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20/10/2000 - 15h25

'O Homem Sem Sombra' mostra mundo povoado por imagens vazias

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da Folha de S.Paulo

É fácil não gostar de "O Homem sem Sombra". Pesam contra o novo filme de Paul Verhoeven o tema batido, o roteiro pouco inspirado na segunda metade, atores mal escalados ou ainda que parecem não se interessar pelo que fazem.

As virtudes são menos evidentes. Já houve quem condenasse o filme como um show de efeitos especiais. De fato, tanto os efeitos como o show estão lá, claros o bastante para que se possa filiá-lo à mais tradicional corrente do cinema, aquela que o faz sucedâneo e herdeiro do circo.

Nesse sentido, é bem compreensível que sobretudo os intelectuais se desinteressem pelo que vêem. Estamos na esfera do cinema como puro espetáculo, diversão eminentemente popular, cuja decadência é sensível há pelo menos duas décadas.

A história é de uma irrelevância quase tocante. Um cientista brilhante (Kevin Bacon) descobre a fórmula da invisibilidade. Mais em função de seu brilho do que da descoberta, esse homem se julga Deus. Mas ele está longe de ser Deus para a antiga namorada e ainda hoje colaboradora (Elisabeth Shue). Com todo ânimo do mundo, ela prefere os braços de outro rapaz da equipe.

Rejeitado, esse autodenominado Deus se vale do poder da invisibilidade para descarregar seu ciúme desmedido. Breve, estamos diante de um caso clássico de cientista louco.

Se "O Homem sem Sombra" me parece defensável é, em primeiro lugar, porque o cinema não é uma arte do roteiro, mas da imagem. E, naquilo que nos mostra, este filme traz a marca de um cineasta invulgar.

Existe ali, antes de tudo, o homem, cuja invisibilidade é relativa, já que a maior parte do tempo usa uma máscara que o torna um contorno vazio. Um homem mais oco do que invisível. Esse demiurgo julga-se no direito de determinar, entre outras, quem pode e quem não pode viver.

A imagem vazia tem sido um tema frequente de Verhoeven, em geral pouco compreendida (ou aceita). Foi assim com "Showgirls", onde se tomou por "corpo pornográfico" um corpo (o da corista) cuja nudez funcionava, paradoxalmente, como armadura (não era muito diferente do corpo de "Robocop", filme também realizado por Verhoeven). Foi assim com "Tropas Estelares", embora por outros motivos. Ali confundiu-se com filiação nazista um filme que se opunha claramente ao absolutismo da globalização.

O que tento dizer, em suma, é que os filmes de Verhoeven prestam-se ao fracasso neste tempo em que o cinema trocou sua filiação circense pela arte. Pois não são filmes para pensar, mas para ver. Não são filmes de história, mas de imagem; nem de signos, mas de coisas.

O holandês Verhoeven é hoje um dos pilares da tradição americana, que é menos narrativa e mais poética do que parece.

Ambos fazem filmes que solicitam nossa capacidade de ver as imagens, de recebê-las como expressão de um estar no mundo, do qual seus filmes tentam dar conta.

É um cinema, no mais, crítico, pois trabalha das imagens aquilo que nelas é vazio, ausência. Isto é, aquilo que se esconde no visível justamente por se exibir sem pudor. Nesse sentido, "O Homem sem Sombra" é uma variação belíssima de "Showgirls". Se lá a exibição ostensiva do corpo funciona como escudo, aqui sua ocultação expõe o triunfo cientificista nesta virada de milênio.

Também não é por acaso que voltamos ao tema caduco do cientista louco, que teve seus dias de glória nos filmes dos anos 30. O cientificismo atual não terá um quê de darwinismo social, que supõe a sobrevivência do mais forte? E nesse sentido não responde à organização de poder no mundo globalizado? É isso que mostra "O Homem sem Sombra": a imagem de um mundo povoado por imagens vazias (as da TV, por exemplo), de uma perversidade sem par, pois afirmam trazer a verdade do mundo, quando apenas constroem uma imagem desse mundo.
 

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