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24/02/2004
-
03h17
TONI VENTURI
especial para a Folha de S.Paulo
O cinema brasileiro, noivo pobre, almeja levar ao altar, sob a bênção do governo e da sociedade, uma noiva rica, a TV.
A parceria cinema & TV é um sonho antigo e um importante caminho para o desenvolvimento auto-sustentável da indústria cinematográfica nacional, mas esse matrimônio tem de nascer sobre bases sólidas. O idealismo e a defesa do "conteúdo Brasil" é um dos fatores que aproximam estes eternos enamorados, mas há um forte e surdo jogo de interesses.
A TV Globo, representante hegemônica das emissoras de televisão aberta, aparenta ter hoje genuínas preocupações com a entrada no mercado das poderosas multinacionais de comunicação. E, como qualquer empresa capitalista moderna, luta para preservar e ocupar novos espaços.
A aproximação cinema & TV têm de enfocar os interesses estratégicos dos dois lados. E o momento é propício. As televisões e outros órgãos de comunicação estão pleiteando uma vultosa ajuda econômica do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) para aliviar seus compromissos financeiros internacionais. Sabe-se que a Globo dá muito lucro, mas a holding Globopar precisa do empréstimo e do alongamento da sua dívida.
Espera-se que esse auxílio tenha uma contrapartida para toda a sociedade e que o cinema e a TV suplantem suas diferenças e negociem abertamente. Da parte do governo há boa intenção, criando a Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual) como agência reguladora. Na Europa, principalmente na França e na Espanha, há anos a legislação regula e limita a produção feita pela própria emissora e estabelece as co-produções e a obrigatoriedade de exibição dos filmes na telinha.
O patrimônio do cinema é sua capacidade de gerar conteúdo nacional, afinal esta arte só trabalha com essa matéria-prima, ao contrário das TVs, que vivem da importação de produtos de duvidosa qualidade. Nesse quesito, aplausos para a Globo, que investe milhões na teledramaturgia, o que acarreta um vigoroso incentivo ao nosso mercado.
Contudo se faz premente a reflexão sobre sua forma de produção, que é feita quase que totalmente "intramuros", o que exclui a promissora participação dos independentes, gerando uma enorme verticalização cultural em detrimento do desenvolvimento da produção regional.
Do outro lado, a situação é inversa. O latifúndio da TV é imenso, mas de maneira nenhuma está ameaçado neste casamento. A única coisa que se espera é que este dote atenda às expectativas dos cineastas "sem-tela", da sociedade e do governo, que vem reiterando a importância do cinema.
Por que as TVs não colocam uma pequena parte de seu faturamento (2%) em co-produções que elas mesmas escolheriam investir? Por que as TVs não podem se comprometer em exibir ao menos um filme nacional a cada dois meses? Isso agregaria um grande valor ao mercado independente. É só fazer as contas.
As poucas emissoras abertas exibindo cada uma delas seis filmes/ano dariam visibilidade e respeito à recente e premiada produção cinematográfica brasileira (mais de 200 filmes), que praticamente continua inédita para a população. E que tal se a TV dedicasse três minutos diários de seu horário nobre à veiculação de trailers? Vale a ressalva que o "negócio televisão" é uma concessão pública, portanto deve atender aos interesses da população.
Finalmente, quanto à idéia de as TVs terem direito de usar incentivos fiscais para produzir "conteúdo Brasil", me parece uma proposta descabida e um tiro no pé do cinema independente. A receita de uma emissora para produzir imagens é a própria capacidade de comercializar seu espaço, que todo o ano é parcialmente ocupado pelas campanhas publicitárias e institucionais do governo.
O único fomento do cinema nacional é captar recursos através das leis (Rouanet e Audiovisual), hoje proibidos às emissoras. Permitir que os poderosos departamentos comerciais das TVs disputem em pé de igualdade com os produtores independentes do cinema nacional o já "vampirizado" mercado de captação é como igualar cristãos e leões na arena.
A primavera do cinema nacional está em perigo! Esta ótima estação de filmes, que nos proporcionou obras tão diversificadas e instigantes como "O Invasor", "Madame Satã", "Desmundo", "Brava Gente Brasileira", "Cidade de Deus" e muitos outros, está ameaçada por uma tempestade que pode devastar uma geração de artistas, genuinamente brasileiros, que têm conteúdo e que têm o que dizer e mostrar.
Portanto casamento bom não pode ser celebrado na delegacia, sob a mira da arma do delegado nem com o noivo de joelhos. Casamento bom é uma parceria de idéias e da compreensão das necessidades do outro. Casamento bom é o que tem respeito, tolerância e generosidade. Afinal, quem vai ganhar são os convidados, o povo brasileiro, que vai poder assistir a um bom filme nacional, seja na tela do cinema ou no aconchego do sofá da sala.
