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21/04/2004 - 15h15

Artigo: O Che de Walter está na garupa de nossa moto

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da Folha Online

O texto abaixo foi publicado originalmente na Folha de S.Paulo do dia 17 de janeiro de 2004:

CONTARDO CALLIGARIS
Colunista da Folha de S.Paulo

"Diários de Motocicleta", de Walter Salles, me surpreendeu como uma interpretação, verdadeira e comovedora, da história de minha geração.

Assisti a "Diários" em circunstâncias que vale a pena mencionar, pois, de uma certa forma, elas realçaram o impacto do filme.

Na semana passada, Walter passou rapidamente por Nova York; devia visionar a cópia destinada à primeira apresentação pública, no Festival de Sundance. Ele estava a caminho de Cuba, onde queria mostrar ao menos alguns trechos a Alberto Granado (o companheiro do Che durante a viagem pela América Latina narrada no filme). De lá, Walter voltaria para Toronto, no Canadá (onde está preparando sua próxima filmagem), e, poucos dias depois, iria para Sundance. Eu, naquele dia, estava fazendo minha mala para vir a São Paulo.

Numa pequena sala de projeção de um estúdio da rua 54, assistimos ao filme, que, aliás, desde então, cresce na memória. Talvez contribua à sua força o fato de que a história é narrada com extrema simplicidade: os transtornos de uma filmagem árdua, pelas estradas da América Latina, subindo da Argentina até o Peru, tornaram-se lucros, pois impuseram um estilo despojado e direto.

Os fatos são conhecidos: em 1951, dois jovens estudantes lépidos e, quem sabe, um pouco folgados, saem de Buenos Aires a bordo de uma moto com vontade de viver uma aventura e conhecer o continente sul-americano. A viagem os transforma. Diante de nossos olhos, Alberto e Ernesto, sem bifes psicológicos ou ideológicos, descobrem a injustiça do mundo e a chance de dar um sentido à sua própria extraordinária liberdade. Numa cena quase conclusiva do filme (que não quero descrever para deixar ao espectador futuro a chance de vivê-la com toda a intensidade), o jovem Che decide, ao risco de sua vida, levar seu corpo e sua aventura do lado dos deserdados.

Ideal Guevara

Segundo uma pesquisa que li algum tempo atrás, o Che com sua boina é uma das imagens mais reconhecíveis de nossos tempos, se não a mais reconhecível. O pôster do herói revolucionário enfeitou e segue enfeitando quartos de estudantes pelo mundo afora, sem falar das camisetas, das xícaras, das capas de caderno e mesmo dos biquínis. Sobretudo hoje, em sua grande maioria, os jovens que escolhem Ernesto Che Guevara como inspirador de seu dia a dia não são leninistas e discordam de muitas das idéias que levaram o Che para Cuba, para Angola e para sua execução na Bolívia.

Como se explica então que Che Guevara tenha se tornado e continue sendo um mito da cultura popular mundial, uma espécie de estrela do cinema-realidade da história e da vida?

O filme de Walter responde perfeitamente a essa pergunta. O segredo do extraordinário apelo exercido pela figura do Che é revelado (e talvez esteja mesmo) naquela viagem que começou com a saída de Buenos Aires na garupa da moto de Alberto. Pois, naquela viagem, formou-se um homem que quis (e por isso pagou o preço que sabemos) conciliar uma sede intransigente de liberdade com a necessidade de uma escolha política radical e também intransigente.

Por isso, já nos anos 60, o Che era um ícone de ambos os lados do Atlântico, uma espécie de ponte entre a contracultura americana e o engajamento do maio francês e europeu: mistura de Jack Kerouac com Daniel Cohn-Bendit em seus dias melhores e mais raivosos. Ele era o ideal de uma vida em que a exigência de justiça e mesmo de revolução não contradizia a decisão (de uma certa forma, festiva) de encarar a existência como uma aventura.

Certo, esse ideal assombrou os anos 70: pensavam em Guevara os jovens europeus que, naquela época, escolheram a luta armada e acabaram massacrando inocentes pelas ruas da Europa. Mas, apesar dessa década triste, o ideal Guevara nunca deixou em paz os homens e as mulheres de minha geração, cronológica e política. Ele ainda funciona, hoje, como um lembrete, às vezes amargo.

Uma geração se interroga

Inevitavelmente, saí pensativo daquela sala da rua 54. Na calçada gélida, com Walter, ficamos batendo os pés no chão pelo frio, cada um expondo rapidamente o calendário das viagens e os projetos em curso, para ver se e quando a gente teria uma chance de encontrar-se novamente. Parecia-me, de fato, que estávamos ambos tentando fazer as contas do que sobrou de duas paixões que, bem ou mal, dão sentido à minha vida e, acredito, também à dele (e à de muitos outros) --duas paixões que o jovem Che, naquela viagem, conseguiu juntar: a inquieta vontade de manter o pé na estrada e a decisão de servir causas justas.

Mais duas observações.

1) Como quase todos sabem, a moto de Che e Alberto morreu no caminho, e grandíssima parte da viagem aconteceu a pé e de carona. Mas é bem-vindo que tanto o diário escrito por Guevara quanto o filme tenham por título: "Diários de Motocicleta". Os motoqueiros sabem disso: de todos os meios modernos de locomoção, a moto é a que mais oferece a sensação (ou a ilusão) de uma liberdade absoluta.

2) Talvez "Diários de Motocicleta" seja o melhor filme de Walter Salles. De qualquer forma, para quem segue o percurso de sua obra, o filme é um momento crucial de reflexão, por assim dizer, autobiográfica. "Central do Brasil" e "Abril Despedaçado" são ambos filmes sobre a outra margem do rio, onde vivem os deserdados da Terra. Agora Walter Salles conseguiu (ou precisou, tanto faz) narrar a história de alguém que, sem perder a ternura e a alegria da estrada, decidiu atravessar o rio.

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