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24/07/2004
-
07h08
SERGIO SALVIA COELHO
crítico da Folha
Descalçai as sandálias senhores, desfolhai as tranças, senhoras: "A Procissão", de Gero Camilo, passou por São José do Rio Preto para encher de fé os ateus e de orgulho os mansos de coração. Em um festival, os grupos lançam desafios de ousadia e, quando podem, requintes de produção: Gero traz na mochila pouco mais que seu coração.
Mas é um coração imenso. Seu texto --o primeiro que escreveu, ainda no Ceará-- carrega a responsabilidade de dar voz aos que sofrem de seca sem perder o gosto pela vida. E a grande densidade poética que obtém, com desenvoltura maravilhosa, tem o sopro dos que guardaram o frescor da infância, na ciência exata do popular: o sopro de Lorca.
Quando chega cantando, com suas duas romeiras-anjas, Tata Fernandes e Lelena Anhaia, para buscar o público no saguão do Teatro Municipal, seus olhos úmidos, férteis do húmus da humildade, já são olhos de quem viu Deus. Sugere a todos nós, desde já romeiros como ele, para contornar o teatro em silêncio, respeitando a solenidade do palco italiano, para ir descansar em uma instalação em arena construída diretamente em cima do palco.
Louva a fé pelo canto e conta a história de Tonho, que recebeu o recado dos anjos para buscar a terra prometida e não voltou. Quem nos fala pela boca de Gero é o Zé, o primeiro a xingar Tonho pela demora, o primeiro a afirmar que sempre teve fé nele, quando volta em forma de estrela.
Sim, trata-se da Teologia da Libertação, na qual Gero militou antes do teatro. Mas, sem faltar ao respeito pelo movimento que concilia luta social e religiosidade, seu espetáculo vai muito além do catequismo. A estrela de Tonho não é a estrela do Messias, que cega e pode fanatizar. Como qualquer estrela, essa só brilha à noite: é preciso viver de dia, conciliar dúvida e fé. E não temer um Deus com quem se divide goiabas.
Com um ritmo sereno, cheio de silêncios perfumados pelos sons do sertão, executados pelas músicas-cantoras com precisão e malícia, compartilha nessa vigília momentos inesquecíveis. Quando, por exemplo, ao ir reconhecer na platéia as estrelas dos que já morreram, reencontra Helena, seu amor perdido. Nos minutos em que compartilha com a moça da platéia um silêncio comovido, de uma grande história de amor que apenas se intui, cabem o "Romeu e Julieta" inteiro, na versão de Shakespeare e de Suassuna.
A elegância despojada dos figurinos, o capricho ingênuo dos adereços e instrumentos que formam um altar nessa capela improvisada, mas que bastam para consagrar o ritual, são estojos de veludo para contos instantâneos como o desse menino que fez todos rirem ao pedir dinheiro se dizendo anjo. Ninguém acreditou, ele bateu asas e sumiu.
Por tempo demais essa "Procissão" ecoou por palcos vazios. Não é mais possível deixar esse milagre voar. Gero Camilo, com suas asas de Tata e Lelena, pisa macio na ribalta do santo e sofrido mundo, e nos leva todos para o céu.
O crítico Sergio Salvia Coelho e a fotógrafa Lenise Pinheiro viajam a convite do festival
Avaliação:
Especial
Arquivo: veja o que já foi publicado sobre Gero Camilo
Arquivo: veja o que já foi publicado sobre o Festival de Teatro de Rio Preto
Gero Camilo concilia fé e luta social em peça
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crítico da Folha
Descalçai as sandálias senhores, desfolhai as tranças, senhoras: "A Procissão", de Gero Camilo, passou por São José do Rio Preto para encher de fé os ateus e de orgulho os mansos de coração. Em um festival, os grupos lançam desafios de ousadia e, quando podem, requintes de produção: Gero traz na mochila pouco mais que seu coração.
Mas é um coração imenso. Seu texto --o primeiro que escreveu, ainda no Ceará-- carrega a responsabilidade de dar voz aos que sofrem de seca sem perder o gosto pela vida. E a grande densidade poética que obtém, com desenvoltura maravilhosa, tem o sopro dos que guardaram o frescor da infância, na ciência exata do popular: o sopro de Lorca.
Quando chega cantando, com suas duas romeiras-anjas, Tata Fernandes e Lelena Anhaia, para buscar o público no saguão do Teatro Municipal, seus olhos úmidos, férteis do húmus da humildade, já são olhos de quem viu Deus. Sugere a todos nós, desde já romeiros como ele, para contornar o teatro em silêncio, respeitando a solenidade do palco italiano, para ir descansar em uma instalação em arena construída diretamente em cima do palco.
Louva a fé pelo canto e conta a história de Tonho, que recebeu o recado dos anjos para buscar a terra prometida e não voltou. Quem nos fala pela boca de Gero é o Zé, o primeiro a xingar Tonho pela demora, o primeiro a afirmar que sempre teve fé nele, quando volta em forma de estrela.
Sim, trata-se da Teologia da Libertação, na qual Gero militou antes do teatro. Mas, sem faltar ao respeito pelo movimento que concilia luta social e religiosidade, seu espetáculo vai muito além do catequismo. A estrela de Tonho não é a estrela do Messias, que cega e pode fanatizar. Como qualquer estrela, essa só brilha à noite: é preciso viver de dia, conciliar dúvida e fé. E não temer um Deus com quem se divide goiabas.
Com um ritmo sereno, cheio de silêncios perfumados pelos sons do sertão, executados pelas músicas-cantoras com precisão e malícia, compartilha nessa vigília momentos inesquecíveis. Quando, por exemplo, ao ir reconhecer na platéia as estrelas dos que já morreram, reencontra Helena, seu amor perdido. Nos minutos em que compartilha com a moça da platéia um silêncio comovido, de uma grande história de amor que apenas se intui, cabem o "Romeu e Julieta" inteiro, na versão de Shakespeare e de Suassuna.
A elegância despojada dos figurinos, o capricho ingênuo dos adereços e instrumentos que formam um altar nessa capela improvisada, mas que bastam para consagrar o ritual, são estojos de veludo para contos instantâneos como o desse menino que fez todos rirem ao pedir dinheiro se dizendo anjo. Ninguém acreditou, ele bateu asas e sumiu.
Por tempo demais essa "Procissão" ecoou por palcos vazios. Não é mais possível deixar esse milagre voar. Gero Camilo, com suas asas de Tata e Lelena, pisa macio na ribalta do santo e sofrido mundo, e nos leva todos para o céu.
O crítico Sergio Salvia Coelho e a fotógrafa Lenise Pinheiro viajam a convite do festival
Avaliação:
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