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07/08/2001 - 14h17

Não faça literatura, escreva com o coração, aconselhou a Zélia Gattai

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da Folha Online

Jorge Amado sempre foi um homem com muitas histórias para contar, distribuídas ora em suas obras, ora em "dedos de prosa". Foram 88 anos de vida, 56 deles ao lado da também escritora Zélia Gattai, 85, sua fiel companheira.

Zélia é o maior arquivo vivo da história de Jorge Amado, quem acompanhou cada detalhe de sua vida. Em maio passado, ela falou sobre o processo de criação literária na 10ª Bienal do Livro do Rio de Janeiro, e a repórter Ellen Soares, que fazia a cobertura da feira na época, gravou sua conversa com o público.

As afirmações de Zélia não foram publicadas na época, mas ficaram arquivadas no banco de dados da Folha Online.

Zélia Gattai se transformou em escritora por acaso, como ela própria conta. Um acaso, claro, influenciado pelo marido. Suas histórias são emocionantes e mostram que a relação entre os dois inspira um romance.

Acompanhe trechos retirados da entrevista:

O CASAMENTO - "Há 56 anos sou casada com Jorge amado e há 56 anos acompanho e o ajudo a digitar (agora, uso o computador), vendo, manejando e aprendendo com aqueles originais. Jorge Amado sempre afirmou que um personagem precisa ter vida própria. O escritor cria, dá a ele algumas características próprias, e daí o personagem tem que andar por suas pernas, senão não terá nem sangue nem ossos, será um fantoche."

DONA FLOR - "Quando Jorge Amado já estava terminando 'Dona Flor e Seus Dois Maridos', ficou com uma preocupação danada e disse: como é que vai terminar isso? Dona Flor com dois maridos... é impossível porque ela é uma pequena burguesa, cheia da preconceitos. Ela não vai ficar contente, não posso dar esse desfecho. O jeito é que ela morra, quando o Vadinho chegar, ela ficará tão emocionada e morrerá. Então perguntei: mas ela vai morrer? E Jorge respondeu: parece que sim. E ele continuou: mas ainda vou pensar nesse assunto.

De madrugada, acordei com ele [Jorge Amado] datilografando e eu deixei ele lá, tranqüilo. De manhã cedo, quando acordei, ele me disse: "sim senhora, Dona Zélia, que amiga descarada, hein?". Aí eu disse: qual é a amiga descarada que eu tenho? A Dona Flor, respondeu. Ela chamou o Vadinho e ficou contentíssima. Ela quer ficar com os dois, e terminei o livro.

Eu perguntei: mas ela não ia morrer? Então Jorge disse: isso seria um truque e eu odeio truques no romance [quando o escritor está com problemas para concluir a história e a liquida matando personagens]. Isso não é jeito, não pode ser isso eu não gosto, o truque diminui o romance.

E assim nasceu o final de 'Dona Flor', ela ficou com os dois maridos. Mas que ela é descarada, é."

LIÇÃO COM SARTRE - "Escrevi meu primeiro livro aos 63 anos ['Anarquistas Graças a Deus', publicado em 1979]. Até então, nunca tinha escrito. Minha mãe sempre disse que era uma menina que nasci com uma estrela, e ela tinha razão. Antes de começar a escrever recebi duas aulas: a primeira lição, de Jean Paul Sartre, que estava fazendo uma viagem pelo Brasil, e eu e Jorge Amado estávamos acompanhando. Meu filho João Jorge, então com 12 anos, era estudante do colégio. Lá existia um jornalzinho e os coleguinhas do colégio acharam que ele deveria entrevistar o Sartre.

Ele chegou todo acabrunhado em casa e me contou: 'imagine se vou entrevistar o Sartre... eu não, todos os jornalistas já perguntaram tudo, ele não tem mais nada para responder'. Então eu disse: mas eu acho que tem, sim.

Nesse momento, o Sartre chegou em casa e eu expliquei tudo. O Sartre disse a ele: você pode fazer uma entrevista comigo porque vai me fazer perguntas que nunca ninguém fez, perguntas de um menino de 12 anos. Pergunte se eu gosto de tomate e vou te responder que não gosto muito: prefiro ovo frito'. Daí o João ficou meio ressabiado, achando que ele estivesse gozando dele. Sartre prosseguiu: 'uma pessoa só pode perguntar a outra o que ela conheça e compreenda. Você não vai falar de existencialismo, Freud, porque você não sabe nada disso. Você tem que escrever e fazer alguma coisa de acordo com o seu conhecimento. Você e qualquer pessoa'.

O Sartre foi embora e eu perguntei: João, você vai fazer? E ele, 'eu não. Imagine se eu vou contar no colégio que ele não gosta de tomates...' Então eu insisti: mas isso é uma coisa tão fácil, ele explicou tão bem, você pode fazer sim. E João respondeu: 'se é tão fácil, porque você não faz?'. Ele me disse isso porque tinha conhecimento que a Lucy, na ocasião mulher do Adolfo Bloch, tinha sugerido que eu entrevistasse Sartre e a esposa para a 'Jóia', revista que dirigia e saía junto com a 'Revista Manchete'. Eu que já tinha respondido que fotografias eu poderia dar, mas escrever não, porque não sabia. Depois da provocação do João, decidi fazer. A reportagem, com seis páginas, foi publicada na revista Jóia. Essa foi a primeira experiência."

