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01/11/2003 - 04h50

"Paralelos e Paradoxos" traz diálogos de Edward Said e Barenboim

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ARTHUR NESTROVSKI
Articulista da Folha de S.Paulo

"O argumento é interessante: de todas as artes, a menos conhecida entre pessoas com cultura geral é a música. Em outras palavras, um sujeito culto [...] se interessa por literatura [...], sabe muito de cinema, pintura, escultura, teatro e não sabe nada de música. Existe uma espécie de 'apartheid' envolvendo a música, uma coisa que me parece exclusiva desta época."

Quem diz isso é o professor de literatura e crítico cultural Edward Said (1935-2003), em conversa com o maestro e pianista Daniel Barenboim, há três anos. Uma apenas entre muitas passagens desse teor, a citação não só justifica de dentro este "Paralelos e Paradoxos", mas sinaliza o registro incomum dos diálogos: não por acaso, a palavra que mais chama atenção é "apartheid".

Foi Ara Guzelimian, consultor artístico do Carnegie Hall, quem teve a idéia de gravar conversas entre Said --um dos críticos mais estudados ao redor do mundo-- e Barenboim, grande músico, conhecido pelo apoio a Israel, mas também pelas polêmicas que causou, por exemplo, ao reger Wagner em Jerusalém.

O livro é um registro de quatro desses encontros, mais dois debates públicos. Traz ainda um texto de Barenboim, comentando sua situação como músico judeu dirigindo uma casa de ópera na Alemanha, e outro de Said, discutindo "Barenboim e o tabu Wagner".

Não causa surpresa que o primeiro assunto seja a questão da identidade, já que "no começo do século 21, ninguém pode afirmar convincentemente que tem uma única identidade". Parece uma frase de Said, mas é uma citação de Barenboim, que em outro ponto vai mais longe: "Ter múltiplas identidades é não só possível como desejável". Aqui está o ponto de fuga do livro, para onde converge um leque de comentários.

No outro extremo, fica a questão da globalização, que tende a homogeneizar comportamentos até no mundo aparentemente protegido da música de concerto. Contra essa padronização, surgem as estratégias de reforço da identidade local --igualmente regressivas, seja com o fundamentalismo, seja no conservadorismo nacionalista. "Globalização ou fascismo", como resume Said. Nessas circunstâncias, o artista, assim como o intelectual, se vê largado numa corda bamba. O filósofo Adorno já preconizava que seria preciso participar e não participar da cultura: intervir de dentro, para ter efeito, mas manter-se fora, para cultivar alguma lucidez.

É naqueles pontos em que preocupações dessa ordem se cruzam com a prática da música que o livro ganha singularidade. Veja-se por exemplo a discussão de Barenboim sobre a ética da performance. A defesa da diferença ganha concretude nas lembranças de Barenboim do maestro Furtwängler (1886-1954). Para Barenboim, à maneira desse precursor, a música é sempre uma questão de fluxo e refluxo; todo som tende ao silêncio, para não dizer à morte, e a arte da interpretação visa sustentar uma continuidade viva.

Se o livro, nalguma medida, é frustrante, isso se deve à expectativa levantada por idéias fortes assim --em especial, dos comentários de Said. Vale o mesmo para quem espera mais do que críticas rápidas sobre o Acordo de Oslo e o conflito no Oriente Médio.

Por outro lado, é mais que relevante esses diálogos terem seu foco na música. Se ela constitui, às vezes, "o meio mais eficaz de fugir da vida", também pode ser "a melhor escola de vida", diz Barenboim. "Num sentido profundo, a música talvez seja a resistência final à aculturação e à mercantilização de tudo", escreve Said. As frases podem soar como inesperado otimismo, da parte de dois homens tão realistas; mas resumem a defesa apaixonada de um ideal humanista, que um e outro encarna para além das diferenças.

Avaliação:

Paralelos e Paradoxos
Autores: Edward Said e Daniel Barenboim
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 32 (192 págs.)
 

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