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22/07/2003 - 17h41

Veja a carta de Zé Celso para o festival de Rio Preto

da Folha de S.Paulo

Leia, a seguir, a íntegra da carta enviada por Zé Celso ao Festival de Teatro Internacional de São José do Rio Preto, documento que também reflete uma dramática realidade da produção artística brasileira contemporânea.

"CANTO DO CORO DE 'A TERRA' PARA SER OUVIDO COM O RIGOR DO AMOR NO LUGAR QUE O INSPIROU"

"Por amor não fingido ao Festival Internacional de Teatro de Rio Preto, não estaremos apresentando nosso primeiro espetáculo montado de 'Os Sertões', 'A Terra'.

Por amor ao seu público, a quem devemos a construção prática de nossa epopéia de montar esta obra, que por sua desmedida dimensão física e cultural, parecia impossível de ser feita na íntegra, estamos dizendo esse NÃO que paradoxalmente é um grande SIM. Explico:

- Foi aí que no ano de 2001, no 'Não-Lugar' - como era chamado nesta época o espaço hoje transformado num 'Lugar' da Cerimônia da abertura Oficial do Festival de 2002 , que o time do Teatro Oficina Uziya Uzona, dirigido por Marcelo Drummond, durante mais de uma semana in loco, preparou os ensaios abertos de trechos da parte mais complexa do livro: 'A Luta'.

Meia-Noite, com um grande público caminhante fizemos a via teatral das três primeiras expedições contra Canudos, num cortejo teatral partindo do enorme anfiteatro, desenrolando-se pelas ruas, pátios, jardins-caatingas de vegetação intrincada, até a majestosa piscina vazia virada Canudos, invadida pela expedição Moreira Cezar onde peixes dentro d'água, os atores sertanejos lutaram venceram, abraçados nas margens daquela piscina, por um público quente de uma noite atravessada de ventanias.

Foi descoberta a estrutura para a montagem de 'A Luta' que encenaremos em 2004. Um Ensaio aberto maravilhoso, com todas as imprecisões de um evento assim, mas com o vigor da descoberta mútua entre nós e o público da intensa vida teatral do material trabalhado.

- Foi aí, no ano de 2002 no Teatro Municipal, quando o público tirando as cadeiras móveis da platéia ao meu pedido que descobrimos a versatilidade maravilhosa de ver o Teatro Municipal de Rio Preto transformando-se também em uma outra arquitetura cênica, sem a separação clássica de palco e platéia. Foi um maravilhamento. O da metamorfose tão sonhada nos grandes teatros de todo mundo, da mutabilidade do espaço cênico, projetada sempre com tecnologias complicadas, realizando-se com a simplicidade, o humor, a graça de um milagre.

Nesta epifania de um teatro inesperado, ensaiamos a primeira parte de 'O Homem' que vamos estrear agora, no dia dos 94 anos do assassinato de Euclides da Cunha, atravessando até as primeiras horas dos 42 anos do maduro Teatro Oficina. Foi mais um ensaio tão estruturador com o calor dos improvisos, das descobertas mútuas, que podemos dizer que o público do Festival de Rio Preto é nosso parceiro desta criação dificílima de incorporação da obra de Euclides. A partir de lá começamos a colocar o publico como ator importante das cenas.

Agora em 2003, Canudos ronda, retorna no Brasil como o Grande Fantasma do Conflito Agrário. Coincidência ou sincronia histórica este material incorporado no teatro tornou-se, hoje, uma obra viva para que a passagem ainda que tardia da reforma agrária, do MST, da agricultura teatral se faça pela via da Paz.

Quando soubemos que não tínhamos sido chamados para participar em 2003 com ' A Terra', espetáculo pronto, de sucesso, premiado, não mais um ensaio, mas uma obra montada, tal como tínhamos prometido levar como gratidão ao nosso publico parceiro de Rio Preto, compreendi que este não-convite estaria inserido no terror econômico que neste ano, no mundo, atinge, devasta tudo, na cultura do tabu do capitalismo financista-fiscalista. Cultura que somente pode manter-se, e crescer com o desmantelamento da cultura livre que toca no seu tabu colonizador, na recusa de santificação do corte financeiro na atividade que dá força, renovação mental, sentimental e potência: a cultura viva, ao vivo, pela qual o capitalismo nutre um grande desprezo porque colonizadamente não compreende vida que não seja impressa em dólar.

Estamos num desafio estético e político que nos coloca numa posição Canudos; trabalhando com mais de 60 pessoas, entre atores, técnicos, diretor de arte, música, crianças do projeto social Beixigão, treinadores, iluminador, vídeo-atuadores, todos coligados em associação, trabalhando em mutirão, guerreando por recursos, numa recusa à condenação do teatro á miséria para que a posição combalida não interfira na nossa inspiração. Há muitas vezes, necessidade dos atores 'fazerem o saco', trabalhando por pressão do terrorismo econômico fora de Canudos, o que evidentemente interfere na concentração que um trabalho deste porte exige. Mas lutamos para nos revezarmos em nossa energia e com a riqueza que conseguimos criar que termina por nos alimentar. Mas ao mesmo tempo nos aproxima cada vez mais da necessidade de um movimento de todo o teatro, de todas as artes cênicas ao vivo e das virtuais também que criam, para uma revolução desta situação que sem exagero podemos dizer que se não levantarmos politicamente a cabeça, trará um novo massacre cultural.

Uma das formas de não compactuar com esse espetáculo do massacre cultural é não sermos omissos e lutarmos para que o capricho, a qualidade do nosso trabalho não fique adoentado por esta mesquinharia .

