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13/09/2003 - 05h31

Kafka recria a América pelo estranhamento

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BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha de S.Paulo

Segundo Max Brod, o amigo que se recusou a destruir os manuscritos de Kafka (1883-1924), contrariando a vontade do escritor à morte, "O Desaparecido ou Amerika", romance inacabado escrito entre 1912 e 1914, deveria terminar com um capítulo sobre o "Theatro de Oklahama", "o maior teatro do mundo". O que Kafka deixou desse "último capítulo" não passa de um fragmento, mas é uma das principais chaves para a compreensão do seu primeiro romance, um texto extraordinário, finalmente traduzido no Brasil.

O austríaco Thomas Bernhard dizia: "Quando se abre um dos meus livros, acontece o seguinte: é preciso imaginar que se está no teatro". Seria possível dizer a mesma coisa de qualquer livro, de qualquer autor. Todo romance encena um tipo de teatro. Kafka, Beckett e Thomas Bernhard, entretanto, fazem desse elemento da representação literária uma evidência incontornável para o leitor. Trata-se sempre de uma representação da representação.

O "lugar" encenado na literatura é uma combinação de imaginação e memória, uma recriação simbólica do mundo pela imaginação. A América de Kafka é "Amerika", um país ao mesmo tempo imaginário e real. Kafka nunca pôs os pés fora da Europa. O caminho que o protagonista (o "desaparecido") faz pelos Estados Unidos, como quem desce aos infernos, como quem desaparece dentro de um sonho ou de um pesadelo, é análogo à queda de "Alice no País das Maravilhas". Como Alice, o jovem Karl, um rapaz alemão expulso de casa pelos pais e enviado à América depois de ter engravidado uma empregada, se vê envolvido em situações e julgamentos que não lhe dizem respeito, enredado numa engrenagem absurda, movida por culpas, interdições e acusações, cujo funcionamento sempre lhe escapa e anuncia os dois outros romances póstumos e inacabados do escritor: "O Processo" e "O Castelo".

A América de Kafka é uma espécie de empresa que abarca o mundo, onde a redenção é conseguir um emprego, conseguir fazer parte, pertencer. Kafka incorpora o sonho do imigrante, os clichês (na América, as moças são saudáveis e atléticas) e os equívocos de informação (uma ponte liga a cidade de Nova York a Boston) para criar não só um território próprio, imaginário, mas um discurso mais poderoso, mais agudo e mais realista do que qualquer representação fidedigna dessa realidade.

Karl é recebido na América por um tio senador que de início o protege para logo o abandonar, e daí em diante passa por uma série de estágios e encontros que o levam cada vez um degrau abaixo. Todos os lugares parecem prisões das quais ele tenta escapar. As relações sociais são um suplício. Karl se indispõe com os amigos do tio; é enganado por dois vigaristas; consegue se empregar como ascensorista de um imenso hotel, mas é despedido e obrigado a trabalhar para os dois vigaristas e a amante de um deles etc.

Tudo é estranho, incompreensível, claustrofóbico e sobretudo cômico. Cada encontro, cada gesto. "Amerika" é o mundo feito estranhamento. Kafka, um aficionado dos filmes mudos, queria fazer um romance à maneira de Dickens. "O Desaparecido ou Amerika" lembra mais um pastelão em que o indivíduo, sem identidade, passa a fazer parte de uma engrenagem à qual ele não pertence e que já não permite o bom senso ou o discernimento, pois o que importa é apenas que as coisas funcionem, que a máquina não pare.

O "Theatro de Oklahama", por fim, parece prometer a esse indivíduo tudo o que ele procurava: a liberdade, uma profissão e a paz tão merecida, além do reencontro --"por um encanto celestial", nas palavras de Max Brod-- com o passado e com as pessoas queridas.

"Todos fazem parte do Theatro de Oklahama!", diz o bordão. Todo mundo morre também. Uma das passagens mais belas do romance dá o sentido dessa ambiguidade: depois de conseguir finalmente um emprego no "Theatro", usando o codinome "Negro" (na falta de documentos) para ser admitido, Karl sai à procura de uma amiga que tinha reencontrado pouco antes entre as mulheres-propaganda que, vestidas de anjo, tocavam trombetas para atrair a população. Quer lhe anunciar a boa nova da sua contratação. Mas elas já não estão lá. Decepcionado, ele diz: "Pena (...), eu tinha uma conhecida entre os anjos".

A cena seguinte é a imagem, sinistra em seu aparente otimismo (como se num prognóstico inconsciente, Kafka vislumbrasse o mundo que por pouco não conheceu), da multidão de "gente despossuída e suspeita", embarcando nos vagões de um trem que os levará Deus sabe para onde: "Jamais tinham feito uma viagem na América de modo tão despreocupado".

A bela tradução e o posfácio de Susana Kampff Lages oferecem afinal ao leitor brasileiro esse que, apesar de inacabado, é um livro capaz de produzir sentidos e emoções inesgotáveis.

Avaliação:

O Desaparecido ou Amerika
Autor: Franz Kafka
Editora: 34
Quanto: R$ 43 (304 págs.)
 

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