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31/08/2004 - 05h13

Arnaldo Baptista toca sozinho em trabalho grupal

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PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial da Folha de S.Paulo a Belo Horizonte

O banquete tropicalista esfarelou, hoje são outras as pessoas na sala de jantar. No centro dela, está um rapaz de 22 anos, que resolveu se filiar à guerrilha e lançar nas bancas de jornal seu disco de estréia, chamado "Let It Bed".

Divulgação
O cantor Arnaldo Baptista


O jovem Arnaldo Baptista mora em Juiz de Fora (MG). Exilou-se num ponto excêntrico ao eixo Rio-São Paulo após a tentativa de suicídio de 1982, que colocou em hibernação suas relações com o espólio tropicalista, as lembranças de sua banda mais famosa (Mutantes), o afeto ainda persistente entre ele e a parceira Rita Lee, as piruetas da música pop brasileira --da qual o outro Arnaldo, de 56 anos, é co-inventor.

Hoje, os dois Arnaldos se reúnem num só, centro gravitacional da mesa farta posta no restaurante Xapuri, em Belo Horizonte. O grupo ao redor dele é heterogêneo como a tropicália de 36 anos atrás.

"Ah, isso aqui é uma perdição", debruça-se sobre o frango ensopado capitão Lobão, 46, roqueiro, emepebista, editor da revista musical "Outracoisa" e diretor da gravadora independente que permite a volta de Arnaldo ao comércio, após três anos de conclusão de "Let It Bed" e várias recusas de gravadoras maiores --inclusive a Luaka Bop de David Byrne.

"Raramente eu boto pimenta na comida", informa John Ulhoa, 38, o John da banda Pato Fu. Sob efeito de empenho, paciência, desprendimento e confiança, ele é o homem que conseguiu concentrar Arnaldo para a retomada. John presenteou-o com um computador com programas musicais, produziu, picotou e editou horas e horas de gravação e fez a ponte, entre Juiz de Fora e Londres, com Rubinho Troll, 41, seu ex-colega na banda oitentista Sexo Explícito e outro dos catalisadores criativos da volta, presente na mesa só por telepatia.

Na outra ponta da mesa, observa o festim com discrição Fernanda Takai, 33, mulher de John e sua parceira no Pato Fu. Ela acompanhou o projeto como mera "produtora gastronômica", enquanto gerava e amamentava a pequena Nina, 10 meses, que é a caçula da trupe, usa camiseta do Kraftwerk e não compareceu ao almoço.

Filhos quase calados à mesa são Fabiano Fonseca, 28, e Daniel Albinati, 28, que conduzem em Belo Horizonte a dupla eletrônica Digitaria, responsável pela gravação de quatro faixas de "Let It Bed".

Lucinha Barbosa, 56, que zela pela sobrevivência de Arnaldo desde o vôo cego de 1982, se liquefaz entre os papéis de mãe, mulher, parceira, guardiã. Brotam dela algumas das palavras mais comovidas sobre o retorno: "Não dá nem para acreditar. No fundo, no fundo, eu já sabia que ia acontecer, mesmo com a medicina toda falando que não tinha jeito".

Lucinha refaz o trajeto: "Logo após o acidente, ele era um vegetal, uma bela cenoura. Os médicos diziam que com a lesão cerebral que ele teve seria difícil voltar a tocar e impossível voltar a criar".

Pano rápido para 2001-2004, Rubinho Troll descreve de Londres a superação das profecias médicas: "Cedo ficou claro que o Arnaldo queria tocar tudo na gravação. Ofertas de bateristas e outras participações receberam um gentil, mas firme "não, obrigado'".

John, Troll e os Digitaria fizeram edições, programações e efeitos. Mas Arnaldo cuidou de piano, teclados, guitarra, violão, bateria, banjo, gaita etc. Fisgou coisas da memória, mas compôs faixas novas, inéditas --"Bailarina", segundo John "uma bossa nova torta de harmonias complicadíssimas", é das que mais impressionam a equipe de apoio do criador.

O fluxo de (in)consciência dominou muito o processo. Segundo John conta, em certos momentos Arnaldo partia da burlesca "Gurum Gurum" e, pelo meio da cançoneta, começava a cantar o tristíssimo gospel tradicional "Nobody Knows". Um de seus trabalhos foi isolar extremos como esses, tornar a alegre "Gurum Gurum" e a desesperada "Nobody Knows" duas faixas independentes e distanciadas no CD.

Arnaldo descreve, à sua maneira, as oscilações de sua imaginação: "Tudo muda diariamente na minha cabeça. Um dia é um carro arrancando, no outro quero parecer uma libélula. Aos poucos a gente vai se entendendo melhor".

"Sou o "one man band'", brinca Arnaldo, que, numa das incontáveis pinturas que tem criado nos últimos anos como artista plástico, formulou a banda-sonho The Eus. Quem são The Eus? "Alá, Maomé, Cristo, Buda", ri.

Quando Lobão irrompe entusiasmado, sonhando com um encontro da turma toda no também ressurgido Circo Voador, no Rio, Arnaldo hesita. "Eu tenho que falar que não gosto de transistor." Lobão explica que o som do Circo é bom, que lá também há os amplificadores valvulados que Arnaldo tanto cultua. "Estou esperançoso", duvida o mamute mutante. "Quero também um dinheirinho para comprar meus valvulados", fecha questão.

É que não só Arnaldo, mas todos ali formam uma legião de sobreviventes do desmonte progressivo da indústria fonográfica. Antes do pulo na clínica de repouso em 1982, Arnaldo viveu como um "rebelde entre os rebeldes" (a expressão é dele), inadaptado tendo de montar banda que fosse, talvez, atuar como acompanhante da discothèque das Frenéticas.

Lobão, colega roqueiro de Arnaldo desde os 70, persona non grata nas gravadoras multinacionais, sabe que Arnaldo pode ser o grande pulo de seu projeto "Outracoisa". Amigo mineiro da família Baptista, John trocou o conforto da gravadora BMG pela criação "artesanal" de Nina, da volta do mutante e do próximo CD do Pato Fu --ainda sem abrigo certo em grande gravadora.

"Let It Bed" é fruto (não mais) proibido desse contexto. Proprietário, segundo John, de "um banco de trocadilhos 24 horas", Arnaldo adota modéstia serena e séria para descrever "Let It Bed": "Dei o melhor de mim em função do que era possível fazer".

Não foi pouco. Em meio às gravações no sítio de Juiz de Fora, ele baixou no hospital. "Saía das gravações exaurido, cansado, suado. Depois de uma semana acabou no hospital, Rubinho e John falaram "putz, vamos matar o Arnaldo!'", conta Fernanda Takai. "Aí ele ficou vivo. Ainda bem!"

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