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07/12/2003 - 07h10

Profeta do ciberespaço enfrenta a realidade

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DIEGO ASSIS
a Folha de S.Paulo

O que é a Matrix? Muito antes que os irmãos Wachowski, em 1999, levassem ao cinema a pergunta de US$ 1 bilhão, o escritor americano William Gibson, 55, já tinha estado lá. E o livro "Neuromancer", que ganha agora reedição nacional dez anos após ter-se desintegrado das prateleiras, é o testemunho de fé do que (pre)viu.

O ano era 1984, os computadores pessoais e os primeiros sistemas de comunicação telemática ainda engatinhavam. Não havia internet. E Gibson, leitor incondicional das histórias de H.G. Wells e Júlio Verne, resolveu arriscar ele mesmo um palpite sobre o futuro.

"Um dia parei para observar algumas crianças em uma daquelas antigas casas de fliperama, com máquinas enormes em que você enfiava moedas para jogar. Os jogos não eram tão interessantes, eram apenas pontos se movendo na tela. Mas, na postura dos jogadores diante delas, vi um tipo de paixão física, percebi que o lugar que essas crianças queriam estar era dentro do jogo, do outro lado da tela, tomando parte daquele mundo virtual que elas estavam presenciando. E eu acertei na mosca", diverte-se o escritor, sem falsa modéstia, em entrevista à Folha, de Vancouver, no Canadá.

Com "Neuromancer", policial noir que troca o detetive por um hacker de computador e o cenário anos 30 por um futuro à "Blade Runner", Gibson foi o primeiríssimo escritor a descrever o ciberespaço. Batizou-o de Matrix.

"A Matrix teve sua origem nos primeiros jogos eletrônicos, nos primeiros programas gráficos e nas experiências militares envolvendo conectores cranianos. No monitor Sony, uma guerra do espaço bidimensional desaparecia atrás de uma floresta de brotos gerados matematicamente", escreveu. Lembra a imagem aí ao lado, não? Só que ela foi divulgada pela primeira vez na semana passada.

Pouco confortável com o rótulo de profeta, o escritor diz preferir o de poeta. "Sempre fui bom na poesia da tecnologia. Nunca me preocupei com o lado técnico dessas coisas. Do contrário, a minha imaginação teria sido confinada a um sentido mais realista do que, naquela época, era possível."

Assim a mesma atenção com que ouvia nos anos 70 sobre os experimentos secretos de informática do Exército americano, Gibson dedicou dias atrás a um técnico de telefone que lhe atendeu em casa.

"Você sabia que ninguém pode ter certeza se a nossa conversa está mesmo se passando entre o Canadá e o Brasil? Porque o sistema telefônico é tão inteligente, que alterna as coisas para se otimizar. Nós podemos estar nos ligando por satélite ou por uma rota na Itália, ninguém sabe, isso muda sempre. Eles [os técnicos] chamam isso de "a nuvem'", filosofa.

De metáfora em metáfora, "Neuromancer" faz da tecnologia o pano de fundo para a história comum de um herói de poucos escrúpulos que se presta a um trabalho de espionagem política para conseguir uma "recauchutagem" em seu organismo, entupido de drogas sintéticas. "Crio histórias sobre personagens e sociedades, a tecnologia é só uma forma de camuflagem, uma isca para os leitores", explica o autor. A "isca" rendeu a "Neuromancer" os respeitáveis prêmios de ficção Nebula, Philip K. Dick e Hugo.

Povoada de hackers, vírus de sistemas e computadores portáteis --que só viriam a se popularizar uma década depois--, a prosa de "Neuromancer" nos transporta a um universo cada vez mais familiar à medida que o tempo passa. "À essa altura, nem pretendo mais estar à frente da tecnologia. Faço apenas esforços para acompanhá-la", conta, referindo-se a "Pattern Recognition", seu livro mais recente, lançado no início do ano e pela primeira vez conjugado no presente do indicativo.

Na trama, a personagem central é uma "consultora de tendências". Alérgica aos principais clichês da sociedade de consumo --ela tem literalmente um treco ao ver o boneco da marca de pneus Michelin--, Cayce Pollard detecta padrões, percebe mudanças sutis no comportamento das pessoas e as vende para grandes multinacionais. No tempo livre, usa sua sintonia fina para buscar o fio condutor de uma misteriosa série de vídeos plantados na rede, aparentemente sem relação um com o outro. E o hobby vira vício.

"Queria escrever um livro sobre uma personagem que vivesse parte de sua vida real e emocional através da internet, mas fosse jovem o suficiente para não ter que ficar pensando sobre isso. A web está lá e pronto", diz.

Enfim, nem só de profecias vive William Gibson. Testada pelo tempo, contradita pelo final da Guerra Fria, em muitos casos, a imaginação do escritor foi até mais brilhante que a realidade:

"O que os hackers fazem hoje é algo provavelmente bem mais niilista do que qualquer coisa que eu pudesse ter imaginado: pessoas entediadas tentando quebrar o sistema só para provar que podem. Em "Neuromancer", os hackers são criminosos profissionais, eles ganham a vida com isso. E eu achando que o crime compensaria no ciberespaço!".
 

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