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21/04/2003 - 14h04

Documentário "Nelson Freire" enfoca o instrumentista mineiro

JOSÉ MIGUEL WISNIK
para a Folha de S.Paulo

Depois de ter feito, com Katia Lund, "Notícias de uma Guerra Particular", um documentário televisivo impressionante sobre a emergência do crime organizado e a instalação da guerra do tráfico no país, percebida como circuito de violência interminável e literalmente viciosa nela mesma, João Moreira Salles surpreende num outro extremo: o seu primeiro longa cinematográfico é um documentário sobre a intimidade artística, se se pode dizer assim, de um refinado pianista erudito, brasileiro e de sólida projeção internacional, Nelson Freire.

Se considerarmos também a sua bela trilogia sobre o futebol, temos um arco de temas e problemas querendo dar conta de camadas aparentemente incompatíveis da realidade, como quem quisesse ao mesmo tempo expor e reparar fraturas que se sabem irreparáveis. É um dom raro, no entanto, este, o de saber tratar ao mesmo tempo de barras pesadas e levíssimas, testemunhando o peso do mundo em chumbo e em pluma.

Em princípio, Nelson Freire é conhecido, no Brasil, por aquele relativamente reduzido círculo de acompanhantes da música de concerto, entre os quais tem uma legião de admiradores entusiasmados ou mesmo de devotos absolutos (me incluo entre os últimos desde a minha juventude de estudante de piano). De fato, para quem ama o piano, não é reativo ao grande repertório romântico do século 19 e tem a oportunidade de prestar atenção nele, Nelson Freire é inequivocamente um dos maiores pianistas do mundo, entre pouquíssimos.

Mas, para quem vê o documentário, essa afirmação se revela ao mesmo tempo inepta. Porque, por obra e graça seja de um temperamento visceralmente reservado, seja daquela misteriosa discrição profunda que acompanha tantas vezes a universalidade mineira, seja de uma comovente adesão à música em si mesma, despida de exterioridade, Nelson Freire se coloca fora dessa mensuração.

Na prática, foi nessa direção que ele conduziu sua carreira: evitando dar muitos concertos, dispor-se a dar entrevistas e seguir protocolos de divulgação, evitando sobretudo gravar constantemente (o que agora parece estar mudando, em alguma medida) e, sem extrair dessa dificuldade de acesso um efeito estrelístico, Nelson Freire obteve trânsito mundial, reputação crítica seleta, adeptos e devotos em muitas partes, sem alcançar no entanto a evidência que poderíamos considerar-lhe devida. Num exemplo flagrante de sua ambígua presença ausente, o crítico John Ardoin, que o apresenta na consagradora coleção de CDs "Great Pianists of the 20th Century", começa dizendo que "Nelson Freire é talvez um dos segredos mais bem guardados do mundo do piano". Na sequência, faz uma afirmação que coincide com a minha impressão: "No entanto ele pode igualar qualquer façanha técnica de não importa que pianista que eu conheça, (...) habitualmente com justeza, beleza de som, desenvoltura e musicalidade maiores".

Naturalidade sem esforço

Um esforço para definir a singularidade de Nelson Freire como pianista diria, antes de mais nada, que ele parece tocar sem nenhum esforço. Embora o filme deixe ver com sutileza um outro lado dessa capacidade -nos suspiros aliviados que acompanham nos bastidores o fim de cada recital, índices de um consumo intenso de energia interior-, a verdade é que ele passa pelos maiores "tours de force" do repertório com uma naturalidade incomum, vale dizer, sem acusar o golpe da dificuldade técnica, ao mesmo tempo que sem espetacularizá-la. Sabemos bem que vender a dificuldade malabarística como tal é um dos efeitos quase obrigatórios, e óbvios, do virtuosismo concertístico, mas Nelson praticamente a subtrai de cena. Ao mesmo tempo, o enfrentamento obstinado -e humorado- de uma lendária passagem difícil do "Concerto nº 2" de Brahms, até que ela saia macia e fluente, em público, é um dos lances através dos quais o filme lança luz sobre essa trabalhosa, mas também espantosa, conversão da opacidade resistente na pura fluência.

