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24/01/2002 - 03h53

Bahia comemora centenário de Pierre Verger com megaexposição

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CASSIANO ELEK MACHADO
enviado especial a Salvador

Viajante como poucos que passaram por cima do globo, desses da estirpe de Debret e Rugendas, o inicialmente pequeno-burguês Pierre Verger começou a circunscrever o planeta em 1932.

Saiu de Paris e virou ao avesso mais de 60 países de todos os continentes. Foi até para a extinta Cochinchina. Mas só em 1946, ao chegar a Salvador, achou, perdão pelo clichê, seu porto seguro.

A partir daí, esse fotógrafo, etnógrafo, repórter, escritor e líder espiritual de cultos afro-brasileiros deixou de ser francês para começar uma longa carreira de baiano, um dos mais notáveis deles.

No ano em que completaria seu centenário, não alcançado por pouco, Salvador faz sua grande homenagem a Verger. Foi anunciado ontem na capital baiana o maior pacote de eventos já realizado em torno do viajante, que viveu entre 1902 e 1996.

O pivô dos festejos é a Fundação Pierre Verger, instituição criada em 1987 para centralizar a vastidão dos trabalhos vergerianos.

Da sede do órgão, uma acanhada casa construída na ladeira da Vila América, no simplório bairro de Vasco da Gama, em Salvador, sairão este ano uma megaexposição que rodará sete capitais brasileiras e uma quase dezena de edições e reedições de livros.

Outros projetos de grande porte, como uma mostra itinerante a percorrer o continente africano, estão em estudo no casebre vermelho cor de Xangô, onde Pierre Verger viveu, com simplicidade voluntária de monge, os últimos 36 anos de vida.

Dois armarinhos de madeira barata guardam os 62 mil negativos de fotografias que ele fez pelo mundo (a maior parte delas de antes de 1952, as últimas em 77), prateleiras de ferro acomodam quase 3.000 livros, a cama de solteiro em que dormia está feita em uma das salas, objetos como um coçador de costas e os grossos óculos que Verger usava ainda estão em cima da escrivaninha. As memórias estão em toda parte.

Nanci de Sousa Silva, dona Cici, filha-de-santo e consultora da fundação, sugere: "Peça para te mostrarem as fotos mais lindas do mundo, aí ao lado". Quais seriam elas? "Todas as que fez meu pai Fatumbi", explica a amiga de Verger, com quem conviveu por mais de 40 anos.

Era assim que o pensador era mais conhecido. Fatumbi, que em iorubá significa algo como "Ifá me trouxe de novo ao mundo", é o título que o fotógrafo ganhou em 1953, quando em Daomé, hoje o país africano Benin, demonstrou qualidade para ser babalaô, patamar mais alto do culto africano equivalente ao candomblé.

Desde esse ano, quando diz que renasceu (o que complicaria a comemoração de seu centenário agora), ele passou a assinar seu nome como Pierre Fatumbi Verger. Começava aí sua faceta mais conhecida, a de mestre e retratista do universo afro-brasileiro.

"Ele deu o status de cultura clássica, mundial, para a cultura baiana. Mudou sua grandeza e profundidade", diz à Folha o antropólogo Roberto Pinho, que conheceu Verger em 1954.

Ele se refere, sobretudo, aos estudos feitos por Verger sobre as interfaces entre Brasil e África trabalhadas em "Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos". Tido como o livro mais importante de Verger, o trabalho publicado em 1968 na França e aqui em 1987 mapeia o roteiro que diversos elementos culturais e religiosos fizeram da África ao Brasil e, pouco conhecido na época, do Brasil à África (muitos escravos libertos emigraram aos países de seus ascendentes).

Graças ao trabalho, Verger chegou a ganhar o título de doutor na Sorbonne francesa sem nunca ter frequentado a universidade.
No processo de mergulho ao Afro-Brasil, Verger conquistou fluência no complexo idioma iorubá, com o qual escreveu outro de seus trabalhos fundamentais, o grosso volume "Ewé".

Esse manual sobre a utilização medicinal e mágica das plantas na sociedade ioruba, lançado em versão bilíngue português e iorubá em 1995, pela Companhia das Letras, foi o último item em seu cartel de 37 livros, mais de cem exposições e um roteiro de vida pautado pela liberdade. "Pierre Verger é um homem livre", definiu o sociólogo Gilberto Freyre, em texto inédito de 1955 que a Folha publica com exclusividade.

Em nenhum lugar dos muitos que a liberdade de Verger o levou ele encontrou mais liberdade do que em Salvador, como disse em entrevista a Gilberto Gil, um dia antes de sua morte.

Se o pintor pernambucano radicado em Paris Cícero Dias, hoje prestes a fazer 95 anos, pode resumir sua vida com o título de sua obra mais famosa, o painel "Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife", Verger, que fez o caminho oposto ao do artista, de Paris ao Nordeste, não hesitaria em replicar: "Eu Vi o Mundo... Ele Começava em Salvador".
 

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