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13/01/2004 - 09h25

Leia texto inédito de Walter Salles sobre "Diários de Motocicleta"

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WALTER SALLES
especial para a Folha Online

Quando Robert Redford e Michael Nozik me convidaram para entrar no projeto de "Diários de Motocicleta", eu li e reli a história da primeira viagem pela América Latina de Ernesto Guevara e seu amigo Alberto Granado, mas nunca pensei em adaptar um livro tão poderoso para o cinema.

A capa da versão em inglês trazia a seguinte citação: "'Easy Rider'" meets 'Das Kapital', do 'Times'"). Eu não me senti pronto para tal desafio. Antes de começar, decidimos fazer uma longa pesquisa que nos tomaria muito tempo, durante dois anos, na Argentina, Chile, Peru e Cuba.

Divulgação
Walter Salles dirige Gael García Bernal em cena de "Diários de Motocicleta"
Em Havana, nós tivemos a oportunidade de encontrar Alberto Granado, que em 1999 tinha 80 anos, e o privilégio de conversar com a família de Guevara. Sem estes encontros, este filme não teria existido.

Foi Granado, um homem de extraordinária memória --e destreza-- que nos deu informações decisivas que puderam ajudar no roteiro de José Rivera. "Em 1952, eu tinha 29 anos e Ernesto, 23. Como a maioria dos argentinos daquela época, nós sabíamos mais sobre os gregos e fenicianos do que sobre os incas e a América Latina. Nós não sabíamos onde era Machu Picchu".

Definitivamente, isso definiu o rumo que o filme tomaria. A história da descoberta de um continente desconhecido por dois jovens --antes da era da televisão e da informação globalizada. Tão importante seria também a história de dois jovens conhecendo suas identidades.

"Esta viagem foi inicialmente uma aventura, mas, aos poucos, Ernesto e Alberto descobriram a realidade social e política do continente em que viviam, e isso mudou completamente o tom da jornada e em quem eles se transformariam", nos disse o diretor do Centro de Estudos Ernesto Che Guevara de Havana.

Esta poderia ser o que chamamos de "un viaje inicíatico", como se diz em espanhol. Um rito de passagem. Oito meses na vida de dois jovens --e os mesmos que se separaram na Venezuela, no topo do continente, não sendo mais as mesmas pessoas do início da viagem na Argentina.

"Esta é a história sobre Ernesto antes de ser El Che", nos disse seu filho Camilo. Isso é essencial para entender o filme. "Diários de Motocicleta" é a primeira viagem de Guevara pela América Latina. Ele ainda era um estudante de medicina especializado em hanseníase quando montou com Alberto Granado na motocicleta "La Poderosa", uma Norton 500 de 1939. É somente no final da segunda viagem à América Latina que ele encontra Raul e Fidel Castro, no México. "Diários de Motocicleta" se passa dois anos antes do encontro e sete anos antes da vitória da Revolução Cubana, que aconteceu em 1959.

José Rivera estava consciente disso quando escreveu o roteiro do filme, consciente de que o jovem nunca fosse confundido com a imagem do mito. José se interessou mais em revelar o lado humano destes dois personagens únicos. Ele tentou olhar para estes jovens como eles deveriam ser, naquele momento. Ele também percebeu o humor sempre presente no livro escrito por Guevara, assim como na história que Granado contou sobre a viagem. Mais importante que isso, ele adicionou toques de sobriedade, como dois viajantes que mergulharam em uma jornada --não diferente do que fez Ettore Scola no roteiro de "Aquele que Sabe Viver" ("Il Sorpasso").

Para viver esse jovem Ernesto, nós convidamos quem eu considero um dos mais talentosos atores de sua geração: Gael García Bernal. Isso aconteceu há três anos, depois de "Amores Brutos" ("Amores Perros") e antes do lançamento de "E Sua Mãe Também" ("Y Tu Mama También"). Gael foi mais que um ator nesta jornada; ele foi um dos importantes catalisadores da nossa aventura fílmica. Ele pesquisou exaustivamente o seu papel por meses. Ele nos fez continuar quando estávamos cansados. Ele estava sempre inspirado, disposto a tentar em direções diferentes. E como Ernesto, ele estava pronto para atravessar o rio Amazonas --contra a correnteza.

As sessões para escolha de elenco realizadas na América Latina nos permitiram descobrir uma extraordinária geração de jovens atores da Argentina, do Chile e do Peru. Talvez por serem filhos da era pós-ditadura em seu continente, porque cresceram em sociedades livres em relação às que viveram o regime militar dos anos 70. Eles viram florescer o retorno da democracia.

Um dos grandes achados das sessões para escolha de elenco conduzidas por Walter Rippel foi Rodrigo de la Serna, que vive Granado no filme. Sua semelhança física com o jovem Alberto é surpreendente, mas não foi só isso que me fez escolhê-lo. Eu pensava que Rodrigo era um jovem ator de mesmo estilo dos grandes atores italianos como Vittorio Gassman e Alberto Sordi, sempre pronto a nos surpreender, misturando humor e drama em um único estilo. E há ainda uma incrível coincidência, que eu só soube depois de o escalar: Rodrigo de la Serna é primo de segundo grau de Ernesto Guevara de la Serna.

Junto do fotógrafo Eric Gautier, nós optamos pela simplicidade do formato Super 16, misturado a poucas imagens rodadas à noite em 35 mm. Nós optamos por uma simples e direta gramática do cinema para contar esta história. Na maioria das vezes, eu me detive em impor posições para a cena, tentando ser levado pela fluidez do que encontrávamos no caminho, sem idéias pré-concebidas.

Para fazer este filme, atores e técnicos vieram de todos os lugares, mas principalmente da Argentina, do Chile, do Peru e do Brasil (me nego a escrever o nome do meu país com "Z"). Algumas vezes, nós éramos 15, como em Cuzco e em Machu Picchu. Outras vezes éramos mais de 80, como quando filmamos na colônia de leprosos San Pablo, na Amazônia peruana. Nós estávamos conscientes das nossas diferenças culturais, e nem sempre estávamos em acordo. Mas, no final do trabalho, nós todos entendemos, eu acho, o que Ernesto quis dizer quando concluiu seu diário, que os latino-americanos são parte de uma só raça, parte de um só continente --do México ao Estreito de Magalhães.

Enquanto eu escrevo as palavras finais deste texto, muitas imagens perturbam minha mente. Será que o filme vai conseguir trazer algumas imagens do livro? Eu não sei, e não sou eu quem devo julgar. Eu posso apenas esperar que as discussões resultantes deste filme gerem um interessante debate --e focalizar a América Latina.

Walter Salles, 47, é cineasta e colunista da Folha. Ele escreveu este texto em inglês para o website do filme "Diários de Motocicleta", que ainda não entrou no ar, e foi obtido com exclusividade pela Folha Online.

Tradução: Marcelo Bartolomei


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