28/08/2004 - 05h57

Em biografia, Guarnieri evita o status de mito dos palcos

SERGIO SALVIA COELHO
crítico da Folha

Logo no início de sua entrevista, publicada na coleção Aplauso sob o título "Gianfrancesco Guarnieri: Um Grito Solto no Ar", ao evocar sua primeira lembrança, um pátio em Milão, o ator adverte seu interlocutor, Sérgio Roveri, contra as tentações da verdade definitiva dos fatos.

Roveri, usando seu talento de dramaturgo, sabe restituir esse carisma que Guarnieri mostra no palco. Tem a mesma inteligência e agilidade de seu entrevistado para segui-lo sem entraves em seu fluxo de memórias.

O que se recolhe assim é uma coleção de imagens saborosas, um "Amarcord" brasileiro: seu pai, Edoardo, pichando os muros na madrugada carioca para o Partido Comunista; sua empregada que o levava ao morro ainda menino; seu primeiro emprego, o de levar o pagamento miserável a serventes de obra.

Embora reafirmando a todo momento o seu principal objetivo, o de defender a classe dos humilhados, nunca se vê Guarnieri superestimando o que fez. Sua entusiasmada participação no movimento estudantil se limitava muitas vezes a levar às passeatas alunos ávidos para matar aula.

"Eles Não Usam Black Tie" é simplesmente algo que ele tinha que botar para fora, e que o assombrava a cada nova peça. E sua obra metafórica, dos anos de chumbo, é conceituado como um "teatro de ocasião", não como obra-prima. Suas peças não podem servir para ilustrar uma tese simplesmente. Sobretudo, não menospreza a época atual em detrimento dos anos heróicos.

Sente-se falta de uma pressão maior por parte do entrevistador, para que o entrevistado aprofunde mais sua crítica à excessiva valorização do "evento" na atual produção teatral em detrimento da função social, por exemplo.

Acaba parecendo sucinta em entrevista, o que é em parte compensado por três depoimentos: Alberto Guzik depõe enquanto público apaixonado, José Renato contribui para a desmistificação do heroísmo do Arena, enquanto Juca de Oliveira descamba para a automistificação, o que só realça a elegância de Guarnieri.

De qualquer forma, abrindo com muita força a coleção Aplauso, "Um Grito..." registra o depoimento de Guarnieri com tudo o que o momento histórico exige: uma grande descontração, e uma imensa generosidade.

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