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26/07/2003 - 03h38

Folha reúne quatro autores para debater a ficção feita no país

CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo

Marçal Aquino, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum e Luiz Ruffato são quatro escritores brasileiros. Todos nascidos na mesma sesmaria de tempo, saíram cada um de um Estado do país para desaguarem em São Paulo.

Em carreiras que deslancharam entre o final dos anos 80 e final dos 90, o quarteto conseguiu prêmios, elogios de críticos e traduções para outros idiomas.

Aquino, Carvalho, Hatoum e Ruffato nunca tinham parado para conversar uns com os outros.

Quatro dos convidados brasileiros da primeira edição da Festa Literária Internacional de Parati, a Flip, que acontece de sexta-feira até domingo, na cidade colonial fluminense, eles foram reunidos pela Folha, no Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, com a "rara oportunidade", como definiu Aquino, "de conversar sobre a literatura brasileira de hoje".

Em bate-papo informal, pontuados com risos e fagulhas, os romancistas falaram sobre a relação da ficção nacional com a realidade violenta, discutiram o tamanho diminuto (mas crescente) do mercado editorial, debateram as estratégias dos autores da chamada "geração 90".

Leia trechos a seguir de uma conversa que deve continuar na próxima semana em Parati.

Folha - A escritora Patrícia Melo diz que uma das marcas comuns da literatura brasileira de hoje é o desespero. Vocês concordam?
Milton Hatoum -
Acho que não é só o desespero que move a literatura. O que move é a inquietação de cada um, os fantasmas de cada um, aquilo que pode se traduzir em drama humano.

Marçal Aquino - Mas o desespero é um tempero importante.

Hatoum - É, mas às vezes o desespero leva a uma espera. O fim de "Vidas Secas" [de Graciliano Ramos] contém esperança.

Aquino - Em "São Bernardo" [também de G. Ramos] não há.

Hatoum - O desespero pode ser uma tábua, uma trama, um recurso. Quer dizer, não sou muito aparelhado para falar sobre esperança, porque no que escrevi...

Luiz Ruffato - Existe isso que o Milton falou, a busca por questões pessoais e a realidade à sua volta. Todo tipo de literatura reflete em algum grau a inserção desse indivíduo nessa realidade. Com certeza a visão desesperançada é uma característica da literatura como um todo. Não há muita saída para isso. A realidade sempre sufoca.

Bernardo Carvalho - Você falou algo de que discordo. Um dos problemas da literatura brasileira hoje é essa submissão à realidade. O interessante, independentemente do seu desespero, é você tentar vencê-lo. Se você for submisso à realidade não precisa nem escrever. Quando se escreve é por que se acredita em algo. Acho que há uma espécie de volta ao naturalismo na literatura brasileira que é uma submissão a essa idéia de que a realidade determina o que a realidade é.

Ruffato - Estamos de acordo.

Carvalho - Justamente pela literatura estar sendo feita já está resistindo ao desespero.

Ruffato - Uma coisa é como a realidade se sobrepõe às questões individuais. Outra é quando ela sufoca e você está colocando a cabeça para fora. Uma coisa que eu chamarei de mimética, que é quase jornalística, que se faz muito, e que acho um horror. Outra coisa é a reflexão sobre essa realidade.

Folha - O que vocês acham da idéia da literatura brasileira estar muito submissa à realidade?
Aquino -
Existe uma literatura que está, a rigor, muito próxima do jornalismo, que é quase o registro in natura da ocorrência cotidiana.

Tem outra que só parte da realidade, o que é maravilhoso. Não se pode ter a pretensão de apreender a realidade, você parte dela para criar. A realidade é sempre mais brutal do que qualquer ficção enlouquecida.
No meu caso a realidade está muito próxima do meu texto, é um caminho que escolhi, é até uma limitação minha. Mas até pela prática do jornalismo percebi que querer transportar a realidade de forma direta sem o filtro da ficção soa artificial.