Imediatamente liguei para o muito querido Danilo Miranda e, depois, Marcelo Drummond falou com Ricardo Muniz o curador maravilhoso desta festa de teatro no mundo, que começou a batalhar heroicamente uma maneira de irmos.

Eu estaria esta semana no Festival de Avignon, a convite do governo francês para tratar de nossa ida com todo 'Os Sertões', montado para o Festival de 2005. O festival foi suspenso pela luta dos artistas franceses contra o rebaixamento, a desvalorização econômica de seu trabalho. Para um artista é muito difícil dizer não à apresentação de sua arte onde está sua principal contribuição para a permanente mutação ao vivo da vida social. Não fiquei triste porque compreendi que por outro lado os artistas e técnicos franceses, estão defendendo os interesses e os desejos da cultura nesse momento do planeta em que o massacre cultural está acontecendo em surdina. Lamentei, mas logo me alegrei porque poderia ir ao Festival de Rio Preto. Me dispus a ir para encontrar o lugar adequado, como faço sempre quando um espetáculo que dirigi em espaço não convencional, precisa ser recriado. Disponho de muito pouco tempo, pois estou trabalhando muito nos ensaios de 'O Homem'.

Além do mais, um problema da coluna me impede de encarar muitas horas de ida e volta de carro. Pedi uma passagem para o Festival, Ricardo tentou mas não conseguiu, aprestou-se até em usar o próprio cartão de crédito, como eu também poderia ter feito, mas ambos envolvidos pelas lutas de fazer acontecer atos culturais, estamos duros. Eu iria por minha conta se minha situação permitisse. Mas o terror econômico impediu.

Seguiu uma equipe técnica de primeira: a diretora de arte arquiteta Cris Cortillo, o diretor musical Maestro Marcelo Pellegrino, o Iluminador Ricardo Morañez, o Vídeo-atuador Mauricio Shirakauwa e a nossa diretora de cena, nosso grande orgulho pelo que está revolucionando nesta sua função, o teatro brasileiro, Elizette Jeremias. Entraram os cinco num carro e fizeram as horas necessárias para, in loco, verificar as condições.

O relatório nos deixou muito tristes. O Único lugar possível, seria ao ar livre, sem acústica, para 1.500 pessoas. Insistimos em toda a correspondência com o Festival que não poderíamos fazer num lugar sem acústica, a não ser em condições técnicas excepcionais de sonorização, que infelizmente até hoje nem o Sambódromo conseguiu resolver. Um lugar que pudesse soar neste musical acústico a Voz Do Coro.

'A Terra' foi uma vitória de uma das buscas mais fortes do Oficina, a criação de um CORO, no sentido grego. Atores cantores dançarinos soando letras complexas em ritmos sofisticados, mantras, ditirambos.

A peça 'A Terra' exige chão de Terra, difícil no asfalto para os pés descalços dos atores dançarinos. Teríamos somente um dia de ensaio para fazer a adaptação do complexo espaço cênico, com parede de fundo importantíssima para o sentido da peça, palcos em estruturas superiores, e subsolo. Para tudo isso, encontrar-se-ia soluções que demandariam tempo, ensaio e evidentemente gastos. Nosso desejo era mostrar para São José a beleza do rigor conseguido num espetáculo rigorosamente elaborado de três horas e meia de duração. Nosso cachê para o espetáculo seria inferior ao do nosso ensaio do ano passado, e somos muito mais gente agora, mas mesmo assim topamos.

Discutimos três noites em assembléia depois dos ensaios, entramos no luto, na tristeza. Odiamos dizer um não, até que vimos que era de um Sim ao Festival. Ricardo ainda tentou me convencer de levar, partes ou um ensaio de 'O Homem. Recusei porque queremos levar não mais ensaios, mas o que um Festival com a grandeza do de Rio Preto agora merece.

Se as circunstancias do terrorismo econômico aparentemente venceram, não ganharam a batalha, pois estaremos dispostos a começar a pensar juntos, com antecedência para que no ano de 2004, possamos mostrar da melhor maneira 'A Terra', 'O Homem' Primeira Parte que estreamos em agosto e 'O Homem' Segunda Parte que estaremos estreando em outubro.

Ou talvez, se bons ventos de nossas lutas varrerem a recessão, a censura que o terror econômico, pior que o militar,impõe à cultura, poderemos estar aí começando a encenação num entardecer e ir até o nascer do sol, com ' A Terra' 'O Homem' e 'A Luta '.

É exemplar para o mundo que, neste ano, este Festival consiga ser realizado em meio à situação de desprezo cultural dos poderes financeiros. Nem Avignon resistiu. Os artistas brasileiros estão fazendo grandes sacrifícios para estarem em cena, neste momento que a paz no Brasil precisa desta arte para todos, como água na seca.

Os artistas que aí estão, demonstram uma fase contraditória de pobreza material ao lado de alta criatividade que nada poderá deter, porque a criação é mais forte que o terror.

Mas o terror econômico, sua esterilidade, sua contribuição às superstições mercadológicas assassinas são claramente nossos maiores inimigos como nos anos 60 a censura militar.

Estamos dizendo SIM querendo apresentar nosso filho sem mutilações ocasionadas por uma guerra que lutamos para ser transitória.

Dar 'Os Sertões' com todo o esplendor e força para nosso Pai e Mãe geradores: O Festival de São José do Rio Preto.

Viva a coragem e o empenho de Jorge Vermelho.

Viva o lutador, o guerreiro cultural internacional Ricardo Muniz.

Viva a todos artistas que aí estão se apresentando.

Viva acima de tudo o povo, o público nosso parceiro de São José

Viva o Festival Internacional de Teatro

Até sempre.

SIM.

São Paulo, 21 de julho de 2003.

José Celso Martinez Corrêa.

M E R D A"

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