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19/03/2004 - 03h32

Crítica: Jesus não salva, vende

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INÁCIO ARAUJO
Crítico da Folha de S.Paulo

Alguns detalhes chamam a atenção em particular na "Paixão de Cristo" de Mel Gibson.

A caminho da crucificação, uma mulher lhe estende uma toalha. O Cristo enxuga o rosto suavemente, gravando no tecido a sombra de seu rosto sofrido. Depois veremos Jesus ser pregado na cruz. Os pregos cortam sua carne com tal ímpeto, que já não vemos a carne nem o sangue: o objeto em si --o prego-- é que fica em destaque.

Mel Gibson desenvolve, em um nível, uma trama fetichista que coloca em relevo uma série de objetos (reais ou fictícios) que freqüentam a imaginação de todos os católicos desde a infância: o sudário, o cálice, a sandália, os pregos, a coroa de espinhos etc.

Ao mesmo tempo, convém não esquecer, toda a mitologia desse filme vem da fé católica (fé suposta, naturalmente) de seu diretor, que o teria produzido com dinheiro do próprio bolso. Não se trataria, assim, de um produto --mas de um ato de fé.

Mais tarde, a equipe de marketing do filme divulgou a história segundo a qual João Paulo 2º, após ver o filme, teria dito que "assim se passaram as coisas". À fé, acrescenta-se então a asserção de verdade: a autoridade papal em pessoa garante a veracidade do filme. Não importa que depois a igreja tenha negado a história e se fechado em copas --essa é a versão que circulou e pegou.

Temos então uma operação de marketing como raras vezes se viu. Ela vende, em um nível, não propriamente um produto, mas um ato de fé. Não uma obra de arte, mas o que devemos receber como a própria verdade revelada.

No entanto, num outro nível, incômoda, lá está a trama fetichista a atazanar a glória eterna dessa operação perfeita. O sudário, o cálice etc, essas lembranças de procissão, de visitas a Aparecida, são versões primitivas desses "gadgets" que a indústria cultural incorporou à operação comercial dos filmes: o carro do Batman, o bonequinho do E.T. etc.

Elas nos lembram de que esse ato de fé é uma operação comercial gigantesca, que "autenticidade" é aquilo que cauciona essa operação, e que "Paixão de Cristo" é nada mais que um produto hollywoodiano, de resto dos mais tradicionais.

Por conta da autenticidade, os atores usam o aramaico ou o latim. Tudo mais em matéria de autenticidade vem das convenções hollywoodianas: os carrascos romanos rindo a cada chicotada, as nuvens que se deslocam rapidamente, as quedas em câmera lenta. Santo Deus! É um filme ou uma clicheria? Em suas duas horas e pouco de duração, "Paixão" não produz um instante de grandeza, ou de beleza, ou de talento.

É triste, no mais, a maneira como usa os recursos da montagem clássica para jogar o espectador contra os judeus e produzir, sim, o espetáculo mais anti-semita desde que Veit Harlan realizou "O Judeu Süss", sob a supervisão de Goebbels.

A questão é que o anti-semitismo do filme, assim como o sadomasoquismo, não respondem a necessidades profundas. Eles entram, um pouco, como compensação à ausência atual de mito em torno de Jesus. Assim, ao encanto dos milagres ou mesmo da palavra de Cristo substituem-se os shows de chibata.

Toda essa dor hiperbólica é, como o uso do aramaico e do latim, sinal de autenticidade. Não o é, contudo, de verdade. Configura Jesus como um produto, não como o Salvador. Como produto e marketing, será um sucesso. Vide a bilheteria. Já a história, grande demais, escapa entre os dedos muito pequenos de Mel Gibson.

Avaliação:

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