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24/07/2004 - 05h44

Umberto Eco evoca geração crescida à sombra do fascismo

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MANUEL DA COSTA PINTO
colunista da Folha

Um caso do neurologista Oliver Sacks narrado com o humor de Woody Allen: assim pode ser definido "La Misteriosa Fiamma della Regina Loana" ("A Misteriosa Flama da Rainha Loana"), romance de Umberto Eco que acaba de ser lançado na Itália.

Diferentemente de seus livros de ficção anteriores, ambientados em épocas distantes (como "O Nome da Rosa", "O Pêndulo de Foucault" e "Baudolino"), a nova invenção de Eco se passa na Itália do século 20 e está carregada de referências autobiográficas.

A trama começa nos anos 90, quando um livreiro de Milão chamado Giambattista Bodoni sai do estado de coma após acidente vascular cerebral e constata que, apesar de conservar as capacidades intelectuais, perdeu sua memória pessoal. Para tentar recuperá-la, vai a Solara, no Piemonte (mesma região da Itália em que Eco nasceu), mergulhando em reminiscências guardadas em livros de aventura e histórias em quadrinhos que reencontra na casa em que passara a infância.

O romance, aliás, é ilustrado por belas reproduções de capas de livros, revistas e jornais, cartazes de filmes e anúncios publicitários dos anos 30 e 40. O próprio título é retirado de um obscuro álbum que representa, para Bodoni, aquilo que representavam as "madeleines" para Proust ou a palavra "Rosebud" no enredo do filme "Cidadão Kane", de Orson Welles: um objeto que teria a capacidade de ativar a memória e salvar o passado de seu naufrágio.

A diferença é que, nesse caso, a perda do passado não se dá pela corrosão inevitável do tempo, mas por uma disfunção neurológica. Daí a semelhança com o episódio narrado por Oliver Sacks (e citado por Eco) em "O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu".

Bodoni não se recorda de ter casado e tido duas filhas. Em compensação, impressiona os médicos com sua prodigiosa cultura (a criatura, assim como seu criador, é um aficionado por livros antigos e raridades bibliográficas).

Mais do que isso: Bodoni (cujo nome homenageia um célebre tipógrafo) não se lembra de imagens, odores ou sabores --apenas de palavras. É capaz de desfiar centenas de metáforas sobre os prazeres do álcool, mas não tem memória da diferença entre um vinho de cozinha e um Barolo.
Vêm daí as ironias do livro. Para Bodoni, as experiências mais cotidianas são rituais de iniciação (ele tem a sensação de perder a virgindade com a mulher com quem é casado há 30 anos), mas também provocam cômicos constrangimentos: ele não reconhece uma ex-amante que encontra na rua e, surpreso com o prazer que sente em brincar com os netos, pergunta-se se não era pedófilo antes de perder a memória.

Tratando-se de um livro de Eco, o ponto forte de "La Misteriosa Fiamma" são os jogos intertextuais. Como Bodoni tem apenas uma memória "livresca", grande parte de suas frases são citações, às vezes difíceis de identificar. Quando o médico pergunta se ele sabe o próprio nome, Bodoni responde: "Chamai-me Ismael" (frase de abertura de "Moby Dick", de Melville); instigado a dizer a primeira coisa em que pensou ao recobrar consciência, declama o parágrafo inicial de "A Metamorfose" de Kafka --e assim por diante.

Por trás desses divertimentos eruditos, estão as preocupações do semioticista Umberto Eco com as relações entre linguagem e cognição: na primeira parte do romance, Bodoni é um corpo sem memória, observando os outros como quem olha animais no zoológico; na segunda, quando sofre outro acidente cerebral e entra novamente em coma, recupera a lembrança pessoal, tornando-se porém uma memória sem corpo.

A matéria-prima desse laboratório mental, todavia, vai além de Bodoni e confunde-se com a história da Itália dos anos de Mussolini, da Segunda Guerra e da resistência --cuja dramaticidade é temperada pela atmosfera nostálgica criada por gibis, músicas de gramofone e lembranças da "era do rádio" evocadas nesse romance sobre uma geração que cresceu à sombra do fascismo.

La Misteriosa Fiamma della Regina Loana
Autor:
Umberto Eco
Editora: Bompiani
Quanto: R$ 105,64 (458 págs.)
Onde encomendar: Livraria Cultura (tel. 0/xx/11/3170-4033)

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