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02/04/2005
-
09h10
CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S. Paulo
Quando se divulgou que o mito de Don Juan seria o tema do novo livro de José Saramago, poderia se imaginar que depois de escrever "Ensaio sobre a Cegueira" e "Ensaio sobre a Lucidez" o Nobel português nos brindaria com um "Ensaio sobre a Sedução".
Mas, como o escritor diz à Folha, em entrevista que aqui abaixo vai, "se há alguma verdade absoluta no mundo, é essa que diz que 'nem tudo é o que parece'".
Com "Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido", que a Companhia das Letras acaba de publicar, Saramago mostra-se no contrapé daquilo que vinha fazendo. Depois de muitos "ensaios", chega a hora da peça.
Em sua primeira incursão ao texto teatral desde "In Nomine Dei" (1993), não muda só de gênero; troca também de grau. Saem as sombras, entram as luzes. Pelo menos assim parece. E "nem tudo é o que parece" aí também.
Em entrevista por e-mail (reproduzida com a grafia vigente em Portugal, como pede o escritor que se faça com seus livros), ele conta o porquê. E põe em cena breves ensaios sobre velhice, mal, política e sedução.
Folha - Depois de diversos livros pesados, desta vez o sr. parece ter abraçado, dentre as "Propostas para o Próximo Milênio" de Italo Calvino, a "leveza". O sr. concorda?
Saramago - Sou tudo menos um escritor da "leveza" e duvido que Calvino, que morreu há precisamente 20 anos, repetisse hoje as suas famosas propostas para o milénio. Se meu "Don Giovanni" parece "leve", é só porque a ironia em geral também o parece. O fundo da questão pode estar, muitas vezes, em conflito com a superfície de que se reveste. Meus últimos livros traduzem esse conflito.
Folha - "Nem tudo é o que parece", diz o sr. na epígrafe de "Don Giovanni". Por que os provérbios, que já apareciam em outros livros do sr., ganham destaque neste?
Saramago - Por alguma razão se dizia que os provérbios são a sabedoria das nações. Sou de um tempo e venho de uma classe social em que o provérbio era como uma emanação de um saber colectivo, como um património da comunidade de que cada um tomava o que precisava em cada momento da vida. E se há alguma verdade absoluta no mundo é essa que diz que "nem tudo é o que parece"... Bastará olhar à nossa volta e para dentro de nós.
Folha - O sr. pinta um Don Giovanni que "está a fazer-se velho", mas que termina por encontrar pela sabedoria da velhice e pelas mãos de Zerlina um conforto maior do que o que acompanhava o fogo da juventude. Quem absolve no fim das contas: a velhice ou a sabedoria? Como o sr. lida com a velhice?
Saramago - Pela idade, há muito tempo que sou um velho. Mas só pela idade. Trabalho com a mesma vontade de sempre, a imaginação ainda não desertou de mim, compreendo melhor o mundo em que vivo, sou consciente do valor da vida, e, quanto à morte, ela chegará no seu dia, nem antes nem depois. Quem morre aos 20 anos, morre na sua velhice e não o sabia. Pense nisso.
Folha - O sr. se identifica mais com o lado sedutor ou com o seduzido do personagem Don Giovanni?
Saramago - Creio que a sedução, em Don Giovanni, resulta de uma espécie de tropismo, ou seja, um movimento de resposta a um estímulo exterior, neste caso a mulher. Don Giovanni, portanto, seria mais um seduzido que um sedutor. Aliás, é assim que as coisas se passam na vida.
Por muito lisonjeiro que seja para o homem imaginar-se como um falcão à caça de graciosas pombas, a inversa é mais verdadeira. O chamado poder de sedução está em relação directa com a debilidade de ser seduzido.
Folha - O personagem Comendador diz que cada vez mais "o mal é livre". O mal é maior e mais livre hoje? Vai crescer?
Saramago - Para o Comendador o mal é tudo quanto possa pôr em risco a estabilidade da moral tradicional, os valores burgueses, ao passo que para mim o mal é simplesmente a degenerescência do humano. Se crescerá ou não, teremos ocasião de vê-lo. Umberto Eco dizia-me outro dia que tinha medo do futuro pelo seu neto. Tenho certeza de que não era no mal metafísico que pensava.
