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04/01/2004 - 08h50

A qualidade doce-amarga de "Peanuts"

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ÁLVARO DE MOYA
especial para a Folha

Desde 2 de outubro de 1950, quando Charlie Brown atravessou a rua e foi alvo de um comentário de ódio de outro menino, até a virada do século, os leitores jamais viram um adulto desenhado. Tal como a genial peça de García Lorca, "A Casa de Bernarda Alba", em que nenhum homem aparece, mas sua dominação é onipresente, aqui jamais vimos a professora, porém a sabemos.

O autoconhecimento é um sofrimento real, no choque maldoso entre os seres, nos balõezinhos profundos e cheios de sutis insinuações que marcarão a criança até o confessionário ou o sofá de Freud.

Se o autor Schulz foi sucesso na vida, seus personagenzinhos, a começar de Charlie Brown, que jamais conseguiu empinar uma pipa, são destinados ao fracasso. Lucy van Pelt é a futura matriarca americana, que vai infernizar a vida do marido tal como faz com seu irmãozinho, Linus, que só quer manter sua infância naquele cobertor, que ela teima em lhe roubar. Ou quando ela --na tira predileta de presidentes dos EUA-- tira a bola de futebol da frente de Charlie no exato momento em que ele vai chutar.

Mas Lucy tem seu castigo. É apaixonada pelo eterno pianista Schroeder, que não larga um piano de brinquedo. Peppermint Patty nunca sabe a lição, vítima da não-vista professora. E todos os outros personagens são problemáticos.

Exceto, claro, o cão filósofo, o beagle Snoopy, que é a antítese de Charlie Brown. É, na sua imodesta própria opinião, um escritor de sucesso, aviador, grande atleta, cujos comentários auto-suficientes aparecem em balõezinhos no formato de pensamentos profundos.

Pior, com aceitação maciça pelos milhões de leitores nos jornais do planeta, ele periga assumir o posto de astro entre os personagens. Seria o máximo da humilhação para o pequeno menino herói ter sua posição perdida justo para um simples cãozinho. Felizmente, o autor sempre cuidou para que isso jamais acontecesse.

Schulz é o elo entre a tira tradicional e a moderna. Influenciou criadores de quadrinhos como Quino, com sua Mafalda, Maurício de Souza, com a Mônica, Jules Feiffer e especialmente o autor de Calvin, Bill Watterson --que sempre foi admirador de George Herrimann/Krazy Kat, Elzie C. Segar/Popeye e Walt Kelly/Pogo e achava que as tiras estavam decadentes, abrindo exceção só para Schulz e seus meninos-adultos.

Umberto Eco criticou eventos sobre "comics", como os salões de Lucca, afirmando que não se misturavam os estudiosos de Pavlov com cachorrinhos que confirmavam sua salivação ao ouvir o plim-plim em russo. Mas a presença de Snoopy nos estudos dos "comics", em todos os pontos do planeta onde se mostra um interesse por essa forma de expressão do século, foi importante para detectar a criatividade no mundo de hoje.

Como conclui o enciclopedista francês radicado nos Estados Unidos, Maurice Horn, na "The World Encyclopaedia of Comics", mais importante obra do gênero: "Estas crianças que raciocinam e agem como adultos, as situações nas quais a comédia é um tênue véu atirado sobre um sadismo oculto, a crueldade escondida sob uma risada, tudo isso permite a "Peanuts" uma qualidade doce-amarga."

Álvaro de Moya é estudioso de quadrinhos, autor de "Vapt Vupt" e "O Mundo de Disney", entre outros

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