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13/01/2008 - 02h14

Se não tivesse morrido, Che não seria um mito, diz general

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IGOR GIELOW
do enviado especial a Moscou da Folha de S.Paulo

"Se não tivesse morrido, não creio que Che teria virado o mito que virou", afirma o general aposentado Nikolai Leonov. Pode soar algo óbvio, mas esse ex-oficial da KGB carrega uma autoridade que poucos têm para falar do argentino Ernesto Guevara de la Serna: foi ele quem fez o primeiro contato entre Moscou e aquele que se tornou o ícone do guerrilheiro comunista, vendo nele um potencial aliado para a União Soviética.

O encontro entre ambos aconteceu em 1956, no mesmo junho em que conheceu outro exilado famoso na Cidade do México: Fidel Castro, então um advogado de bigode que havia sido anistiado por sua tentativa de sublevação armada contra o governo do ditador Fulgêncio Batista em 1953.

O contato com ambos foi feito a partir de Raúl, irmão mais novo de Fidel e seu companheiro nas aventuras revolucionárias --hoje é ele quem comanda Cuba enquanto o ditador convalesce de cirurgias intestinais que quase o mataram.

Raúl e Leonov são amigos desde 1953, quando se encontraram durante uma viagem no navio italiano Andrea Gritti, que partira de Gênova em 5 de maio daquele ano com um grupo de estudantes latino-americanos que participaram do Festival da Juventude, uma espécie de convescote comunista para atrair jovens à causa, naquele ano ocorrido em Bucareste (Romênia).

Leonov estava a caminho da Cidade do México, onde começaria sua carreira diplomática no exterior com 25 anos. Ao notar que um dos latinos no barco, apelidado de 'Pulguita', carregava o livro 'Poema Pedagógico', do pai da pedagogia do 'novo homem' soviético, Anton Makarenko, estabeleceu contato.

Era Raúl, que estudava direito em Havana e tinha 22 anos. Em um mês, com seu espanhol ainda incipiente, ficaram próximos: Leonov ensinou Raúl a jogar xadrez e, em troca, aprendeu tênis de mesa. Despediram-se na escala em Havana no dia 5 de junho e, um mês e meio depois, Raúl estava com Fidel e outros participando do famoso assalto ao quartel de Moncada.

"Nunca imaginei o quanto aquele encontro iria repercutir no resto de minha vida", conta o general, que entrou na KGB em 1958, após um período de dois anos trabalhando na editora Progreso, de livros comunistas em espanhol, onde foi trabalhar após deixar o serviço diplomático --havia sido expulso do México em 1956 por seu contato com Che.

Na KGB, tornou-se o principal especialista em América Latina, voltando ao México e a Cuba em 1959-60 para apresentar o vice-premiê soviético Anastas Mikoian aos revolucionários cubanos.

O reencontro

Em 1956, com três anos como terceiro-secretário na Embaixada soviética na Cidade do México, Leonov encontrou acidentalmente Raúl numa rua. 'Foi uma surpresa', diz. Raúl, Fidel e outros participantes do assalto ao Moncada haviam sido anistiados pela ditadura de Batista um ano antes e estavam exilados no México, sob intensa vigilância --na realidade, preparavam a volta no barco Granma para estabelecer a guerrilha da Sierra Maestra em dezembro daquele mesmo 1956.

Ernesto, o médico

"Numa tarde, fui visitar Raúl, que estava gripado. Ele morava na rua Emparán, número 49. Era junho de 1956 e levei uns presentes da embaixada, inclusive uma caixa de charutos cubanos. Quando estava lá, ao lado da cama estava um sujeito bem-apessoado, que se apresentou como um médico argentino a serviço de Raúl. Ele disse se chamar Ernesto Guevara, a coisa do apelido Che só pegou muito anos depois. Ele parecia mais entretido com os charutos, todos estavam fumando, mas quando entendeu que eu era soviético e da embaixada, tudo mudou."

"Ele passou a fazer um verdadeiro interrogatório. Me atacou com uma catarata de perguntas sobre a União Soviética, perguntando muito sobre a educação e a estrutura do partido. Por seus pensamentos, ele era muito próximo do comunismo, embora não fosse comunista do ponto de vista nominal. Mas seu interesse profundo era saber como o sistema funcionava. Como a URSS tinha criado uma geração de pessoas educadas no comunismo, como se extirpa da consciência humana a idéia de propriedade privada."

