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26/06/2004 - 09h13

Obras devem se tornar referência na historiografia da ditadura

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da Folha de S.Paulo

O conjunto da obra está destinado a se tornar o que se chamaria de "referência obrigatória" na historiografia da ditadura militar brasileira. Impressionam a quantidade e a qualidade das informações, não apenas pelo ineditismo do material colhido dos arquivos do general Golbery e das "longas, pacientes e sinceras" entrevistas concedidas por ele e pelo presidente Geisel ao autor, mas também pela maneira como se reconstituem episódios a partir do reprocessamento de versões extraídas de recortes da imprensa e fontes bibliográficas.

Todas as virtudes do jornalista Elio Gaspari --que não são poucas e têm marca autoral-- comparecem no livro: a apuração exaustiva, o engenho no ordenamento dos fatos e o estilo.

É disso, afinal, que se trata: um trabalho no qual o olhar e a faina do repórter, do editor e do redator de mão cheia se impõem. Não se espere, portanto, ao longo da leitura a visita do historiador-sociólogo ausente dos volumes anteriores. Na história de Gaspari contam menos os grandes processos e os movimentos estruturais do que as personalidades, com seus traços de caráter, seus humores, suas audácias e fraquezas.

Contam mais, também, a inclinação pelo caso fechado a pano rápido, o gosto por pequenos e significativos episódios, o prazer pelo anedótico e a paixão pela personagem. De certa forma, Gaspari comporta-se diante da história como quem deseja escrever-lhe um romance. Ao romanceá-la, no entanto, não o faz à moda dos que embaralham realidade e ficção. Jornalista, mantém-se fiel às fontes, de modo que a mão do escritor aparece na concepção, na costura e no feitio.

Como das vezes anteriores, há uma seleção vocabular característica e uma afeição peculiar pela frase. Nada mais "gaspariano", por exemplo, do que descrever o general Délio Jardim de Mattos como um homem calmo e irreverente que "passava pelas crises como se elas fossem coquetéis". Ou não resistir a destacar a sentença do ministro Mario Henrique Simonsen, segundo a qual "o poder é tão embriagador que passei a considerar o uísque supérfluo".

Em "A Ditadura Encurralada", como em todo velho e bom romance, há um conflito central. De um lado temos os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva; de outro, o ministro do Exército Sylvio Frota. Geisel e Golbery defendem, da trincheira da Presidência, a distensão política. Frota comanda o que Gaspari chama de "anarquia militar".

É o duelo do poder palaciano e do ordenamento institucional contra a autonomia do porão e a cegueira extremista; o embate entre a perspectiva de redemocratização e o caminho de volta às trevas. A armadilha está armada: os primeiros irão representar o bem, e o segundo, o mal.

Certamente, Elio Gaspari apresenta fatos que matizam o conflito e servem para contornar o risco do maniqueísmo. Lembrará --como já fizera em outras ocasiões-- o impressionante currículo de conspirador de Geisel, o fato de que o general alinhou com a tortura e a morte de prisioneiros políticos, além de não nutrir nenhuma simpatia pelo que se entende por democracia. Ainda assim, faz-nos torcer pelo funéreo personagem.

Há um Geisel de Gaspari. Pesa a seu favor o fato de o seu perfil emergir de contatos diretos e das impressões colhidas do convívio com seu círculo pessoal. O autor teve condições incomuns para formar um juízo a respeito de seu personagem e da maneira como deveria construí-lo. Mesmo assim parece um pouco demais enfeitá-lo como representante do "poder republicano" ou da "autoridade constitucional" em antagonismo com a insubordinação militar. Naquele Brasil, Constituição e República ou eram um sonho ou entes ficcionais.

Não obstante, havia o conflito. Esgrimavam a extrema-direita de Frota e seus cães de guarda e a direita austera do ditador de plantão e seu astuto chefe do Gabinete Civil. Gaspari reconstitui as trajetórias da previsível colisão de maneira admirável, ora fechando o foco e congelando a cena sobre determinados fatos, ora restaurando as seqüências ou emoldurando a trama na paisagem mais ampla dos acontecimentos nacionais e internacionais.

Uma das facetas do livro mais caras ao autor é a que se refere à Geração 77, à maneira como ela foi percebida pelos órgãos de segurança e ao papel que desempenhou na reformulação do campo das esquerdas --contribuindo para desalojar o Partidão de sua velha hegemonia.

Aqui, curiosamente, se rompe o diapasão. Se ao longo da narrativa predomina a minúcia factual, nas páginas dedicadas à "garotada" que sai às ruas após o "Pacote de Abril", o trabalho interpretativo se sobrepõe ao descritivo. Encolhem a extensão e a profundidade dos detalhes (os personagens da época certamente encontrarão lacunas e nem sempre estarão de acordo com o que se relata) e cresce a perspectiva conceitual acerca do fenômeno. O essencial predomina sobre o acidental. E fica aberta a trilha para que novas incursões a desbravem.

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