Toni Venturi é diretor de "O Velho, a História de Luiz Carlos Prestes" e "Latitude Zero"
Defesa de conteúdo brasileiro aproxima cinema e TV
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O cinema brasileiro, noivo pobre, almeja levar ao altar, sob a bênção do governo e da sociedade, uma noiva rica, a TV.
A parceria cinema & TV é um sonho antigo e um importante caminho para o desenvolvimento auto-sustentável da indústria cinematográfica nacional, mas esse matrimônio tem de nascer sobre bases sólidas. O idealismo e a defesa do "conteúdo Brasil" é um dos fatores que aproximam estes eternos enamorados, mas há um forte e surdo jogo de interesses.
A TV Globo, representante hegemônica das emissoras de televisão aberta, aparenta ter hoje genuínas preocupações com a entrada no mercado das poderosas multinacionais de comunicação. E, como qualquer empresa capitalista moderna, luta para preservar e ocupar novos espaços.
A aproximação cinema & TV têm de enfocar os interesses estratégicos dos dois lados. E o momento é propício. As televisões e outros órgãos de comunicação estão pleiteando uma vultosa ajuda econômica do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) para aliviar seus compromissos financeiros internacionais. Sabe-se que a Globo dá muito lucro, mas a holding Globopar precisa do empréstimo e do alongamento da sua dívida.
Espera-se que esse auxílio tenha uma contrapartida para toda a sociedade e que o cinema e a TV suplantem suas diferenças e negociem abertamente. Da parte do governo há boa intenção, criando a Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual) como agência reguladora. Na Europa, principalmente na França e na Espanha, há anos a legislação regula e limita a produção feita pela própria emissora e estabelece as co-produções e a obrigatoriedade de exibição dos filmes na telinha.
O patrimônio do cinema é sua capacidade de gerar conteúdo nacional, afinal esta arte só trabalha com essa matéria-prima, ao contrário das TVs, que vivem da importação de produtos de duvidosa qualidade. Nesse quesito, aplausos para a Globo, que investe milhões na teledramaturgia, o que acarreta um vigoroso incentivo ao nosso mercado.
Contudo se faz premente a reflexão sobre sua forma de produção, que é feita quase que totalmente "intramuros", o que exclui a promissora participação dos independentes, gerando uma enorme verticalização cultural em detrimento do desenvolvimento da produção regional.
Do outro lado, a situação é inversa. O latifúndio da TV é imenso, mas de maneira nenhuma está ameaçado neste casamento. A única coisa que se espera é que este dote atenda às expectativas dos cineastas "sem-tela", da sociedade e do governo, que vem reiterando a importância do cinema.
Por que as TVs não colocam uma pequena parte de seu faturamento (2%) em co-produções que elas mesmas escolheriam investir? Por que as TVs não podem se comprometer em exibir ao menos um filme nacional a cada dois meses? Isso agregaria um grande valor ao mercado independente. É só fazer as contas.
As poucas emissoras abertas exibindo cada uma delas seis filmes/ano dariam visibilidade e respeito à recente e premiada produção cinematográfica brasileira (mais de 200 filmes), que praticamente continua inédita para a população. E que tal se a TV dedicasse três minutos diários de seu horário nobre à veiculação de trailers? Vale a ressalva que o "negócio televisão" é uma concessão pública, portanto deve atender aos interesses da população.
Finalmente, quanto à idéia de as TVs terem direito de usar incentivos fiscais para produzir "conteúdo Brasil", me parece uma proposta descabida e um tiro no pé do cinema independente. A receita de uma emissora para produzir imagens é a própria capacidade de comercializar seu espaço, que todo o ano é parcialmente ocupado pelas campanhas publicitárias e institucionais do governo.
O único fomento do cinema nacional é captar recursos através das leis (Rouanet e Audiovisual), hoje proibidos às emissoras. Permitir que os poderosos departamentos comerciais das TVs disputem em pé de igualdade com os produtores independentes do cinema nacional o já "vampirizado" mercado de captação é como igualar cristãos e leões na arena.
A primavera do cinema nacional está em perigo! Esta ótima estação de filmes, que nos proporcionou obras tão diversificadas e instigantes como "O Invasor", "Madame Satã", "Desmundo", "Brava Gente Brasileira", "Cidade de Deus" e muitos outros, está ameaçada por uma tempestade que pode devastar uma geração de artistas, genuinamente brasileiros, que têm conteúdo e que têm o que dizer e mostrar.
Portanto casamento bom não pode ser celebrado na delegacia, sob a mira da arma do delegado nem com o noivo de joelhos. Casamento bom é uma parceria de idéias e da compreensão das necessidades do outro. Casamento bom é o que tem respeito, tolerância e generosidade. Afinal, quem vai ganhar são os convidados, o povo brasileiro, que vai poder assistir a um bom filme nacional, seja na tela do cinema ou no aconchego do sofá da sala.
Toni Venturi é diretor de "O Velho, a História de Luiz Carlos Prestes" e "Latitude Zero"
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