Para essa educação do homem novo, do "Homo sovieticus"', Leonov ofereceu três livros a Guevara. "Eu consegui para ele 'Tchapaev', de Furmanov, 'Um homem de Verdade', de Boris Polevoi, e 'Assim Foi Temperado o Aço', de Nikolai Ostrovski'. Só que tudo acabou confiscado pela polícia mexicana quando eles foram presos pouco depois", lembra.

Entre os bens confiscados de Che havia um cartão de visitas de Leonov, o que levou o governo mexicano a "convidar" o soviético a se retirar. Ele foi a Moscou, onde abandonou a diplomacia até ser recrutado pela KGB.

Che como mito

Morto após ser capturado durante sua errática campanha guerrilheira na Bolívia, Che Guevara hoje adorna o imaginário pop globalizado. "Isso só foi possível porque ele morreu. A morte na luta engrandeceu sua figura, ele virou um símbolo eterno de rebelde. É parecido, muito parecido com dom Quixote e suas aventuras que lidam com a loucura. É um fenômeno que o torna parecido com Quixote e sua luta contra moinhos de vento, com Jesus Cristo. Todos prontos para sacrificar sua vida. E Che nunca se importava com a vida física", conta Leonov.

Ficaram próximos, embora não amigos, até a morte do argentino. "Eu lembro que, quando ele foi a Moscou no começo dos anos 60, um dia meus amigos pediram para conhecê-lo fora da programação oficial. Fomos à minha casa."

"Falando sobre seu fracasso na Guatemala [onde morava em 1954 e tentou participar de uma resistência a um golpe patrocinado pela CIA contra o governo esquerdista de Jacobo Arbenz], Che disse que, se algo de errado ocorresse com a revolução em Cuba, 'Que não me procurem entre os exilados numa embaixada, como ocorreu na Guatemala. Procurem por mim morto numa barricada, com a metralhadora na mão", diz o general, descartando contudo que Guevara fosse desequilibrado.

"Ao contrário, ele era muito inteligente e calmo. Tanto que, quando foi recebido no Kremlin, impressionou por falar com autoridade, mesmo sendo um pobre guerrilheiro de um país pobre."

O encontro com Fidel

O primeiro contato de um agente soviético com o hoje ditador convalescente Fidel Castro ocorreu casualmente, numa rua da Cidade do México, cinco meses antes de os 82 revolucionários cubanos embarcarem no 'Granma' com direção à Sierra Maestra em dezembro de 1956.

"Eu ia tomar um cafezinho com o Raúl perto da rua Emparán quando cruzamos Fidel. Ele não tinha ainda aquela barba característica, apenas um bigode. Percebi que ele não teve confiança alguma em mim, por ser estrangeiro. E, sabe como é, louro na Cidade do México é americano para todo mundo."

Leonov tentou quebrar o gelo pedindo a Fidel uma cópia de seu discurso "A História Me Absolverá", declamado durante seu julgamento pelo assalto ao quartel de Moncada. "Para minha surpresa, ele disse que tinha uma cópia. E tinha, uma edição clandestina pequena, enrolada em papéis de propaganda. Me lembro que a última folha cobrindo o texto era de Leite de Magnésia", ri Leonov.

"Mas ele só foi confiar em mim em 1960, quando fui com [Anastas] Mikoian a Havana. Ele me abraçou e disse que 'agora estou convencido", rindo.

Cuba hoje

"Eu vi Raúl em dezembro de 2006, conversamos bastante, lembramos os primeiros anos de nossa amizade. Os cubanos não estão nem um pouco preocupados com o futuro, estão muito tranqüilos. Fidel está fora há um ano e meio, e o que aconteceu? Os EUA achavam que sem Fidel a ilha iria para o espaço. Nada aconteceu. Perguntei a Raúl e a outros, e todo mundo pareceu muito calmo."

Essa é a avaliação, rósea, de Leonov. Ele a defende: "Em primeiro lugar, o socialismo cubano não é rígido, é muito liberal, em especial na economia. Liberalizaram muitas profissões, como num país capitalista. Estão estudando o modelo chinês. Não há o risco de uma contra-revolução social, como aconteceu aqui na Rússia em 1991-92, mas logicamente algo irá mudar porque não é todo dia que existe um Fidel, uma figura de envergadura política tão grande. Agora a coisa será mais coletiva. Não se vê Raúl como uma figura central, ele divide o trabalho, não faz sombra a ninguém."

