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25/07/2004 - 05h03

Dona Ivone Lara fala sobre contatos com o maestro Villa-Lobos

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PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Folha de S.Paulo

Não é preciso dizer quase nada. Dona Ivone Lara, 83, é a maior das cantoras e autoras vivas de samba. Está lançando um CD de composições inéditas, "Sempre a Cantar", editado no Brasil pelo selo independente MZA, mas financiado pelo equivalente francês Lusáfrica, do cabo-verdiano José da Silva. O resto ela mesma diz. Escute a voz de Dona Ivone Lara.

Folha - A sra. poderia contar como se envolveu com música?
Dona Ivone Lara -
Fui criada no meio de músicos. Meu ambiente familiar, no largo da Segunda-Feira, era muito alegre, com sambistas, chorões. Aprendi a cantar, a dançar e a gostar. Perdi meus pais e fui internada dos nove aos 18 anos. No colégio interno não cantávamos sambas, mas cantávamos hinos cívicos. A mulher do maestro Heitor Villa-Lobos, dona Lucília Guimarães Villa-Lobos, era professora de música e lecionava no colégio onde eu era interna. Cantei sob regência de Villa-Lobos no Orfeão dos Apiacás.

Folha - O que é um orfeão?
Ivone -
Orfeão artístico são vozes selecionadas no meio dos alunos, vozes que aparecem mais, são mais firmes e afinadas. Eu devia ter meus 12 anos, já cantando. Uma vez ou outra Villa-Lobos fazia visitas às escolas para ouvir os orfeões cantarem composições dele e de outros. Mas nós não conversávamos com ele, não.

Folha - O samba já era presente em sua vida nessa época?
Ivone -
Era presente quando eu estava de férias. Quando chegava em casa, estava no meio dos sambistas e chorões. Tio Dionísio era chorão, tocava violão de sete cordas, fazia ensaios, era amigo de Jacob do Bandolim, Pixinguinha.

Folha - Quando a sra. soube que viria a ser sambista?
Ivone -
Ah, isso aí foi depois de muito tempo. Antes me formei enfermeira. Freqüentava de vez em quando para me divertir, ia à Escola de Samba Prazer da Serrinha, depois Império Serrano. Mas não tinha grandes acessos, porque tinha responsabilidade como funcionária pública. Depois passei a tirar minhas férias sempre no Carnaval, para poder fazer parte dos componentes da escola. Saía na ala das baianas. Em 1965, fui convidada para ser parceira de Silas de Oliveira num samba-enredo, "Os Cinco Bailes da História do Rio". Todo ano o Império Serrano apresentava novidades, e naquele ano a novidade ia ser uma mulher sendo parceira num samba-enredo. Jorge Goulart, com aquele vozeirão, saiu puxando o samba. E nós ganhamos.

Folha - Uma mulher autora de samba-enredo causou escândalo?
Ivone -
Houve curiosidade. Havia bastante rejeição a mulheres em ala de compositores, mas na minha escola não houve, porque a ala foi fundada por meus primos, de maneira que eles até gostaram. Não fui rejeitada de jeito nenhum.

Folha - A cantora só foi reaparecer ainda mais tarde, não?
Ivone -
Isso. A demora em ser conhecida como cantora foi porque eu não tinha muito acesso, não ia a rádios, não freqüentava os festivais. Não dava tempo para mim. Me entreguei mesmo à vida artística de 1977 para cá, aí é que fiquei no meio artístico mesmo.

Folha - A sra. exerceu a enfermagem como vocação?
Ivone -
Olha, não foi por vocação, não, foi porque tive necessidade de ter um emprego. Passei no concurso e tive a felicidade de estar entre as dez primeiras candidatas, que tiveram direito à admissão no Serviço Nacional de Doenças Mentais, do Ministério da Saúde. Tornei-me funcionária federal. Aí fiz o curso de assistente social, tinha que dar assistência não só ao doente como à família do doente. Trabalhei na terapêutica ocupacional ao lado da doutora Nise da Silveira.

