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04/05/2002 - 04h29

Afegão remove pó de dor pré-Taleban em livro apresentado na Bienal

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FRANCESCA ANGIOLILLO
da Folha de S.Paulo

Atiq Rahimi chega para a entrevista vestido com cores claras, uma echarpe de tecido bege, sandálias. Aos 40 anos, depois de 18 anos exilado em Paris, o escritor e cineasta afegão poderia passar por um francês que cultua um interesse pelo Oriente.

A impressão se dissipa diante da crueza de "Terra e Cinzas", seu primeiro romance. Lançado no começo do ano no Brasil -e apresentado hoje, na Bienal do Livro de São Paulo-,o livro prova o que Rahimi afirma sem hesitar: "A terra fica na gente".

No livro, Dastaguir e seu neto, Yassin, tentam chegar à mina onde está o pai da criança, Murad. A missão do avô é dura, (como "enterrar um punhal no coração do próprio filho"): contar a Murad que a família morreu num bombardeio à sua aldeia. Que só sobraram ele, o velho e a criança -esta, ensurdecida pelo ataque, não entende que perdeu a audição: crê que a guerra tira a voz dos que poupou da morte.

O foco narrativo é o do avô. Habilmente, Rahimi escapa da primeira pessoa, do subjetivismo melodramático, e conta a história do ponto de vista de Dastaguir, numa espécie de diálogo do velho consigo mesmo. O resultado é tocante, mas não sentimentalista.

Em entrevista à Folha, Rahimi conta que, nos primeiros anos após sua fuga -à pé, do Afeganistão para o Paquistão, onde pediu asilo político à França-, em 1984, o exílio lhe roubou a escrita.

Além da barreira da língua, havia um sentimento de distanciamento íntimo de seu país. Só com a tomada de poder pelo Taleban, em 1996, pôde retomar a atividade literária, iniciada quando ainda era o menino de 12 anos, filho de uma professora e de um governador de província, estudando no liceu francês, em Cabul.

Abismado pela "destruição de identidade" que viu na ação da milícia islâmica, foi numa espécie de procedimento catártico que deu à luz "Terra e Cinzas". Foi também quando mesmo seus documentários, que no início tinham temas "franceses" -como os artistas de rua em Paris-, passaram a falar para o mundo sobre seu país. "Desde 96, quando o Taleban tomou o poder e o mundo todo ficou mudo, foquei tudo no Afeganistão. Eu posso dizer que, mesmo se não fosse afegão, me bateria pelo Afeganistão."

Em sua ficção, porém, não se vê a militância explícita. O caminho é o da dor interiorizada, tanto no retrato que "Terra e Cinzas" faz do período da invasão russa, entre os anos 70 e 80, como, assegura, quando enfoca a ascensão do Talebã, tema de seu segundo livro, recém-lançado na França.

Em "Les Milles Maisons du Rêve et de la Terreur" (As Mil Casas do Sonho e do Terror, a sair aqui pela mesma Estação Liberdade), Rahimi escolhe o ponto de vista feminino, ausente do primeiro livro, para falar da destruição da intimidade pelo terror religioso.

Trabalhando na adaptação de "Terra e Cinzas" para cinema -o filme começa a ser rodado em setembro e será seu primeiro longa de ficção-, Rahimi pôde, há poucos meses, retornar a Cabul pela primeira vez em 18 anos.

"Na minha opinião, os artistas vivem sempre no exílio, mesmo nos seus próprios países. O imaginário é outro mundo. Ser exilado em outro país é normal. Se não me sentisse exilado em minha própria terra, nunca a deixaria."

Já sobre a ascensão da extrema direita na França, Rahimi responde com mais humor: "Já refleti e, no pior dos casos, vou pedir asilo político ao Afeganistão!"

Folha - Ao chegar à França, o sr. deixou de escrever. Como foi que o sr. retomou o hábito da escrita e publicou "Terra e Cinzas"?
Atiq Rahimi -
Eu havia escrito para mim mesmo, para me liberar de reflexões que tinha sobre meu país. Também por uma espécie de luto pela guerra e de busca dos motivos por que o Afeganistão caíra em tal violência. Não foi escrito para ser publicado. Foi Sabrina Nouri, a tradutora francesa, que o leu e decidiu traduzir.

Folha - Há uma história real por trás da que conta em seu livro?
Rahimi -
No começo dos anos 80, eu estava no norte do Afeganistão, para fazer uma reportagem sobre a vida dos mineiros. Todas as manhãs, atravessávamos uma ponte para chegar à mina e, um dia, vi um velho sentado no parapeito da ponte e, a seu lado, um menino. Eles eram como descrevo no livro: o velho tinha um olhar um pouco perdido e o menino, um olhar interrogativo.

Folha - Por que optou por narrar "Terra e Cinzas" como um diálogo de Dastaguir consigo mesmo?
Rahimi -
Primeiro eu escrevi em terceira pessoa. Depois eu vi que não funcionava, porque o rasgo interior do personagem não saía bem. Eu buscava como representar essa clivagem entre o que se é e o que se deve ou não ser, o que se diz e o que não se deve dizer. Não acontece, às vezes, de se olhar no espelho e falar com você mesma? Para mim, era um pouco isso. A caixa do naswar [mistura narcótica" que ele masca tem um espelho na tampa. Ele se olha, se descreve. É o personagem diante de sua consciência, futuro, passado.

Folha - Muitas ficções sobre a guerra são contadas por crianças. O sr. não se sentiu tentado a usar o foco narrativo de Yassin?
Rahimi -
Agora estou escrevendo o roteiro de "Terra e Cinzas" e uma coisa que gostaria muito de fazer seria um filme mudo, todo do ponto de vista de Yassin. Não tem graça refazer a mesma coisa que eu já escrevi, é preciso ir além.

Folha - Como seu cinema e sua literatura interagem?
Rahimi -
Eu sempre tento, quando faço documentários, encontrar uma forma de narração particular. Não busco repetir minha escrita, mas achar minha linguagem na imagem. Eu busquei o cinema meio por obrigação. Não é uma linguagem inata, como a escrita, mas adquirida. A imagem tem sido para mim uma linguagem de sobrevivência, enquanto a escrita é a linguagem de vida.


Saiba tudo sobre a Bienal do Livro


TERRA E CINZAS
("Terre et Cendres", Paris, 2000) de Atiq Rahimi
Editora: Estação Liberdade (tel. 0/xx/11/ 3661-2881). 80 págs. R$ 18. O autor apresenta o livro no Salão de Idéias da Travessa Literária, hoje, às 18h30, na Bienal do Livro de SP
 

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