CONTADORA DE HISTÓRIAS - "Eu sempre fui contadora de histórias. Sou de uma época em que não havia televisão, rádio ou cinema mudo. Não havia nada de divertimento para crianças. Bom mesmo era ouvir histórias e eu me habituei a isso. Gosto de histórias até hoje como vocês estão vendo [se dirigindo à platéia do Café Literário da Bienal do Livro do Rio], estou contando um bocado delas. A minha fama de contadora de histórias correu e, uma vez, acompanhando Jorge em uma conferência, fui convidada para contar histórias num colégio. Jorge me perguntou o que eu ia contar e respondi que iria inventar na hora. Ele exclamou: 'mas menina, você não tem jeito'. Eu falei: vou contar histórias de índio, em francês claro, que era a língua dos habitantes da ilha. Foi um sucesso."

A ESTRÉIA - "Meu caso era contar histórias, não tinha nenhuma experiência em escrever. Das histórias que eu contava, minha filha Paloma, quando menina, gostava muito de uma sobre disco, e, anos mais tarde, ela me pediu: 'mãe, escreva a história do disco para a Mariana e a Cecília, minhas netas'. Eu disse que não, não vou escrever. Quem escreve nessa casa é seu pai. E ela insistiu: escreva com as suas palavras. Eu escrevi, pensei que gastaria três laudas, já tinha escrito 15 e ainda não tinha escrito nem metade do que queria dizer."

JORGE AMADO, A INFLUÊNCIA - "Criei coragem, né, porque mostrar pra Jorge Amado não é brincadeira: tem que ter um certo respeito, né?! Cheguei a ele e disse: leia isso e não precisa dizer nada, e saí picada. 'Vem cá Zélia, senta aqui', ele disse. 'Olha, essa história que você está escrevendo eu conheço e já ouvi você contar várias vezes. Mas você tem muitas histórias pra contar, é uma menina que teve uma infância riquíssima, foi filha de anarquistas, vivendo no meio tantos imigrantes, de todas as raças. Você assistiu à criação de São Paulo, viu o primeiro arranha-céu da cidade, os primeiros automóveis. Você tem tanta história pra contar... Escreva, faça um panorama da época e você poderá fazer um livro escrito de dentro para fora'. E ele acrescentou: 'agora vou te dar um conselho, não procure fazer literatura. Você não é literata, você é uma pessoa simples, que escreve com o coração. Tudo o que escreveu aqui é verdadeiro e agradável. Não mude não, você vai escrever um livro do jeito que você escreveu essas 15 páginas'. Foi assim que nasceu 'Anarquistas Graças a Deus', e essa foi a minha grande aula."

NÃO SE META NA VIDA DOS OUTROS - "Eu estava escrevendo o romance ['Crônicas de uma Namorada'] e o Jorge de longe... espiando. Eu disse: estou escrevendo um romancinho e ele. muito desconfiado. Eu fui ficando muito calada e ele perguntou: 'você está com algum problema?' Estou, estou mesmo, respondi. Você imagine que aquele personagem, o rapazinho, está avançando o sinal. Está passando a mão na menina (a prima), está fazendo coisas que não deve, e acho que vou cortar as asas dele, afirmei. Aí Jorge me disse: 'não corte não. Não corte as asas dele de jeito nenhum'. Por que? E Jorge interrogou: 'e a menina?'. A menina... está adorando, está gostando, falei. E ele completou: 'está gostando é, que ótimo. Então vou te dar um conselho, não se meta na vida dos outros'."

Zélia Gattai, em maio, já havia escrito cerca de cem páginas do seu novo livro, "Código de Família". Na Bienal, ela lançou "Jonas e a Sereia", uma história de amor entre uma "mulher-peixe" e um pescador.

NOVO LIVRO - "Eu digo que é infantil de 8 a 80 anos. É uma história que deixou a minha filha Paloma um pouco preocupada: 'como pode ser um peixe e um pescador...?'. Então respondi: daí nasce a sereia, que é meio mulher e meio peixe. E daí é isso, o amor. E ela continuou: 'você não vai fazer um pornô infantil?'. Mas eu me saí muito bem, fiz uma coisa linda."

JORGE AMADO, PARTE DAS HISTÓRIAS - "A história se passa na Bahia e a sereia é Iemanjá. O único problema que tive foi conseguir encaixar o nome de Jorge Amado, como costumo fazer em todos os meus livros. Mas encaixei, porque quem conta a história é uma professora, e quando os alunos, incrédulos diante do chamego do peixe com um homem, perguntam a ela: 'Mas professora, por favor, então um peixe pode se enamorar de um homem e um homem pode ficar apaixonado por um peixe?'. E a professora respondeu: 'li num livro, já faz tempo, de um certo escritor baiano por demais conceituado, homem de gabarito, essa frase que aqui explico e vocês não devem esquecer: para quem ama de verdade, o impossível não há'. E assim ele entrou na história."

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