Na verdade, a naturalidade sem esforço é apenas a imagem visível de uma outra coisa, não visível, mas propriamente audível, e interna ao modo de ler a partitura. Há uma claríssima transparência das vozes melódicas, quando elas se insinuam em contraponto, uma gama intensa e extensa de nuanças dinâmicas que podem ir de pianíssimos quase irreais a fortíssimos fulgurantes, graduados ou contrastados através de um domínio sempre orgânico da matéria sonora, e as cascatas de notas velozes, quando ocorrem, soam ao mesmo tempo como raio e como sopro. Tudo isso pode ser ouvido nitidamente, por exemplo, no "Improviso nº 2, Opus 36", de Chopin, que consta do já citado volume da "Great Pianists" (ou na sonata de Lizst, presente num velho vinil que eu nunca me perdôo de ter perdido).

Enigma

Na "Mazurca em Si Bemol Menor, opus 24, nº 4", encontrável no mesmo CD do Improviso, o sutilíssimo controle da dinâmica, dos modos de ataque, do pedal, das ressonâncias, enfim, e mais alguma coisa indefinível, faz do piano um instrumento surpreendentemente multitimbral, revelando os relevos complexos dessa música na qual, como em muitas das mazurcas, Chopin converte a peça de salão em enigma (a idéia é de Charles Rosen, no excelente "A Geração Romântica" [Edusp], que tem o mérito, entre outros, de assinalar a cada passo, e em minúcia, a grandeza chopiniana).

Os próprios dedos, quando se vêem de perto na tela, nos momentos certos, arredondados e levemente roliços, em vez de alongados, como se espera habitualmente de um pianista, tornam-se, no caso, uma espécie de concha privilegiada e propícia ao legato -a enunciação contínua das melodias, mais congenial aos sopros e às cordas do que ao piano (a propósito, essa visão aproximada das mãos se dá, no filme, no diálogo entre piano, flauta e clarinete, no segundo movimento do "Concerto nº 2" de Rachmaninoff, e entre piano e violencelo, no terceiro movimento do "Concerto nº2" de Brahms).

Mas o foco do documentário -que isso fique claro- não é um zoom sobre o piano como matéria de especialistas. Ele é uma sucessão de olhares, em 31 episódios, sobre o mundo que cerca esse piano tão discreto quanto privilegiado, com o cuidado de quem cerca, sem prendê-lo, um passarinho que parece poder escapar a qualquer momento.

A estrutura lembra vagamente, e João Moreira Salles o faz conscientemente, a do filme "32 Curtas sobre Glenn Gould", de François Girard. Mas só à medida que Nelson Freire e o extraordinário Glenn Gould são antípodas completos: o repertório do pianista canadense vai sobretudo do barroco a Beethoven, saltando praticamente daí para os modernos; o de Nelson Freire é basicamente o do universo romântico saltado por Gould. Nelson é intuitivo e anticerebral, Gould é inquietamente um homem de idéias. Um foge ao estúdio e se refugia, com imensa reserva, no recital ao vivo; outro foge aos concertos e se refugia no estúdio. Em ambos estão indicados, acho eu, os impasses do mundo do piano, à medida que este perde, exatamente, o seu lugar no mundo.

Guardemos essa questão, que me parece estar, em silêncio, no cerne desse filme luminoso. Porque de todo modo o silêncio, o gesto e a música acabam dizendo, ali, mais que tudo. Como a homenagem a Guiomar Novaes (esta, absurdamente ausente de "Greats Pianists of the 20th Century"), num momento em que Nelson simplesmente escuta, inteiramente entregue, uma gravação, pela pianista, da transcrição da "Melodia de Orfeu e Eurídice", de Gluck, que ele próprio toca depois repetidas vezes, como que a assinalar um rito de passagem do bastão. Ou a comovente carta ao futuro filho adulto, escrita pelo pai do pianista no momento em que a família se decidia a mudar, com imenso sacrifício, de Boa Esperança para o Rio de Janeiro, para suprir a necessidade de formação do menino prodigioso (lida em "off" pela voz de Eduardo Coutinho, cuja presença, para além da perfeita adequação, pode ser interpretada também como uma homenagem silenciosa). Ou a belíssima declaração de amor, em carta, da professora Nise Obino, cuja aparição, nos anos dourados do Rio, deu sentido, segundo testemunho de Nelson, a seus estudos de piano, quando ele estava a ponto de perdê-lo definitivamente, por absoluta falta de motivação. Ou o prazer com que Nelson assiste ao vídeo de Fred Astaire com Rita Hayworth, exigindo divertidamente que a câmera se volte para a tela da televisão, e não para ele. A luta surda e anímica, poucas horas antes do recital na Sala São Paulo, com um piano que "não gosta" do pianista ("e eu não fiz nada para ele", diz, quase segredando, para pessoas que tentam resolver o problema). Teatros do mundo (em especial um passeio pela arca russa de São Petersburgo), a solidão solista e o aluvião extasiado dos públicos. E até mesmo humoradamente, de relance, o perigo que representa para um pianista, entre tantas manifestações de afeto, o caloroso e potencialmente destroçante aperto de mão de alguns admiradores (muito possivelmente russos).

