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31/03/2002 - 16h41

"Reality show" não desrespeita privacidade, mas a retrata sem ideais

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JURANDIR FREIRE COSTA
especial para a Folha

A Exibição, na televisão, dos programas "Casa dos Artistas" e "Big Brother Brasil" surpreendeu e desconcertou muitos brasileiros. Por que tanto interesse pela privacidade de artistas e pessoas comuns, fechados, dias e dias, em uma casa? As explicações se sucederam: voyeurismo sexual, decadência cultural, alienação política, ganância de produtores e patrocinadores dos programas etc. É possível que tenha havido algo de tudo isso. Mas haverá algo além disso?

Acho que sim. Uma ressalva, porém, antes do comentário. Não façamos de ventania furacão. Os programas não vão virar o país de cabeça para baixo, e sucessos de audiência duram como palavras ao vento. Uma coisa, no entanto, é evitar o uso de superlativos impróprios; outra é insistir em ver o mesmo onde começa a surgir o outro. Sucesso quer dizer aprovação do público, e isso é o que me parece interessante pensar: quais visões de mundo transformaram tais programas em sucessos de audiência.

A primeira coisa que chama a atenção no episódio é, obviamente, a mudança do valor da moral da intimidade. Podemos sequer imaginar uma família do século 19 ou das primeiras décadas do século 20 reunida para apreciar espetáculos do gênero?

Na "Idade de Ouro" da cultura burguesa, a intimidade era olhada de soslaio, com um misto de curiosidade, respeito ou desconfiança, jamais como artigo de ostentação. O íntimo tinha algo do tabu descrito por Freud. Era, ao mesmo tempo, amado e odiado, venerado e temido, fonte do puro e do impuro. Pensemos nos heróis e heroínas de Proust, Henry James, Eça de Queirós, Machado de Assis ou das coleções "Menina e Moça". Poderíamos concebê-los sem a sutil indiscrição de portas entreabertas, sussurros e segredos de alcova?

Na cultura pós-burguesa, esse modo de vida perdeu o encanto. A intimidade, em especial a familiar, caiu do pedestal. Usada por conservadores na defesa de preconceitos sexuais; por contestadores, para denunciar o machismo e o sexismo da família "burguesa e capitalista"; e, enfim, por arautos do mercado como um "produto" que se vende, sobretudo, como grife exclusiva do estilo de vida dos "vencedores", a intimidade foi roubada de sua atração moral e emocional. Tornou-se um mero tema de disputas políticas, filosóficas ou científicas, abandonando o lugar de fundamento ético da privacidade e da felicidade sentimental que, até então, ocupara de modo inconteste.

"Casa dos Artistas" e "Big Brother Brasil", portanto, não desrespeitam a privacidade que, efetivamente, existe; simplesmente a retratam sem os ideais que, até então, tornavam-na sublime.

Os participantes da casa devassada, dentro e fora da tela, agem de forma voluntária, refletida, e sabem que o prêmio da vitória é dinheiro. Todos compartilham, com maior ou menor consciência, a "moral do capricho" e a "a-moralidade do lucro".

A-moralidade do lucro, porque os programas escancaram o que a maioria aceita e a minoria -por pudor e integridade- reluta em admitir. Outrora, a recompensa do agir moral era o reconhecimento, a admiração e o respeito de todos. Agora, valemos o que pesamos em dinheiro; o que se tem e exibe é a medida do que se é.

Moral do capricho, porque os espectadores decidem o que vai ser dos moradores, em razão do humor ou da convicção moral momentâneos.

"Vale o que eu gosto"
A regra tácita do julgamento se apóia na avaliação dos traços de personalidade e da aptidão dos jogadores para viverem em coletividade. Até aí, pode-se pensar, ponto para os bons propósitos. Na prática, entretanto, o resultado é outro. O emprego dos critérios psicológicos se resume à imposição do "vale o que eu gosto", "bom é o que eu quero". Não porque os juízes sejam especialmente despóticos, mas porque moralidade fundada em motivos psicológicos não pode ser diferente. Razões do agir psicológico são sempre peculiares a cada um; razões do agir moral devem ser, pelo menos potencialmente, comuns a mais de um. Moral de um só é, segundo as circunstâncias, oportunismo, casuísmo, engodo ou violência, jamais regra do viver coletivo.

Vamos e venhamos, a mudança na percepção moral das virtudes privadas é enorme. Compare-se esse processo de decisão à severidade luterano/calvinista dos "Julgamentos Finais" ou aos seus equivalentes leigos, os "tribunais de consciência" da grande tradição filosófica do Ocidente moderno, descontadas as exceções de praxe: os moralistas; o triunvirato Espinosa, Nietzsche e Bergson; o dueto pragmático James e Dewey; outros que certamente desconheço e mais meia dúzia de pensadores atuais. O contraste é evidente.