Folha - A estátua do Comendador diz que "palavra de estátua não volta atrás". Seguindo a lógica do personagem, teríamos, as não-estátuas, todo o direito de voltar atrás. A assinatura do sr. em manifesto favorável a Cuba divulgada recentemente é de algum modo uma "volta atrás" com relação ao "até aqui cheguei"?
Saramago - Digo e repito que dissentir é um direito que não deveria negar-se a ninguém, tanto em Cuba como nos EUA. A questão está em saber se quem dissente o faz no exercício do seu legítimo direito, ou se se constitui como agente ou instrumento de inimigos externos. Para este último caso existe a lei, para o outro não poderá haver outra lei que a que reconheça o direito a dissentir. Sou amigo de Cuba, mas, como também se faz a um amigo, dir-lhe-ei sempre o que penso.
Folha - Com relação a Lula, o sr. já oscilou entre o muito otimista e o muito decepcionado. O sr. "voltou atrás" neste tema?
Saramago - Deixemos o presidente Lula em paz. Não sou seu mentor nem seu conselheiro, e se algumas vezes as minhas opiniões a seu respeito "oscilaram" foi porque ele "oscilou" na linha política que o levou à Presidência. Pergunte-se-lhe portanto a ele, não a mim, o porquê das "oscilações".
Folha - O sr. fala no prólogo do desafio que é recriar mais uma vez um mito como Don Juan (ou Don Giovanni). O que o sr. propõe de novo em relação às outras versões?
Saramago - Salvo na versão de Byron, que de certa forma regenera Don Giovanni, todas as outras o condenam. Eu, permita-se-me o pronome aparentemente imperioso, não só o não condeno, como o absolvo, e não só o absolvo, como o deixo livre para pecar outra vez, se assim tiver de ser. Condeno, sim, e sem perdão, a hipocrisia pessoal e social que pretendia condenar um homem ao inferno só, como se costuma dizer, por ter sorte com as mulheres... A isto chamaria moral de eunuco.
Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (128 págs.)
Especial
Leia o que já foi publicado sobre José Saramago
Saramago encena "ensaio sobre sedução"
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da Folha de S. Paulo
Quando se divulgou que o mito de Don Juan seria o tema do novo livro de José Saramago, poderia se imaginar que depois de escrever "Ensaio sobre a Cegueira" e "Ensaio sobre a Lucidez" o Nobel português nos brindaria com um "Ensaio sobre a Sedução".
Mas, como o escritor diz à Folha, em entrevista que aqui abaixo vai, "se há alguma verdade absoluta no mundo, é essa que diz que 'nem tudo é o que parece'".
Com "Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido", que a Companhia das Letras acaba de publicar, Saramago mostra-se no contrapé daquilo que vinha fazendo. Depois de muitos "ensaios", chega a hora da peça.
Em sua primeira incursão ao texto teatral desde "In Nomine Dei" (1993), não muda só de gênero; troca também de grau. Saem as sombras, entram as luzes. Pelo menos assim parece. E "nem tudo é o que parece" aí também.
Em entrevista por e-mail (reproduzida com a grafia vigente em Portugal, como pede o escritor que se faça com seus livros), ele conta o porquê. E põe em cena breves ensaios sobre velhice, mal, política e sedução.
Folha - Depois de diversos livros pesados, desta vez o sr. parece ter abraçado, dentre as "Propostas para o Próximo Milênio" de Italo Calvino, a "leveza". O sr. concorda?
Saramago - Sou tudo menos um escritor da "leveza" e duvido que Calvino, que morreu há precisamente 20 anos, repetisse hoje as suas famosas propostas para o milénio. Se meu "Don Giovanni" parece "leve", é só porque a ironia em geral também o parece. O fundo da questão pode estar, muitas vezes, em conflito com a superfície de que se reveste. Meus últimos livros traduzem esse conflito.
Folha - "Nem tudo é o que parece", diz o sr. na epígrafe de "Don Giovanni". Por que os provérbios, que já apareciam em outros livros do sr., ganham destaque neste?
