Cinema Onde: nos cines Belas Artes/Sala Villa-Lobos, Espaço Unibanco 1 e circuito
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