Folha - Saindo do desespero e da relação com a realidade, gostaria de saber que traços vocês enxergam em comum entre o que é feito hoje na literatura brasileira?
Aquino -
A tentativa de vislumbrar a coisa como um recorte, caso das coletâneas "Geração 90", acho que é bastante discutível. O maior mérito desse tipo de reunião é fazer um mapeamento da produção de algum momento, a discussão sobre se é ou não geração é conversa fiada. Mas o recorte que o Nelson de Oliveira [organizador da "Geração 90"] faz mostra uma característica, a pluralidade de discursos. Faz muito tempo que a literatura brasileira não tem uma riqueza tão grande de abordagens. Não senti isso na década de 80. Os discursos são muito diferentes, aqui mesmo nessa sala.

Folha - Vocês concordam?
Hatoum -
Não acredito em literatura geracional. O tempo vai dizer qual texto sobrevive.

Carvalho - A diversidade sempre existiu, em qualquer época. O que é curioso e até perigoso é uma militância que não tem a ver com a literatura, mas com a visibilidade, um traço normal de militância de minorias. Se você pegar essas pessoas, elas não têm nenhuma questão em comum. Não é como a nouvelle vague, um grupo que fez um manifesto, iniciou um movimento. Aqui é uma militância para criar espaço no mercado. O perigo da impostura nisso é grande. Você junta alhos com bugalhos, como se fosse propaganda.

Luiz Ruffato - Você tem razão em algum momento, Bernardo, mas não é bem assim. Essa "Geração 90", que não existe, foi criada justamente para criar um espaço de discussão, que eu acho até que já se esgotou. Mas criou um fato. Quem vai ou não ficar não tem a menor importância.

Bernardo Carvalho - Para mim tem.

Ruffato - Para mim não. O que tem importância é o questionamento feito naquele momento. Cada um que tome seu caminho. Eu por exemplo não tenho nada a ver com "Geração 90".

Carvalho - Acho o contrário de você. O foco está na publicidade.

Ruffato - De quem?

Carvalho - Das pessoas.

Ruffato - Não concordo.

Carvalho - Na abertura de um espaço de mercado.

Ruffato - Isso é ótimo, não tínhamos mercado, hoje temos.

Carvalho - Mas isso é negligenciar as coisas em si.

Marçal Aquino - Mas aí entra a consciência que cada um tem das coisas que tem de escrever. Em qualquer momento da literatura ou arte vai haver impostura.

Carvalho - A literatura para mim tem um trabalho solitário muito diferente do das outras artes. Os movimentos são secundários. O que importa é o que vai ficar, não abertura de mercado.

Ruffato - Houve uma tentativa de abrir mercado, mas o que vai ficar não decidiremos nós.

Carvalho - Tudo bem, mas o movimento que para mim caracterizou essa "Geração 90" é, em primeiro lugar, uma autopromoção incrível, que nunca houve.

Ruffato - Estou fora.

Aquino - Bernardo, você não disse em uma entrevista que não lê seus contemporâneos?

Carvalho - Disse. Não é que não leia por mal, é uma deficiência minha. Interfere em meu trabalho, me desvia do meu caminho. Como disse nessa mesma entrevista, meu trabalho é frágil, tenho de ficar me defendendo o tempo inteiro para não desmoronar.

Milton Hatoum -Entendo o que o Bernardo quer dizer. Uma coisa é o movimento geracional, que tenta se impor, às vezes arrombando porta, de forma impositiva. Outra coisa é movimento estético de idéias. No Brasil, o modernismo foi um divisor de águas.

Isso não sabemos ainda o que vai ser. As polêmicas passam, mas os livros ficam. Mas esse movimento tem a ver com a publicidade, com a falta de experiência, inclusive de interiorização e reflexão daquilo que se quer expressar. Há uma pressa muito grande em publicar. E temas comuns em grande parte. Um erotismo cru, a violência, como se de alguma forma o conto-reportagem dos anos 70 ressurgisse com outra feição.

Folha - Nelson de Oliveira, organizador do "Geração 90", disse em entrevista à Folha que apesar de chamar o livro de "Os Transgressores" não via a coletânea como uma ruptura, mas como continuidade com o conto dos anos 70.
Hatoum -
Mas o que ficou do romance-reportagem dessa época? O romance-reportagem, que trata da singularidade para alegorizar a totalidade da vida brasileira, não vingou. E esses romances tinham um problema para alegorizar, o regime militar. Qual o problema hoje? É a brutalidade da vida brasileira? Vocês dois tratam disso de forma diferente [apontando para Ruffato e Aquino], porque há uma vivência aí.

