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28/04/2001 - 04h36

Livro: Narrador de Hammet age como uma câmera de cinema

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JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando foi indicado ao Oscar de roteiro por "O Falcão Maltês" (chamado no Brasil de "Relíquia Macabra", 1941), John Huston disse que havia apenas mandado a datilógrafa chamar de "cenas" os capítulos do livro de Dashiell Hammett em que o filme se baseava.
Claro que Huston estava exagerando (na verdade, o filme é uma espécie de síntese ilustrada do romance), mas sua brincadeira diz muito sobre o método narrativo de Hammett (1894-1961).
O narrador de "O Falcão Maltês" age como uma câmera de cinema.
Sem se distanciar do protagonista -o detetive Sam Spade, de San Francisco-, tem uma extrema mobilidade, mas não é onisciente. Só comunica ao leitor o aspecto externo dos personagens e ações, ou seja, só aquilo que pode ser visto ou ouvido.
Essa espécie de hiperobjetividade confere aos eventos narrados uma presença imediata, quase brutal.
As mudanças de ponto de vista (semelhantes à decupagem do filme), os diálogos crus, cheios de gíria, e o ritmo ágil, pontuado por elipses, são outros procedimentos narrativos que aproximam "O Falcão Maltês" do cinema.
Considerado uma das obras-primas de Hammett (ao lado de "A Chave de Vidro" e "A Ceia dos Acusados") e a quintessência da chamada "hard-boiled fiction" ("ficção dura"), "O Falcão Maltês" é um texto que pede para ser filmado.
Não por acaso, a versão de Huston já era a terceira, desde que o livro fora publicado em 1930, depois de serializado em cinco partes na revista "Black Mask". As adaptações anteriores haviam sido feitas por Roy del Ruth, em 1931, e William Dieterle, em 1936, esta última com o título "Satan Met a Lady".
Mas foi o filme de Huston, estrelado por Humphrey Bogart, que melhor captou a complexidade moral do protagonista e o caráter movediço do submundo em que ele transitava. Tornou-se, assim, o protótipo do "film noir" norte-americano.
"O Falcão Maltês", o livro, conta uma história repleta de reviravoltas e povoada de personagens esquivos, movidos pela cobiça e pela traição.
O detetive Sam Spade é contratado por uma mulher misteriosa e acaba se vendo em meio a uma busca insana por uma suposta relíquia histórica de valor incalculável: uma estatueta de ouro, cravejada de pedras preciosas, que teria sido dada como tributo ao rei da Espanha no século 16 por cavaleiros da ilha de Malta. O tal falcão maltês do título.
Mas, por trás da complexidade de seu mecanismo, trata-se de uma fábula bastante simples, que fala sobre o que há de vão na ambição humana e sobre a tensão, em cada indivíduo, entre o desejo e a moral.
Ao introduzir, em "O Falcão Maltês", o personagem do detetive Sam Spade (que apareceria posteriormente em alguns contos do autor), Hammett deu à cultura norte-americana um de seus heróis mais característicos: durão, astuto, cínico, ferozmente individualista, movendo-se à margem do Estado e das instituições, no fio da navalha entre a lei e o crime, mas fiel a um rígido código ético pessoal.
Em torno desse herói ambíguo e irredutível, o escritor pintou de modo vívido um mundo feito de sombras e ameaças, de homens corrompidos e mulheres tão sensuais quanto traiçoeiras.
Um mundo que Hammett conheceu por dentro durante os sete anos em que trabalhou como detetive para a agência Pinkerton e que é o avesso do sorridente "american way of life".
A ironia é que o homem que criou a "literatura dura" e assentou as bases para o surgimento do cinema "noir" achava isso pouco. Menosprezando o veio que o consagrou, Hammett parou de escrever histórias policiais em meados dos anos 30.
Tentou sem sucesso elaborar romances mais "literários", abandonados sempre incompletos, trabalhou como roteirista para Hollywood e dedicou-se à militância política de esquerda, o que lhe valeu seis meses de prisão em 1951, por se recusar a denunciar companheiros, na época da "caça às bruxas" macarthista.
Quando morreu, de câncer, em 1961, morava recluso numa cabana. Mas o retrato que pintou da América em obras como "O Falcão Maltês" segue cada vez mais vivo e atual.

O Falcão Maltês
The Maltese Falcon
Autor:
Dashiell Hammet
Tradutor: Rubens Figueiredo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (293 págs.)
 

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