Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
29/04/2002 - 09h23

Para Zélia Gattai, escrever sobre Jorge Amado é "trazê-lo de volta"

Publicidade

CARLA NASCIMENTO
da Folha Online

Em menos de um ano, após a morte de seu marido, o escritor Jorge Amado, a escritora Zélia Gattai, 85, lançou dois livros. O primeiro, "Códigos de Família", chegou às livrarias no ano passado e o segundo, no último sábado, dia 27, na 17ª edição da Bienal do Livro de São Paulo. Ambos falam de sua vida ao lado de Amado, o que, segundo a escritora, é o mesmo que trazê-lo de volta à vida.

Memorialista e contadora de histórias por vocação, Zélia começou a escrever aos 63 anos e até hoje brinca com o fato de ser chamada de escritora, mesmo depois de ter sido eleita imortal da Academia Brasileira de Letras.

Foi assim em uma palestra realizada na sexta-feira passada na Bienal do Livro. "Eu até hoje não me convenci que sou escritora. Sempre fui contadora de histórias. Escrever é muito diferente, muito difícil. Mas agora que eu estou no meu 14º livro, eu acho que eu escrevo."

Ser eleita para a cadeira que pertencia a Jorge Amado na ABL não provocou mudanças na vida de Zélia Gattai, mas a perda do marido em agosto do ano passado, sim.

Escrever é, para ela, uma "fuga". "Escrever sobre ele para mim é uma fuga, é trazê-lo de volta, é recuperá-lo à vida, é trazê-lo bem junto de mim", disse em entrevista à Folha Online.

Reprodução
Capa do livro de Zélia Gattai em co-autoria com os filhos Paloma e João Jorge
Mais uma vez escrevendo as memórias sobre sua vida com o escritor baiano conhecido internacionalmente, ela lança "Jorge Amado - Um Baiano Romântico e Sensual", pela editora Record.

O livro, escrito por Zélia e pelos filhos Paloma e João Jorge, é definido pela escritora como "um livro de amor e uma homenagem" a Jorge Amado. Leia a seguir trechos da entrevista com a escritora.

Folha Online - O que mudou na rotina da família com a morte de Jorge Amado?

Zélia Gattai -
Cada qual continua na sua casa e eu continuo na minha. Eu tenho dois cachorrinhos que são meus amiguinhos, meus companheiros. Eu estou aqui [Zélia está hospedada em um hotel de São Paulo para participar da Bienal do Livro] morrendo de saudade e de pena deles. Meus filhos vão em casa todos os dias e nos falamos muito por telefone.

Folha Online - A senhora escreveu seu primeiro livro aos 63 anos de idade. Agora, em menos de um ano a senhora lançou dois. O último foi escrito em um mês...

Zélia -
Eu estava começando a ficar muito deprimida e o Eduardo Portella, acadêmico e amigo de muitos anos, sugeriu que a gente fizesse este livro. A idéia era prestar uma homenagem a Jorge. Achei que a idéia era boa. Escrever sobre ele para mim é uma fuga, é trazê-lo de volta, é recuperá-lo à vida. É trazê-lo bem junto de mim. Quando eu escrevo ou falo sobre ele, eu estou trazendo ele de volta comigo, mas isso não é de caso pensado. É que eu estou tão assim... que eu estou escrevendo e ele vai chegando normalmente. Neste último livro, eu quis prestar uma homenagem a ele, a última. Cada um escreveu a sua experiência de amor com o pai.

Folha Online - A senhora disse última homenagem?

Zélia -
Não sei se a última...

Folha Online - Mas a senhora ainda tem muitas coisas para contar sobre a sua vida com ele...

Zélia -
Pode ser que sim...

Folha Online - Tem alguma história especial que a senhora gostaria ainda de contar?

Zélia -
Eu acho que não....Elas chegam assim naturalmente, quando eu estou escrevendo.

Folha Online - Como foi o processo de criação do livro?

Zélia -
Cada um na sua casa...

Folha Online - Vocês só viram o que o outro escreveu depois de o livro ficar pronto?

Zélia -
Só depois de pronto. São três livros. Não tem nada uma coisa com outra. Cada qual escreveu sua parte e acabou-se.

Folha Online - Teve alguma coisa que a senhora só descobriu depois que leu o livro?

Zélia -
Um exemplo é contado pela Paloma quando ela era bem pequena ainda, devia ter uns seis anos. João não deixava ela brincar com o álbum de figurinhas dele. Paloma era desprezada, era considerada pirralha. Um dia Jorge a viu assim triste e perguntou o motivo. Aí ela explicou e ele disse para os dois fazerem um álbum. Todos os dias ele voltava para casa sempre com os bolsos cheios de figurinhas que os dois colavam e não deixavam ninguém chegar perto. A criança nunca esquece. Então ela disse: "Eu tinha um pai, um homem tão importante e, no entanto, ele era meu companheiro de figurinha".

