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27/07/2003 - 03h31

"Amarelo Manga" procura ver a miséria suburbana sem glamour nem clichês

SILVANA ARANTES
da Folha de S.Paulo

A mulher espera na calçada o ônibus que não vem. Usa cabelos presos, saia comprida, blusa sem decote. O homem atravessa a rua, cola a boca ao seu ouvido e sussura: "O pudor é a forma mais inteligente de perversão".

Ele veste uma camisa do Ibis, o time de futebol que fez da derrota sua marca distintiva. Trata-se de Cláudio Assis, 42, pernambucano, diretor de "Amarelo Manga", longa em que essa cena acontece.

Ela é a atriz Dira Paes, que interpreta no filme a personagem Kika Canibal. Multiplamente premiado (nos festivais de Brasília, do Ceará e de Berlim, na Alemanha), "Amarelo Manga" --estréia na direção de Assis-- será lançado nos cinemas de São Paulo, do Rio e de Recife no próximo dia 15.

Se "Amarelo Manga" se encaixasse num escaninho da produção cinematográfica brasileira atual, seria o do "árido movie", produção que vem do Recife, apostando na fórmula de falar do mundo a partir de sua aldeia.

Mas o filme tem características incomuns em número suficiente para ser visto como um corpo estranho no panorama geral.

Foi filmado com R$ 450 mil, numa época em que o mais barato dos longas-metragens brasileiros custa pelo menos o dobro desse valor, e a média dos orçamentos fica em R$ 3 milhões.

A penúria é uma contingência --foi o único dinheiro conseguido, em seis anos de tentativa-, mas também uma atitude em relação ao uso de dinheiro público no cinema nacional (através das leis que autorizam dedução do Imposto de Renda em benefício de projetos culturais) .

"Num país que não tem escola, não tem saúde, não tem nada, você não pode ficar dando R$ 8 milhões, R$ 10 milhões para um burguesinho falar de suas crises existenciais e passear pelo Brasil. Se é dinheiro do povo, tem que ter respeito", afirma Assis, notório por falar tudo o que lhe vem à cabeça.

Inteiramente ambientado na periferia recifense, "Amarelo Manga" enfoca personagens miseráveis -o que é uma tendência da safra mais recente-, mas o faz com uma particularidade: a pobreza não conduz os personagens marginalizados ao crime nem justifica qualquer violência. O filme tampouco pretende que o espectador se apiede dos miseráveis.

"[Os pobres] Não são coitados. "Amarelo Manga" mostra que pobre também é ruim. A burguesia não quer matar o pobre? O pobre também, se tiver vez, se deixarem, vai acabar com o rico. É uma luta, uma guerra. O filme não é para ter pena de ninguém. Tem que ter é respeito. O que essas pessoas estão dizendo é para prestarmos atenção nelas, que elas existem. Têm desejos, vontades, querem amar, viver, comer, ter prazer", afirma o diretor.

O ponto de vista de "Amarelo Manga" tem o elogio de outros cineastas, como Luiz Fernando Carvalho ("Lavoura Arcaica"), que assistiu à consagradora sessão do longa no Festival de Brasília do ano passado.

"Estamos diante de uma nova dramaturgia cinematográfica. É uma escritura que revela novos mundos e, principalmente, novos mundos não-saturados por clichês. É mais um filme sobre os desvalidos do que um filme sobre os nordestinos, especificamente. A dramaturgia é tão forte que transcende o aspecto regional", diz Carvalho.

Os personagens de "Amarelo Manga" gravitam em torno do decadente Texas Hotel, onde Dunga (Matheus Nachtergaele) é um cozinheiro apaixonado pelo açougueiro Wellington (Chico Diaz) que, semanalmente, leva uma peça de boi à espelunca.

Assis não poupa o público de ver um animal ser abatido e sangrado. "Não é para chocar. O que me levou a fazer dessa maneira foi simplesmente a vontade de contar a vida com sinceridade, ser o mais comum possível. O cara é açougueiro, mata boi, é o trabalho dele", diz.

Wellington tem uma mulher fervorosamente evangélica (Paes) e uma amante (Magdale Alves), que é amiga de Dunga.

Pelo Texas, circulam, entre outros esquecidos da sorte, um padre que descrê da igreja (Jones Melo), um necrófilo (Jonas Bloch) que suborna Rabecão (Everaldo Pontes), funcionário do Instituto Médico Legal.

Ambos frequentam o Bar Avenida, propriedade de Lygia (Leona Cavalli), mulher cansada da eterna repetição dos dias de muito trabalho e pouco prazer.

Além do enunciado sobre o pudor e a perversão, dois outros resumirão a vida e o destino dos personagens de "Amarelo Manga": "Só se ama errado" --reflexão de Lygia-- e "O ser humano é estômago e sexo", um dos muitos lúcidos devaneios do padre.
 

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