Folha - O que a sra. aprendeu com ela sobre doenças mentais?
Ivone -
Umas são congênitas, outras surgem depois por maus tratos ou doença. Uma coisa que contribuía muito naquela época para a doença mental era a sífilis. O doente, por ignorar, não fazia tratamento, e mais tarde vinha a se tornar um doente mental. E havia também a parte de esquizofrenia, uma porção de diagnósticos.

Folha - Hoje as pessoas são menos "malucas" que naquela época?
Ivone -
Isso não sei dizer, porque há tanto maluco aí [ri]... Poxa, esses políticos, então... Há uma porção, mas são malucos sabidos, né?

Folha - Por que sua trajetória na música foi tão passo a passo?
Ivone -
Em 77 me aposentei da enfermagem, aí fiquei só na vida artística e pude fazer disco, show, viajar. Aí houve os baianos, que foram meus pés-de-coelho, deram meus primeiros sucessos, junto com Clara Nunes. Quando cantei "Sonho Meu" para Maria Bethânia na casa de minha amiga Rosinha de Valença, ela se encantou. Gravou, chamou Gal Costa para fazer o contracanto. Caetano Veloso me ouviu cantar "Alguém Me Avisou", chamou Gilberto Gil para cantar. Graças a Deus, foram sucessos estrondosos, como são até a data presente.

Folha - O samba nasceu na Bahia?
Ivone -
Tia Ciata foi quem trouxe da Bahia para o Rio, mas não sei se nasceu lá. Vi muito o samba em Angola, com o nome de semba. Baiano é um pouco prosa, orgulhoso. Acham que da terra deles é que nasceu tudo. Mas a Bahia foi a primeira capital do nosso Brasil, então, pensando bem, eles estão com um pouquinho de razão.

Folha - A escravidão pegou sua família até que geração?
Ivone -
Pegou meus bisavós. Minha avó já nasceu de ventre livre, era mucama.

Folha - O Brasil é um país livre?
Ivone -
É um pouco complicado, né? Um pouco complicado. A gente não pode dizer de tudo, de tudo, que é livre, não.

Folha - A sra. é uma mulher livre?
Ivone -
Olha, sou, sim, porque desde criança trabalho. Posso dizer que fui emancipada com 12 anos. Perdi o pai com três anos, minha mãe com nove, por isso fui internada. Tudo que fiz foi da minha cabeça, sem ninguém me guiar. Lembranças tristes de vez em quando vêm, mas sou guerreira. Só não fui aquilo que não quis ser. Tudo o que usufruí e usufruo até a data presente é porque eu quis e fiz por onde.

Folha - O que mudou entre 1947, quando compôs o samba "Nasci para Sofrer", e 2001, quando lançou o CD "Nasci pra Sonhar e Cantar"?
Ivone -
Com o decorrer da vida, mudei. Dos nove aos 11 anos, senti muita falta de mãe, de direção. O que me valeu muito foi o colégio interno. Se fosse criada aqui fora, não sei o que seria de mim.

Folha - Que avaliação a sra. faria do samba em 2004?
Ivone -
Acho que tem crescido muito. Esta moçada tem dado valor ao samba, faz coisas muito bonitas, inteligentes. Mas o samba de raiz dá origem a tudo, sem ele não conseguiriam nada. O samba de raiz está em primeiro lugar.

Folha - E sobre o Brasil?
Ivone -
O Brasil tem sido um caso sério. Mas nós, brasileiros, graças a Deus tiramos isso de letra. Ninguém se impressiona com o que acontece, quase sempre vêm coisas boas. Deus é brasileiro.

Folha - O Brasil respeita seus cidadãos de mais idade?
Ivone -
Não tenho do que me queixar, tenho sido bem tratada. Respeito e considero os outros, tenho que ser considerada, não é isso? A gente tem que se impor.

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