Saramago - Por alguma razão se dizia que os provérbios são a sabedoria das nações. Sou de um tempo e venho de uma classe social em que o provérbio era como uma emanação de um saber colectivo, como um património da comunidade de que cada um tomava o que precisava em cada momento da vida. E se há alguma verdade absoluta no mundo é essa que diz que "nem tudo é o que parece"... Bastará olhar à nossa volta e para dentro de nós.
Folha - O sr. pinta um Don Giovanni que "está a fazer-se velho", mas que termina por encontrar pela sabedoria da velhice e pelas mãos de Zerlina um conforto maior do que o que acompanhava o fogo da juventude. Quem absolve no fim das contas: a velhice ou a sabedoria? Como o sr. lida com a velhice?
Saramago - Pela idade, há muito tempo que sou um velho. Mas só pela idade. Trabalho com a mesma vontade de sempre, a imaginação ainda não desertou de mim, compreendo melhor o mundo em que vivo, sou consciente do valor da vida, e, quanto à morte, ela chegará no seu dia, nem antes nem depois. Quem morre aos 20 anos, morre na sua velhice e não o sabia. Pense nisso.
Folha - O sr. se identifica mais com o lado sedutor ou com o seduzido do personagem Don Giovanni?
Saramago - Creio que a sedução, em Don Giovanni, resulta de uma espécie de tropismo, ou seja, um movimento de resposta a um estímulo exterior, neste caso a mulher. Don Giovanni, portanto, seria mais um seduzido que um sedutor. Aliás, é assim que as coisas se passam na vida.
Por muito lisonjeiro que seja para o homem imaginar-se como um falcão à caça de graciosas pombas, a inversa é mais verdadeira. O chamado poder de sedução está em relação directa com a debilidade de ser seduzido.
Folha - O personagem Comendador diz que cada vez mais "o mal é livre". O mal é maior e mais livre hoje? Vai crescer?
Saramago - Para o Comendador o mal é tudo quanto possa pôr em risco a estabilidade da moral tradicional, os valores burgueses, ao passo que para mim o mal é simplesmente a degenerescência do humano. Se crescerá ou não, teremos ocasião de vê-lo. Umberto Eco dizia-me outro dia que tinha medo do futuro pelo seu neto. Tenho certeza de que não era no mal metafísico que pensava.
Folha - A estátua do Comendador diz que "palavra de estátua não volta atrás". Seguindo a lógica do personagem, teríamos, as não-estátuas, todo o direito de voltar atrás. A assinatura do sr. em manifesto favorável a Cuba divulgada recentemente é de algum modo uma "volta atrás" com relação ao "até aqui cheguei"?
Saramago - Digo e repito que dissentir é um direito que não deveria negar-se a ninguém, tanto em Cuba como nos EUA. A questão está em saber se quem dissente o faz no exercício do seu legítimo direito, ou se se constitui como agente ou instrumento de inimigos externos. Para este último caso existe a lei, para o outro não poderá haver outra lei que a que reconheça o direito a dissentir. Sou amigo de Cuba, mas, como também se faz a um amigo, dir-lhe-ei sempre o que penso.
Folha - Com relação a Lula, o sr. já oscilou entre o muito otimista e o muito decepcionado. O sr. "voltou atrás" neste tema?
Saramago - Deixemos o presidente Lula em paz. Não sou seu mentor nem seu conselheiro, e se algumas vezes as minhas opiniões a seu respeito "oscilaram" foi porque ele "oscilou" na linha política que o levou à Presidência. Pergunte-se-lhe portanto a ele, não a mim, o porquê das "oscilações".
Folha - O sr. fala no prólogo do desafio que é recriar mais uma vez um mito como Don Juan (ou Don Giovanni). O que o sr. propõe de novo em relação às outras versões?
Saramago - Salvo na versão de Byron, que de certa forma regenera Don Giovanni, todas as outras o condenam. Eu, permita-se-me o pronome aparentemente imperioso, não só o não condeno, como o absolvo, e não só o absolvo, como o deixo livre para pecar outra vez, se assim tiver de ser. Condeno, sim, e sem perdão, a hipocrisia pessoal e social que pretendia condenar um homem ao inferno só, como se costuma dizer, por ter sorte com as mulheres... A isto chamaria moral de eunuco.
Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
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