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08/08/2001 - 05h09

Carlos Heitor Cony: Amado de todos os santos

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CARLOS HEITOR CONY
da Folha de S. Paulo

Ele foi o único habitante deste planeta que conseguiu acreditar com a mesma sinceridade em Marx e na Menininha do Gantois. Muitos não admitem essa intimidade de Jorge com o marxismo, ao qual aderiu mais com o coração do que com a cabeça. E sua literatura também foi assim. Nada de papo-cabeça. Papo coração.

Suando baianidade, melado pelo ouro do cacau, ele foi uma mistura de pai-de-santo e pajé, um pajé que sabia contar histórias bonitas para a imensa taba global onde a noite, se alguém era capaz de duvidar, ele repetia com astúcia: "Meninos, eu vi!".

Se o poeta é o fingidor, o romancista é o mentiroso. No caso da poesia, quanto mais finge, mais o poeta é sincero.

No romance, quanto mais se mente, mais se é verdadeiro. E nada mais verdadeiro do que o universo de saveiros e moleques, de mulatas cadeirudas e operários perseguidos, de xangôs e iemanjás, de cabarés e velórios, de doutores de borla e capelo e capitães-de-longo-curso, de quituteiras e babalaôs que povoaram suas noites enfeitiçadas, seus terreiros de suor e milagres -que a carne sofre inteira e precisa sentir prazer por inteiro, pois ninguém é de ferro.

Compreensão
Este podia ter sido o seu lema pessoal. Significa tudo: principalmente a compreensão pelos delitos da carne e do espírito, a generosidade diante das molecagens da vida e dos homens, a curiosidade em sempre desvendar mais uma variação do imenso tema da miséria humana.

Jorge Amado conseguiu o absurdo de ser cético e de ser crente. Só na Bahia podia nascer um sujeito assim. Por isso mesmo ele tinha um gosto de azeite e de sono espreguiçado, de cafuné e de mulata tombada nos fundos da cozinha.

Espiou o mundo com o olho treinado nas fechaduras da vida: compreendeu tudo. Os milhões de leitores que ele teve em todo o mundo não sabem o que perderam: a pessoa humana que só deu a conhecer uma parte de si mesma. Uma parte que constitui um dos maiores todos da literatura moderna.

E este Jorge começou a se mostrar de mansinho, escrevendo "Lenita", uma novela em parceria com Dias Gomes e Edson Carneiro. Tinha 15 anos. O trabalho em equipe geralmente não figura na lista de suas obras, mas não deixou de ser uma ameaça. Ele queria escrever.

O seu aprendizado não seria feito nos laboratórios da gramática ou nos alambiques da linguística. Como a cozinheira se faz no fogão, prevendo e provendo as panelas e as frigideiras, Jorge se fez na vida, vivendo e escrevendo. Lenita teria sucessoras: Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista, Tieta do Agreste.

Com apenas dois dedos e máquinas de escrever circunstanciais, foi criando a sua obra torrencial, humana, quente de vida e de pecado, numa prosa que parecia desleixada aos críticos do "ancien régime" literário, mas que o povo ia absorvendo, gostando e consagrando.

Sua obra é inteira, coerente, vívida, caudalosa, formalmente irregular e densamente regular. De um escritor cuja força humana e literária criou "Jubiabá", "Mar Morto", "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água". Não se deve exigir a mediocridade das fórmulas acadêmicas.
Suas mulheres de ancas cobiçadas, seus turcos fesceninos, seus marinheiros mentirosos, seus santos e suas senhoras são sempre os mesmos, em qualquer língua ou sob qualquer sintaxe.

Pois o moço baiano foi a Maceió, nos idos de 1932, conhecer um sujeito que havia escrito "Caetés". Na mesma cidade vivia um outro rapaz que estreara com uma obra-prima: "Menino de Engenho". Foi assim que a vida e os deuses reuniram os três grandes do nosso romance regional, a Santíssima Trindade da literatura nordestina, acrescida por uma Nossa Senhora chamada Rachel de Queiroz.

Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado, ao que parece, nunca assinaram um manifesto artístico. Devem ter assinado manifestos pedindo liberdade para os perseguidos da ditadura. Mas nunca se reuniram expressamente para discutir ou fazer literatura.

Em sua casa no Rio Vermelho, misturando preguiça e trabalho, vivia rodeado pelos personagens que criara, duendes e salafrários, povo e polícia, sentindo o cheiro do leite que rompeu dos seios de Iemanjá e encheu a baía de Todos os Santos com a magia que ele, cantando, espalhou por toda parte.

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