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31/05/2008 - 02h31

Leia "A queda de Saigon" sobre o Vietnã em novembro de 1973

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JAMES FENTON
Trecho da revista "Granta" cedido ao caderno Mais!

Saigon era uma cidade viciada, e nós éramos a droga; a corrupção de crianças, a mutilação de homens jovens, a prostituição de mulheres, a humilhação dos velhos tudo tinha sido feito em nosso nome_

Não quero dar a impressão de que era completamente ingênuo a respeito dos comunistas vietnamitas quando parti.

Eu me considerava um socialista revolucionário, do tipo que não acredita em nenhuma "pátria-mãe da revolução" e não cultua nenhum herói. Minhas crenças políticas tinham uma base muito ampla e um entendimento muito instintivo, mas não, espero, um caráter religioso.

Mas eu queria muito ver uma vitória comunista. Embora tivesse algumas encomendas jornalísticas, não estava viajando primeiramente como jornalista. Queria ver uma guerra e a queda de uma cidade porque... porque queria ver como eram essas coisas.

Uma vez eu vi um homem morrendo, de causas naturais, e minha primeira reação, ao perceber o que estava ocorrendo, foi ficar contente por estar lá. É isso o que acontece, eu pensava, então observe com todo o cuidado, não perca nenhum detalhe. Na primeira vez em que vi uma operação cirúrgica (foi no Camboja) tive a mesma sensação, e sem dúvida, quando vir uma criança nascer, ela será ainda mais poderosa.

A questão é simplesmente estar lá e ver. A experiência não tem nenhum valor essencial além dela mesma. [...]

A viagem seria inteiramente egoísta. Eu ia fazer exatamente o que queria. Quanto às crenças políticas, permaneceriam "na mesa". Tudo era negociável. Mas o medo da morte, que começara pela primeira vez a entrar em meus cálculos, me acompanhou na viagem.

Quando passei pelo controle de passaportes em Heathrow [aeroporto londrino], dei uma olhada nos jornais de domingo e vi que o poeta que eu mais admirava, W.H. Auden [1907-73], acabara de morrer em Viena. As pessoas falavam sobre ele na sala de espera ou, antes, não falavam sobre ele, falavam sobre seu rosto.

Eu via o rosto o tempo todo, no avião, nas salas de trânsito, no assento vazio ao meu lado, e me lembrava de Auden. Desde o começo ele desejara viver muito, e não era de surpreender que não tivesse vivido mais. Ele havia cortejado a morte, cultivado primeiro a excentricidade e depois aquilo que, ao mundo, parecia muito semelhante à senilidade.

Crateras das bombas

Não era senilidade, mas um disfarce útil para seu desespero de viver, a profunda infelicidade que ele ocultava. Auden se mantivera muito distante do mundo e pagara um preço alto por isso.

Entre dormir e ler, eu me vi atravessando uma depressão composta de uma parte de solidão, uma parte de expectativa relutante, uma parte de pavor e duas partes de autopiedade obscura. Em Mumbai, a depressão começou a se dissipar: dormi a manhã inteira no Sea Palace Hotel, depois, rendendo-me aos bons ofícios de um motorista e guia, saí para ver os lugares mais interessantes. A luz do entardecer primeiro era de um amarelo turvo; depois ficou verde.

Na colina Malabar, parei para olhar a vista espetacular, os urubus recolhendo ossos na torre pársi [a religião pársi mantém espaços em que a carne dos mortos é oferecida aos animais], as luzes ao longo da beira-mar (o "Colar da Rainha Vitória") e os casais sentados nos gramados dos Jardins Suspensos, em atitudes que lembravam uma gravura mogol em miniatura. [...]

Ao acordar na manhã seguinte, olhei para baixo e vi um rio serpenteante, o Salween ou o Irrawaddy [ambos em Mianmar], cujas águas turvas se estendiam por quilômetros até o mar. Vista do avião, a paisagem do Extremo Oriente era deslumbrante, prata e azul.

Você podia notar que havia chegado à Indochina quando avistava as fileiras e fileiras de círculos amarelos, onde a água barrenta enchera as crateras das bombas.

O medo da loucura

"Não sei se outros partilham meus sentimentos sobre essa questão", escreveu De Quincey [1785-1859], "mas pensei muitas vezes em que, se fosse compelido a abrir mão da Inglaterra e a viver na China, entre costumes, modos de vida e paisagens chinesas, eu iria enlouquecer".

Li essa frase outro dia pela primeira vez e, quando cheguei à última sentença, fiquei chocado mais uma vez com toda a náusea de minha primeira viagem ao Vietnã. "As causas de meu horror são profundas", prosseguia De Quincey. Mas as apresentava de forma bela:

"Nenhum homem pode fingir que as superstições selvagens, bárbaras e excêntricas da África, ou de tribos selvagens em outros lugares, o afetam do modo como ele é afetado pelas religiões antigas, monumentais, cruéis e elaboradas do Indostão etc. A mera antigüidade das coisas asiáticas, de suas instituições, histórias, modos de fé etc. é tão impressionante que para mim a vasta idade da raça e do nome sobrepuja o senso de juventude no indivíduo. Um jovem chinês me parece um antediluviano renovado... Naquelas regiões, o homem é uma erva daninha."

