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20/04/2004 - 08h46

Pianista brasileiro assume cargo vitalício nos EUA e critica Brasil

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RAFAEL CARIELLO
enviado especial à Filadélfia

Arnaldo Cohen, 55, mandou buscar o piano que tem no Rio. "O Brasil é inviável até para os meus netos", diz o pianista, que, após mais de 20 anos em Londres, está de mudança para os EUA, em busca "de liberdade".

Essa liberdade, afirma Cohen, "é exatamente o oposto do que acontece no Brasil", para onde ele pensou em voltar. Desistiu, entre outras razões, por causa do que chama de "vírus ACM@Brasil, sigla que quer dizer Anomalia Comportamental quase Medieval. Ele se propaga em muitos setores da sociedade, onde um simples 'eu não gosto dele' pode ser o suficiente para alienar e prejudicar bons profissionais".

Ele se diz vítima do vírus, já que está sendo boicotado, afirma, pela Orquestra Sinfônica Brasileira.

Com a carreira em ascensão --toca neste ano com três importantes orquestras norte-americanas: Cleveland, Los Angeles e Filadélfia--, foi convidado pela Universidade de Indiana para ser professor vitalício, em setembro. "A esse tipo de professor é dada a segurança de que ninguém poderá mandá-lo embora, para garantir a independência de idéias."

Parte dessa entrevista foi feita após seu concerto com a Orquestra da Filadélfia, no último dia 3. O jornal local, "Philadelphia Inquirer", elogiou de maneira entusiasmada a "sutileza" do pianista e disse que sua música soava "como uma mensagem divina". A conversa foi completada por e-mail, na semana seguinte.

Folha - A liberdade de interpretação está diminuindo?
Arnaldo Cohen -
O ser humano tem um problema sério com sua finitude e tenta se enganar. Vamos fingir, inventar um processo em que eu possa tocar perfeitamente, mesmo que eu não seja capaz. Esse é o CD --uma mentira. Com todas as edições, com as exigências do mercado, ele precisa que não haja nenhum "erro" ou nota esbarrada. Antigamente era impossível, você tinha uma chance só para gravar. O público compra um CD perfeito, e a pergunta que fica no ar é: você é capaz de fazer aquilo ao vivo? Não --assino embaixo. Duvido. Ninguém. Pode acontecer uma vez em mil. Por exemplo, os estudos de Chopin --soube que o Nelson [Freire] gravou. Fantástico. Ele toca isso em público? Se tocar, vou lá assistir. Ele é capaz de fazer ao vivo o que faz no disco? Eu garanto: não. Nem ele, nem eu, nem ninguém. Logo, tem alguma coisa que não bate. Em composição, chegou a haver liberdade quase total e aumento dessa expressão individual. Mas hoje você tem menos liberdade na interpretação dos clássicos do que tinha no final do século 19. Em nome da fidelidade ao compositor, você acaba tendo uma atitude interpretativa oposta à dos próprios artistas da época.

Folha - Os intérpretes deveriam ter mais liberdade?
Cohen -
Quem tem necessidade de gritar, a ele deveria ser dada essa liberdade. É muito mais difícil tocar um concerto de Mozart hoje. Você tem de encontrar maneiras de, dentro das imposições do status quo, somente levantando uma sobrancelha esquerda, fazer algo semelhante a um grito --e as pessoas têm de sentir isso.

Folha - O sr. acha que a liberdade de criação é maior nos EUA?
Cohen -
Essa é uma das razões que têm a ver com a minha mudança. Nos últimos 15 anos, 70% das sociedades de concerto italianas acabaram. O mesmo aconteceu na Inglaterra e na Alemanha. O Estado hoje não consegue subsidiá-las. A solução é a comunidade, são as doações, que é o que sempre aconteceu nos EUA. A Europa não tem tradição de mecenato, pessoal ou corporativo. Bem ou mal, a arte hoje é um produto de consumo, e você precisa de dinheiro, marketing, qualidade etc. Vejo a Europa com problemas sérios no futuro. Posso ousar muito mais aqui. Eles me deram o cargo de professor vitalício na Universidade de Indiana. O significado disso é independência acadêmica em termos de idéias e de filosofia. Se eu resolver amanhã que descobri um modo de tocar com o cotovelo, ninguém pode me mandar embora. Esta é a função do cargo: liberdade intelectual, de expressão. É por isso que os EUA são o que são. Para mim, isso não tem preço. Já tinha recebido propostas para tocar aqui. Mas vivia criticando os EUA, não gostava, fui assaltado aqui... Fui comunista, participei do movimento estudantil, então os EUA eram tudo o que não queria.

Folha - O sr. chegou a pensar em voltar para o Brasil?
Cohen -
Pensei, seriamente. Devo às dificuldades brasileiras essa chance [de morar nos EUA]. Até dois anos atrás, meu ideal era concentrar meus concertos nos EUA, mas, como adoro meu país, queria estabelecer uma residência no Rio. Minha idéia era ter uma base no Brasil, tocando no exterior. O problema da segurança foi o primeiro ponto de interrogação que me impediu de tomar a atitude precipitada de me mudar para o Rio. Mas, além disso, esse cargo vitalício é exatamente o oposto do que acontece no nosso país. Essa liberdade na realidade não existe no Brasil, por causa do vírus.

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