Martha Argerich e Errol Garner

Preciso destacar, entre tudo, a presença de dois outros pianistas no filme, extremamente reveladora, no modo como aparecem, do modo de ser do próprio Nelson Freire: Martha Argerich, a grande pianista argentina, sua gêmea não-idêntica, que testemunha ali uma amizade musical da vida inteira (eles se conheceram adolescentes em Viena), e Errol Garner, o grande jazzista negro norte-americano, em contraponto com quem, vendo-o em vídeo numa passagem fulgurante, Nelson expressa a inveja do desejo impossível de improvisar e de tocar com aquela mesma alegria esfuziante, que está, no entanto, na origem primeira de sua relação com a música.

Martha é algo assim como uma cronópia cortazariana, excentricamente encantadora, extrovertida, falsamente blasé, uma personalidade singularmente cativante que acompanha a sua condição, ela sim, de primeira pianista do mundo, pela evidência do seu sucesso de público e de crítica. O espelhamento dos dois é quase um ideograma.

Diante de Errol Garner, Nelson evoca a alegria de tocar que se via, segundo ele, em Rubinstein, em Horowitz, em Guiomar Novaes e que se vê, como uma raridade, na própria Martha (que no entanto tem evitado, ela também, ao que parece, as apresentações solistas, preferindo concertos e música de câmera). Aqui está o ponto delicado: o quinhão de alegria e de felicidade autêntica como um bem escasso, faiscando em filão mitigado, mesmo para quem dedicou a vida à mais profunda intimidade com a beleza. Perguntado pelo documentarista, cuja voz se entreouve em "off", se ele, Nelson, tem alegria em tocar, a resposta é um primor de não-verbalidade: mescla de silêncio mineiro, graça irônica, interrogação sincera e melancolia.

A questão não é simplesmente pessoal. Num artigo esclarecedor publicado no "Guardian" e traduzido em "O Estado de S. Paulo" em 31/12/2002, "Por Que os Pianistas de Hoje São Tão Chatos?", Martin Kettle aponta na verdade para a crise da vida pianística, cujo grande ciclo teria ido segundo ele de Beethoven ao surgimento do LP, de 1830 a 1960, quando o piano é o autêntico motor da cultura musical erudita, e os grandes pianistas se sucedem ao longo de um período fertilíssimo de composição para o instrumento. Lizst, beijado na testa por Beethoven "em carne e osso", foi o professor dos professores de Claudio Arrau, Wilhelm Kempf ou Rudolf Serkin.

A tese de Kettle (e não se tome o título do seu artigo ao pé da letra) é de que o piano, não representando mais uma cultura viva em que se passa continuamente o bastão entre intérpretes e compositores, só oferece um lugar problemático aos pianistas -especialmente, é claro, aos melhores, e, cada um a seu modo, afetados silenciosamente pelo desgaste da significação de seu ofício, frente ao qual a alternativa óbvia seria a franca mercantilização. É o caso de Baremboim, tornado regente, de Martha Argerich, pelo que já dissemos, de Vladimir Ashkenazy, fugindo à carreira de virtuose, e de Pollini, ostentando uma "perturbadora frieza em sua maneira de tocar", para não falar no caso limite de Glenn Gould.

E é o que se pode ver, graças ao documentário, de maneira singularíssima e ricamente matizada, em Nelson Freire, cuja discrição desde sempre desponta como uma resposta silenciosa e natural, além de musical, a tudo isso. Esse filme traz, também ele, notícias de uma guerra muito particular. Muito particular porque única, mas não porque restrita: dela se irradia um halo de humanidade que interessa a tudo, para muito além do mundo do piano. Quem faz o que faz porque o faz de graça? Onde é possível a alegria, mesmo quando ela jorra ainda de uma fonte límpida?

José Miguel Wisnik é músico, compositor e professor de literatura brasileira na USP. É autor de "O Som e o Sentido" (Companhia das Letras) e "O Coro dos Contrários" (ed. Duas Cidades).

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