Fiquei impressionado, subjugado, pela grandeza e pela idade do tema: uma guerra que acontecia havia mais tempo do que eu vivera, um povo sobre cujas histórias e tradições eu sabia tão pouco. Eu tinha lido alguns livros para me preparar, mas o efeito da leitura foi fazer o país recuar ainda mais. [...]

Eu bem poderia ter acreditado que alguém estava tentando me dizer algo quando saí de meu quarto na primeira manhã em Saigon [hoje Ho Chi Minh] e tropecei no cadáver decapitado de um rato. Como a maioria dos jornalistas ingleses, eu estava hospedado no Hotel Royale, mas mesmo lá me sentia uma espécie de invasor.

Tinha de encontrar trabalho, tinha de vender algumas histórias, mas sentia medo de atravessar o caminho de outra pessoa. Havia uma epidemia de neurose infecciosa na época: assim que um jornalista se livrava dela, outro sucumbia. Atacava sem avisar _ no meio de uma refeição até então amigável nos bares, em seu quarto. E podia ser recorrente, como a malária.

Clientela

A razão para a neurose não era difícil de encontrar; na verdade, nos encontrava e nos perseguia o dia inteiro: Saigon era uma cidade viciada, e nós éramos a droga; a corrupção de crianças, a mutilação de homens jovens, a prostituição de mulheres, a humilhação dos velhos, a divisão da família, a divisão do país --tudo tinha sido feito em nosso nome.

As pessoas se lembravam da Saigon francesa [a cidade esteve sob domínio francês de 1859 a 1954] com um carinho sentimental, como se o problema tivesse começado com os americanos. Mas a cidade francesa, a Saigon da piastre [moeda da época do domínio francês], tinha representado o estágio do ópio no vício.

Com os americanos começara a fase da heroína, e o que eu via agora eram os primeiros sintomas da abstinência. Havia um tom de desespero na vida. Era impossível relaxar sequer por um momento.

As últimas tropas americanas haviam partido no fim de março, seis meses antes de minha chegada, e o que eu via agora era o que haviam deixado para trás: uma vasta indústria de serviços clamando pela atenção de um número cada vez mais reduzido de clientes: "Ei, você! Americano! Troca dinheiro, compra revista "Time", me devolve revista "Time" que vendi ontem, compra 'Stars and Stripes', me devolve 'Stars and Stripes', você ianque número um, número dez, número 10 mil, você quer foda número um, você quer 'O Americano Tranqüilo' [romance de Graham Greene], você quer 'Ugly American' [romance de Eugene Burdick e William Lederer], você me dá dinheiro eu engraxo sapatos, número um, sem problema"... Sem cessar, a busca apaixonada por dinheiro.

O bar do Royale era parcialmente aberto para a rua. O café do café-da-manhã tinha gosto de diarréia. Nós o engolíamos com laranjada Bireley's ("Refrescante... e não gaseificada!"). Através da janela os garotos engraxates ficavam espiando --"Ei! Você!". Estava começando outra vez.

Lama

Certa manhã, eu ignorava um espécime particularmente revoltante, quando ele pegou um punhado de terra e fingiu comer: "Você! Você não me dá dinheiro, você quer que eu coma cocô!".

Sua expressão, quando levava a sujeira à boca, era a mais horrível. Era impossível imaginar como um garoto daquela idade tinha adquirido esses traços: devia ter uns dez anos, mas o rosto tinha pelo menos 30 anos de degeneração e miséria.

Alguns dias depois dei a ele minhas botas para engraxar. Sentou-se no canto do bar e começou a trabalhar, primeiro com um palito de fósforo e um pouco de água, revolvendo meticulosamente toda a lama e a poeira da costura, depois com a graxa. O processo levou cerca de meia hora, e o barman e eu o observamos o tempo todo, fascinados. Estava determinado a mostrar sua superioridade em relação aos outros concorrentes no ofício.

Eu me diverti e dei a ele uma grande soma. Ficou furioso; estava longe de ser suficiente. Regateamos um pouco, mas finalmente desisti. Dei cerca de uma libra. No dia seguinte, na mesma hora, ele entrou no bar; seus olhos rolavam nas órbitas e ele cambaleava descontrolado em volta de mesas e cadeiras. Não sei o que tinha tomado, mas sabia como tinha comprado.

De todas as fórmulas engenhosas e desesperadas de obter dinheiro, a prática de drogar o próprio filho e deitá-lo na calçada em frente ao visitante me parecia a mais repulsiva. Não demorou muito para eu ver que nenhuma daquelas crianças ficava acordada durante o dia ou que, quando estavam adormecidas, era sinal de que havia algo errado.

Entre os estrangeiros circulavam histórias sobre o mesmo bebê ter sido visto nos braços de cinco mães diferentes em uma semana, mas a mendiga que ficava regularmente na calçada do Royale sempre tinha a mesma criança, uma menina de uns dezoito meses. Nunca dei dinheiro à menina ou à "mãe", nem a nenhuma das outras equipes.

A íntegra deste texto está no nº 2 da edição brasileira da revista "Granta" (278 págs., R$ 36,90), que será lançada nesta semana pela editora Objetiva/Alfaguara.

Tradução de Otacílio Nunes.

 

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