João contou uma história que eu sabia. Jorge se divertia muito com eles e me provocava. Um dia, entrei na sala e Jorge, com uma cara de triunfo, disse: "um, dois, três". E aí eles começaram a cantar: "Zélia, velha, decrépita centenária". Eu fiquei estatelada. Ele tinha dado 5.000 réis para cada um para que eles cantassem isso.

Folha Online - A senhora ficou zangada?

Zélia -
Eu vou dizer que eu achei graça, mas fingi que não achei. Eu disse: "Muito obrigada. É assim que vocês tratam sua mãe". Paloma correu e devolveu o dinheiro para ele. Mas João ficou. E ele [Jorge] ria, mas ele ria tanto. Ele se divertia tanto... O livro mostra o convívio dele com os filhos e comigo.

Folha Online - E as fotografias? Como foi a escolha?

Zélia -
Tenho montanhas de fotografias e quase todas foram tiradas por mim. Esse livro só tem três fotografias que não são minhas. Durante muitos anos eu fui fotógrafa de Jorge. Eu tinha oportunidade de estar nos lugares onde não tinha ninguém que tirasse, então eu tenho fotografias dele no mundo inteiro com as personalidades mais fantásticas, com gente do povo... É uma coisa de ter tido o privilégio de poder fotografá-lo quando ele escreve... Só eu ali junto. Ele não gostava de ser fotografado. Se ele me via com a máquina, ele já virava para o outro lado. Mas escrevendo, ele ficava tão absorvido no trabalho que ele esquecia da minha presença.

Folha Online - Tem alguma fotografia especial para a senhora neste livro?

Zélia -
Tem uma que é dele tentando escrever. Ele já não estava enxergando as letras.

Folha Online - Na época em que seu marido estava doente a senhora começou a recorrer a várias crenças na tentativa de curá-lo...

Zélia -
Eu chamei um pai-de-santo em casa e ele fez um ebó (oferenda feita para os deuses do candomblé) forte. Eu apelei para o espiritismo.

Folha Online - Mas a senhora nunca foi religiosa...

Zélia -
Eu não sou religiosa, eu sou materialista, mas de repente eu disse: "Entre o céu e a terra, não sei o que existe, vamos tentar". E aí tentei tudo.

Folha Online - Um cacique foi a sua casa também...

Zélia -
Esse cacique apareceu lá em casa trazido por um admirador de Jorge. Ele chegou lá e disse que o cacique ia fazer uma pajelança. Mas quando eu vi o jeito eu não deixei.

Folha Online - E hoje, como a senhora está com relação à crença religiosa?

Zélia -
Eu não sei nada. Quando fico em casa sozinha, à noite, na cama, no escuro, não tenho medo nenhum e digo que, se existir alguma coisa, pode aparecer que eu não vou ter medo. Mas não aparece nada.

Folha Online - O que mudou em sua vida depois da nomeação para ocupar uma cadeira na ABL (Academia Brasileira de Letras)?

Zélia Gattai -
Na minha vida particular não creio que tenha mudado nada. Em mim, dentro de mim, não mudou não. Agora... tive mais trabalho. Tive que escrever três discursos. Um discurso para a Academia deve ser uma coisa bem pensada e trabalhada. Eu também fui eleita para a Academia de Ilhéus, onde já tomei posse, e para a Academia de Letras da Bahia, que eu também já tomei posse. Agora vai ser a da Academia Brasileira de Letras, que vai ser no dia 21 de maio.

Eu escrevi os três discursos e tudo isso aconteceu num momento difícil da minha vida. Momento em que eu inclusive escrevi um livro, um livro de amor, em conjunto com meus dois filhos. O que mudou mesmo a minha vida foi Jorge ter ido embora.

Folha Online - Como a senhora recebeu as críticas em função de sua candidatura para a ABL justamente na cadeira que era de Jorge Amado?

Zélia -
Eu sou uma pessoa muito vivida. Já tenho 85 anos, tenho uma experiência imensa de vida e conheço muito a raça humana, de maneira que isso para mim foi nada. Nem tomei conhecimento. Quem veio me dizer, eu disse: "deixa que falem". Eu sou pela democracia: cada qual diz o que pensa. Às vezes diz mal, mas eu não tenho nada com isso. Pior para quem disse. Não tomei conhecimento e não criei polêmica. Isso para mim foi nada.

Saiba tudo sobre a Bienal do Livro
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página