Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
07/08/2001 - 04h44

Escritor recriou a vida social baiana

Publicidade

ANTONIO RISÉRIO
especial para a Folha de S. Paulo

Ainda jovem , Jorge Amado viu a velha Sé da Bahia, tratada como trambolho pela elite e pela imprensa locais, ser demolida a golpes de picaretas. E reagiu. "Dos púlpitos dessa igreja o padre Antonio Vieira pronunciara com sua voz de fogo os sermões mais célebres de sua carreira", escreveu, protestando.

Corria à boca pequena que o então cardeal embolsara uma bela gorjeta para permitir que uma empresa de transportes urbanos derrubasse o templo. Revoltado, Jorge partiu para o ataque, elogiando os "índios patriotas" que, nos primeiros dias coloniais, haviam feito uma "experiência culinária" com o bispo Sardinha. Mas para acrescentar que, em pleno século 20, baiano já não gostava de bispo nem como alimento.

Na montanha-russa de altos e baixos que era Jorge Amado, aí está, certamente, uma nota que merece ser guardada. Mas ela já diz respeito à sua vivência da cidade da Bahia, um dos pólos da obra amadiana.

A peripécia existencial do escritor começa antes disso, na região do cacau, seu outro pólo romanesco. Sim. Filho de um dos desbravadores da região cacaueira, Jorge Leal Amado de Faria nasceu em 1912 numa fazenda no sul da Bahia, eixo Ilhéus-Itabuna, cuja vida social ele recriaria literariamente, numa série de romances. E foi daí, da chamada "região grapiúna", que ele partiu para Salvador e, em seguida, para o Rio de Janeiro, iniciando sua vida político-cultural.

Vêm então os primeiros livros, a militância comunista, os casamentos -primeiro, com Matilde Garcia Rosa, com quem teve uma filha, morta aos 14 anos de idade; depois, com a escritora Zélia Gattai, que lhe dá mais dois filhos, João Jorge e Paloma (esta assim batizada em homenagem ao amigo Picasso, companheiro seu de exílio francês).

Foram tempos difíceis aqueles, principalmente após a implantação da ditadura do Estado Novo. Entre outras coisas, Jorge é preso no Rio e em Manaus, refugia-se na Argentina, passa por um confinamento em Salvador, vê "Capitães da Areia" ser apreendido e queimado em praça pública por determinação do governo. Até que, com a redemocratização de 1945, é eleito deputado federal por São Paulo, pela legenda do PCB.

Assembléia Constituinte
Mas a alegria dura pouco. O PCB é proscrito, Jorge tem o mandato cassado. Toma o rumo de Paris, muda-se depois para Praga, corre e percorre o mundo comunista. Recebe o Prêmio Stálin, pelo conjunto da obra, que aliás é editada na então União Soviética com tiragens superiores a 1 milhão de exemplares.

E, finalmente, em 1952, retorna ao Brasil. Já é um escritor de sucesso internacional -graças ao poder da máquina publicitária comunista, sim, mas também graças ao fascínio que sua obra exerce, como se pode ver, por exemplo, pelo impacto de "Jubiabá" sobre Albert Camus.

E ele vai consolidar definitivamente a sua fama mundial com a publicação de, entre outros, "Gabriela, Cravo e Canela" e "Dona Flor e Seus Dois Maridos". Agora, não há mais retorno. Mas com um dado que é bem mais comum do que o público costuma imaginar: ao tremendo sucesso popular, com livros traduzidos em dezenas de idiomas, correspondem as inúmeras restrições da crítica.

E aqui tenho que fazer uma confissão. Em suas adolescências, alguns escritores baianos, nascidos na década de 1940/50 para cá, criticaram e combateram Jorge Amado -e eu não fugi a essa regra contestadora.

Diversas coisas me levavam a discursar contra o autor de "Mar Morto": as ligações de Jorge com o que eu achava que era o que havia de pior na esquerda brasileira, sua defesa do stalinismo, seus excessos de baianismo, sua literatura pouco ou nada rigorosa para um leitor educado em Lorca, Joyce, Pound, Rosa e poesia concreta, seu gosto pela "política literária", sua facilidade para fazer concessões, seus elogios indiscriminados, às vezes cobrindo de belas palavras um punhado de canalhas, cretinos, cafajestes e subliteratos nascidos na Bahia, ou fora dela.

