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21/09/2002 - 03h05

Escritor argentino Juan José Saer fala sobre "O Enteado"

SYLVIA COLOMBO
da Folha de S.Paulo

Nas costas da América do século 16, toda a tripulação de uma expedição européia é devorada por índios canibais. Misteriosamente, um grumete é poupado da carnificina e incorporado ao dia-a-dia da aldeia, onde viveria, então, os próximos dez anos de sua vida.

Quando "O Enteado", livro do argentino Juan José Saer lançado agora no Brasil, principia, esse grumete já é um homem idoso. De volta há tempos à Espanha, ele passa seus últimos dias a escrever sobre sua vida cindida em duas -uma entre os índios na América, outra na Europa.

Lançado originalmente em espanhol em 1983, "O Enteado" é um dos principais romances de Saer, considerado um dos mais importantes autores da literatura argentina e que escreve mensalmente no Mais!. O escritor chega ao Brasil no próximo mês para participar do 2º Congresso de Hispanistas, na USP, e para uma palestra no Instituto Cultural Itaú.

Apesar do que o enredo sugere, "O Enteado" não é um romance histórico. A obra parte de um episódio verídico, a trajetória do marinheiro que foi o único sobrevivente do ataque de índios que dizimou os membros da expedição do conquistador Juan Díaz de Solís ao Rio da Prata, no século 16.

A partir do tema, Saer construiu uma narrativa onírica que investiga o processo de aprendizagem de um homem sobre o mundo.

O protagonista do romance acompanha a rotina dos índios como se fosse um sonho de uma noite infinita -uma vez que sua noção de tempo se dilui-, ou uma realidade terrível e irreversível que passa diante de seus olhos sem que ele possa nela intervir.

"O livro sai da barca do século 16 para uma situação universal. O que acontece à volta do protagonista são coisas bem reais, não são nada fantásticas. Descrevo-as de maneira a parecerem mais reais do que são", disse Saer, em entrevista à Folha, por telefone.

Ao explorar um estilo que define como "hiper-realista", Saer busca transmitir uma sensação de atordoamento. Isso se explicita, por exemplo, no momento em que o grumete assiste ao ritual antropofágico em que seus companheiros são devorados.

A repulsa, herança da formação européia, contradiz-se com sua condição humana. Ele percebe que quer comer a carne dos companheiros ("por mais que começasse a engolir saliva, quase contra a minha vontade, algo mais forte que a repugnância e o medo se obstinava em me dar água na boca diante do espetáculo que contemplava na luz do zênite").

Saer considera "O Enteado" como "um romance sobre a aprendizagem humana, mais do que uma aventura", diz o escritor.

A opção pelo hiper-realismo é parte da crítica que Saer faz ao realismo mágico, que caracterizou a literatura latino-americana no século 20. "Este ciclo está encerrado. Assim como o período de Borges. A herança de ambos é fundamental, mas agora os caminhos são, e tem de ser, outros."

O peso do legado de Borges, diz Saer, fez com que outros grandes nomes da literatura argentina ficassem obscurecidos. Um deles é Antonio di Benedetto (1922-1986), de quem hoje se encontram raros títulos nas livrarias de Buenos Aires. "Di Benedetto é tão bom quanto Borges, mas este era uma espécie de escritor oficial da Argentina e, quando há um escritor oficial, as pessoas o elegem automaticamente como o melhor."

Não é a primeira vez que a literatura contemporânea argentina volta-se ao tema da antropofagia. Outro importante autor do século passado, Manuel Mújica Láinez (1910-1984), já a abordara ao escrever sobre a primeira fundação de Buenos Aires, em 1536. "Mújica Láinez resgatou tema muito forte no imaginário argentino. A antropofagia está em nossa origem, ligada à idéia de fundação."

O tema do índio sempre foi tratado pelas letras argentinas do ponto de vista do enfrentamento. Basta ler um de seus maiores clássicos, "Martín Fierro", de José Hernandez (1834-1886). "Sim, Martín Fierro é de um racismo espantoso, característico de nossa literatura no século 19. O índio por muito tempo teve um papel de vilão ou apenas decorativo. Hoje isso está mudando."

Saer, que vive em Paris desde 1968, preocupa-se com a crise na Argentina, mas vê sinais positivos. "Há uma grande mobilização social e cultural. Além disso, os autores argentinos sempre escreveram em situações dramáticas."

O ENTEADO - autor: Juan José Saer. Lançamento: Iluminuras (São Paulo, 2002). Quanto: R$ 25 (188 págs.).

ESQUINA DA PALAVRA - com: Juan José Saer. Quando: dia 8 de outubro, às 19h30. Onde: Itaú Cultural (av. Paulista, 149, 0/xx/11/3268-1776/1777). Grátis.
 

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