Segundo ele, o líder em exercício lhe disse que os problemas de Cuba eram os de sempre: combustível e transportes. "O petróleo de Chávez não é de graça, e a preocupação toda é em garantir o abastecimento doméstico. Estão tirando toda sua energia do petróleo de lá, que é de baixa qualidade, e isso é um grande alívio. E faltam ônibus, estão tentando resolver comprando dos chineses e da União Européia."

Lee Harvey Oswald

Em 1963, Leonov já era o principal oficial de inteligência da KGB na América Latina, sendo baseado na embaixada da União Soviética na Cidade do México. Numa tarde de outubro, dois diplomatas o chamaram, já que era o único na embaixada que falava algum rudimento de inglês.

"Falaram que havia um americano esquisito querendo ir para a União Soviética, pedindo asilo. Eu fui lá e o sujeito estava completamente perturbado, não conseguia nem dizer seu nome direito, tremia, enrolava a língua. Me assustei quando ele me mostrou uma pistola, que escondia sob o casaco. Eu chamei a segurança e disse para ele voltar outro dia. Nunca mais apareceu."

Quase dois meses depois, ele viu o jovem na manchete de um jornal mexicano. Era Lee Harvey Oswald, morto dois dias depois de ser preso acusado de ter matado o presidente John Kennedy. "Tomei um susto enorme. Claramente ele não tinha condição de dar um tiro daqueles. Foi um bode expiatório, está na cara. Segundo nossas informações, Kennedy foi morto por sua atuação na crise dos mísseis, ou por militares ou por mafiosos cubanos. Ou por ambos", defende Leonov.

Oswald tinha efetivamente uma ligação com a União Soviética, tendo emigrado para lá em 1959 e vivido em Minsk (hoje em Belarus) até 1962, quando ganhou fama ao virar o primeiro americano a "redeserdar".

Quando chegou a Moscou, via Finlândia, recebeu asilo e prometeu passar segredos militares do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, ao qual tinha servido. Fracassou, tentou o suicídio e acabou obtendo permissão para ficar sob vigilância da KGB. Voltou aos EUA e, antes de supostamente matar Kennedy em Dallas, passou pelo México --onde tentou o contato com a embaixada e falou com Leonov.

Futuro da Rússia de Putin

Em 2003, o general voltou à vida pública ao eleger-se deputado pelo partido Rodina, nacionalista. Via com simpatia as inclinações nacionalistas de Vladimir Putin, embora não tivesse idéia de quem se tratava do ponto de vista de formação. "Nunca vi Putin, apesar de dizerem que fui seu mentor", brinca.

"Ideologicamente, ele foi se mostrando negativo, porque representa a grande burguesia. Ele não é um ditador, não tem talento para isso, mas alguém que cumpre o que a classe dominante lhe diz", afirma. Em 2006, o Rodina fundiu-se a dois outros partidos e passou a apoiar abertamente o Kremlin, fazendo Leonov desistir de sua carreira política ao fim de seu mandato, em dezembro de 2007.

Leonov afirma que Putin está repetindo o erro de Brejnev nos anos 70 e não fazendo investimento produtivo do dinheiro auferido com o preço alto do petróleo e do gás --só o atual presidente já amealhou US$ 1 trilhão desde que chegou ao poder em 2000 com os recursos dos hidrocarbonetos.

"Nos anos 70, em vez de modernizar a economia, o Politburo fez um crime, construindo palácios caríssimos em todos os lugares, para o partido. Agora, investimos em papéis que podem perder o valor amanhã, e não teremos nada para competir, apenas nossas armas atômicas", diz.

O general se diz um democrata, mas defende o comunismo, dizendo que sua derrocada ocorreu devido a líderes fracos e incompetentes, não ao sistema. "Não é contrasenso. Eu brigava com meu chefe na União Soviética, havia espaço para discutir dentro do partido, e das discussões nasce a verdade. Agora, como nas eleições de ontem [2/12/2007], dizem que só há uma alternativa. Eu detesto viver numa sociedade em que só há um caminho. Antes, havia pelo menos dois."

 

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