É verdade, alguém com sotaque nietzschiano pode replicar: mas por que moral? Por que nossa vida tem de ser escrava de morais eternas, universais e absolutas, tão inventadas quanto as morais televisivas, sujeitas à chuva e ao bom tempo? Afinal, muda muito trocar de língua e continuar recitando o jargão "manda quem pode, obedece quem tem juízo!". Por que não imaginar a ética do criador solitário contra o ramerrão moral do rebanho?

A objeção procede. Mas não se estende ao caso analisado. O público ouvinte e vidente não está criando valores aos quais adere, doa a quem doer, agrade a quem agradar. Não passamos do cenário soturno da dúvida sobre o Ser, das chamas do inferno ou da condenação da carne para a cena olímpica da vontade de potência e do início do novo. Os cenhos franzidos e os atos de contrição não deram lugar à coragem, à luta contra a desmedida, ao apreço pela honra e ao amor ao destino. Nem mesmo a modesta decência, que Agnes Heller opõe, de modo pragmático, à grandeza nietzschiana é visada pelos jogadores.

O que se quer mesmo é, de um lado, o prêmio em dinheiro, do outro, entretenimento inconsequente e gozo do poder sem os ônus do comando. No fundo, a moral da história é que "moral" deve ser vista como um "pra valer" com certificado de "faz-de-conta". Sério com "s" grande só o dinheiro. Pois, se a brincadeira ultrapassa os limites e o bom-mocismo esperado descamba para o imprevisto, muda-se de canal e cessa o desconforto. Ninguém é interpelado pela escolha feita; ninguém se compromete com aquilo que escolheu.

Versão recauchutada
Não custa repetir verdades acacianas: a vida, como o tempo, empresta, nunca dá. O problema não é se agarrar ao que passou; é saber que valorar, preferir, afirmar que isso é melhor que aquilo tem um custo. O teatro da moralidade pós-burguesa, na superfície, é risonho, despretensioso e aberto a crenças politicamente corretas sobre sexo, relações afetivas, cuidados corporais e demais obsessões da cultura urbana de hoje. Cave-se um pouco mais e o que surge é a versão recauchutada da cediça manobra do "circo" para as massas, "sarau" para as elites.

Esse é o segundo aspecto que importa ressaltar. Enquanto as elites brasileiras consomem viagens sofisticadas, bom gosto via TV a cabo, concertos sinfônicos austro-alemães ou exposições parisienses, londrinas e nova-iorquinas, a classe média e os miseráveis, empobrecidos e intimidados por balas perdidas, se trancam em casa para decidir a sorte de outros trancafiados.

O engano é duplo. Primeiro, porque o "brother" anunciado não é "big" -é "little". Malgrado o título de um dos programas e as insinuações do outro, ambos estão longe da trama original de Orwell. No romance alusivo aos regimes nazista e comunista, se tratava de neutralizar, de modo preventivo e paranóico, os opositores da ordem totalitária. Na televisão, espiões e espionados são os mais convictos guardiões do status quo político. O jogo se assemelha, isso sim, às visitas que o burguês europeu fin-de-siècle fazia a circos, hospícios, hospitais e prisões para ver de perto os "monstros degenerados" e, depois, com suspiros de alívio, dizer: "Que bom que não sou eu".

Segundo, porque, no presente, os encarcerados são "os normais". Os bisbilhoteiros, por sua vez, não passeiam. Estão sitiados nas casas pelo medo das ruas e, enquanto esperam dias melhores, olham a metáfora do próprio enclausuramento com a satisfação envergonhada de quem cobiça o que despreza e não ousa dizer alto o que pensa: "Pena que não sou eu! Mas, já que não sou eu, será quem eu quiser!".

Poder pífio e esmagador

Ou seja, as pessoas são induzidas a crer que controlam o que já foi controlado, e o que, de fato, limita suas liberdades continua onde sempre esteve. A autonomia é posta a serviço do irrelevante, com um ganho suplementar para os que, realmente, agem visando a seus próprios interesses: o pequeno poder é pífio, ressentido e caricato. Mas, multiplicado por milhões, pode ser esmagador.

Ética e caráter existem, dizia o personagem de um antigo filme "noir", para se afirmarem em horas inconvenientes. Opinar moralmente sobre os outros, no conforto do anonimato, com aperitivos na mão e sem a menor responsabilidade pelas consequências da opinião emitida, é tudo menos brincadeira inocente. A língua portuguesa tem outros nomes para isso: leviandade, maledicência, pusilanimidade e, dependendo da "personalidade", lição introdutória às finas artes da delação.

Para concluir -e é importante enfatizar- não pretendo "demonizar" a televisão, como alguns se inclinam a fazer. Sem entretenimento a vida é insuportável, e a brincadeira é o lugar da cultura sem o qual não podemos viver. A questão é saber com o que podemos brincar e em que momento parar. Leiloar o que não pode ter preço é confundir brincadeira com venalidade, diversão com desatino.

Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 502 d.C.".

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