Mantenho ainda hoje, no essencial, essas restrições -e Jorge sabia disso. Mas fui aprendendo a admirá-lo, no plano pessoal, e a me abrir para a sedução de sua narrativa. Há motivos. E muitos.

Jorge, aliás, era um bom crítico de si mesmo. Boa parte das críticas feitas à sua obra coincidem com (ou repetem) o que ele dizia de si próprio. Jorge sabia (e declarava publicamente) que não era um intelectual, um escritor culto, um artífice da prosa estética, um homem que tinha um domínio rosiano ou cabralino da palavra. Pelo contrário, era um narrador à solta, muitas vezes desleixado, escrevendo de um modo oleoso e esparramado como as ondas gordas da Bahia de Todos os Santos.

Era um contador de histórias, como gostava de dizer, deixando o texto escorrer à vontade, alheio às exigências de um verdadeiro artesanato linguístico.

Ainda assim, alguns de seus livros estão, sem dúvida, entre os que a literatura brasileira produziu de melhor. "Mar Morto", por exemplo. Ou "Gabriela" e "Tocaia Grande". Mas, sobretudo "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água". Neste caso, uma prosa ao mesmo tempo limpa e deliciosa, concisa e fluente.

Mas é também verdade que a obra amadiana raramente é examinada com um olhar crítico digno desse nome. A enxurrada de elogios banais tem sua contraparte em ataques estapafúrdios e até mesmo ridículos. Ora Jorge é exaltado por sua inigualável "força" (e Álvaro Lins já dizia que essa é uma questão de atletismo, e não literatura), ora é desancado pelo subjesuitismo acadêmico em termos de um suposto "uso imotivado" do palavrão, como se o nosso povo não fosse o que é -ou como se o romancista não fosse filho de antigas cantigas de maldizer e do verso destabocado de Gregório de Matos.

De resto, penso que a virtude central de Jorge (ainda que também esta virtude traga vícios e defeitos) foi mergulhar fundo na vida de sua gente. Por esse caminho, ele chegou à questão sociorracial brasileira e às manifestações culturais populares de extração negro-africana -em especial, ao candomblé, do qual se tornou "ministro" de Xangô, ostentando o título de Obá Arolu.

Aqui, os orixás escreveram certo por linhas tortas: transformaram em adepto e glorificador o comunista que viera pretendendo se utilizar deles para fazer pregações milenaristas. Jorge foi, assim, fundamental para que a questão negra se firmasse no imaginário brasileiro.

Um "cavalo de santo", como se diz. Mas não da perspectiva da guetificação ou do apartheid multiculturalista, e sim procurando encarar a riqueza da realidade de nossa mestiçagem genética e simbólica.

É claro que nada disso abole seus grandes equívocos políticos e culturais, nem suas limitações intelectuais e artísticas. A sua complacência final diante de tantos absurdos. Talvez tenha razão Rachel de Queiroz, e em termos mais amplos do que imaginou, quando disse que Jorge se tornou em escravo do êxito que conquistou. Mas também não posso deixar de reconhecer que há uma alta dose de verdade no que dele disse o cubano Severo Sarduy: "Sua obra tem um aspecto irrefutável, incontornável: sua extrema transparência em face da linguagem popular de sua cidade e de seu país. Não conheço nenhum caso de identificação maior entre um homem e uma cidade, um homem e uma língua. Amado conseguiu compreender, falar e rezar na língua de seus ancestrais. Isso vale mais que tudo".

Antonio Risério é poeta, ensaísta e tradutor, autor, entre outros, de "Textos e Tribos: Poéticas Extraocidentais nos Trópicos Brasileiros" (Imago, 93), "Avant-Garde na Bahia" (Instituto Pietro Bardi e Lina Bo, 95), "Fetiche" (FCJA, 96) e "Oriki Orixá"(Perspectiva, 96)

Leia mais notícias sobre a morte de Jorge Amado
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página