Mas será que esse imediatismo de retratar essa brutalidade e em publicar vão levar a algo interessante?

Aquino - Mas com uma realidade dando soco o tempo todo na cara de todo mundo, e não é possível ignorar, escritores que se pretendam realistas não devem também ter voz? Você fala muito bem da alegoria que deu as cartas nos anos da ditadura, porém é o período em que surge também, e trazendo a marca da brutalidade, o Rubem Fonseca. E sem dúvida os anos 70 são o auge dele.

Hatoum - Temos hoje uma espécie de requentado do primeiro Rubem Fonseca, só que não se resolve. Porque em Fonseca a solução vem pela novidade do tratamento da linguagem. Agora, não.

Ruffato - Literatura é linguagem. Se você não cria linguagem não consegue discutir a realidade.

Carvalho - Concordo com você em quase tudo, mas quando falo que me incomoda a luta pela visibilidade, é porque não tem uma questão literária por trás. Aí é chocante, parece que é uma geração que funciona para o mercado, não para a literatura.

Ruffato - Digo mais, quando você lê entrevistas dessas pessoas, é chocante. Não há nenhum questionamento estético ou político.

Carvalho - É chocante.

Ruffato - Nisso concordamos.

Folha - Estamos falando de escritores voltados para o mercado...
Ruffato -
Bem, isso todos estamos [risos].

Folha - As tiragens médias de romances no país são de 3.000 exemplares, para 170 milhões de brasileiros. Como vocês avaliam nosso mercado editorial hoje? Como ele evoluiu na década de 90?
Carvalho -
Estou chutando, mas acho que o mercado cresceu muito. Tem escritores a dar com o pau. Nos anos 80, um brasileiro publicar um livro era um suor. Isso cresceu. Mas vende-se pouquíssimo. Eu, ao menos, sim. E isso não mudará. Não tenho ilusão de virar best-seller.

Hatoum - Acho que o mercado cresceu, mas não sei se qualitativamente. Depois, a lógica da literatura não é a do mercado. Tem muito a ver com a política educacional, com os problemas que estamos cansados de mencionar.

Folha - Existem bons autores jovens brasileiros?
Aquino -
Vejo vários sinais de uma literatura muito vigorosa.

Carvalho - Teve uma época em que imbuído de sentido cívico eu disse a mim que teria que ajudar algum gênio a ser publicado. A Companhia das Letras tinha pilhas de manuscritos que ninguém conseguia ler. Eu li por três dias. Fiquei com uma depressão profunda. Pensava: vou começar a escrever como esses caras.

Hatoum - O número de publicações cresceu de forma exponencial. Barthes dizia que a crise não era do romance, mas do excesso de livros. Disse nos anos 60.

Folha - Dos autores brasileiros do passado, quem está mais presente?
Hatoum -
O Brasil tem grandes escritores. "Crônica de uma Casa Assassinada" [de Lúcio Cardoso], os contos de Aníbal Machado, o "Amanuense Belmiro", do Ciro dos Anjos, um romance machadiano finíssimo. Osman Lins, Clarice. "O Quinze", de Rachel de Queiroz. Pedro Nava.

Ruffato - Uma literatura que tem um Machado de Assis já é uma literatura de peso.

Hatoum - E Guimarães Rosa.

Aquino - E o Graciliano Ramos.

Folha - Considerações finais?
Aquino -
É sempre bom falar de literatura. No futuro os leitores formaremos uma seita. E para breve, do jeito que as coisas vão indo. Mas está ótimo, é com essa seita que vamos falar.

Hatoum - O [poeta espanhol] Juan Ramon Jimenez diz que a literatura é arte da imensa minoria.

Carvalho - No Brasil é mais difícil. A elite é ignorante e iletrada. Ser um escritor no Brasil é um pouco uma aberração.
 

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