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14/05/2005 - 20h01

Gus van Sant sobe ao panteão do cinema

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ALCINO LEITE NETO
Enviado especial a Cannes

O diretor Gus van Sant abriu, finalmente, as portas do cinema e da poesia para o Festival de Cannes, com seu maravilhoso "Last Days", até agora o principal filme da mostra competitiva.

Ufa, já não era sem tempo. Para chegar até aqui, a crítica teve de enfrentar, nos três primeiros dias, o claudicante "Lemming", de Dominik Noll, o panfletário "Kilomètre Zero", de Hiner Saleem, e o desastroso "Where the True Lies", de Egoyan.

"Last Days" é um filme experimental, muito triste e estranhamente glamouroso. Com "Gerry" (2002) e "Elefante" (2003), forma uma trilogia que coloca Van Sant em definitivo ao lado dos mais importantes inventores do cinema contemporâneo. Ao mesmo tempo, cria enorme dificuldade para enquadrá-lo na produção americana atual.

Nos três filmes, reverberam temas, indagações e problemas comuns, desenvolvidos por uma elaboração formal cada vez mais complexa, em que a narrativa é esvaziada, os diálogos perdem importância, o movimento se entrega à errância, a imagem se abre ao aleatório e à contemplação e a banda sonora é objeto de uma pesquisa nova e radical, a partir da música concreta e incidental.

"Meu filme é um exercício poético. Não quis criar momentos de cinema, mas momentos quaisquer", disse ontem em Cannes o diretor, em entrevista à imprensa ao lado de parte do elenco.

Isso quer dizer que Van Sant está pouco se lixando se deve contar uma história com início, meio e fim. Nem está se importando se terá a maior bilheteria do mês ou se o público ficará satisfeito com o seu longa, rodado em apenas quatro semanas, num único cenário, com pequeno orçamento e um bando de novos atores, entre eles Michael Pitt (o americano de "Os Sonhadores", de Bertolucci).

Pitt faz o músico Blake, inspirado em Kurt Cobain, o líder do grupo Nirvana, que se suicidou em 1994. No filme, Blake e alguns amigos se refugiam num casarão antigo e decadente, talvez para escapar ao assédio dos produtores, da mídia e dos fãs.

Mergulhado num delírio contínuo de drogas ou de loucura ou de êxtase (ou dos três juntos), Blake anda a esmo pela casa e seus arredores, dorme num bosque, cozinha um miojo, toca violão, enquanto resmunga palavras sem sentido e pouco compreensíveis. Seu corpo encurvado mal pára em pé, suas mãos tremem, enquanto os olhos miram fixamente as coisas, a paisagem e o céu escuro, como se estivesse abismado pela indiferença e o silêncio do espaço infinito. "Os personagens de 'Last Days' são como fantasmas, que dão voltas para lá e para cá enquanto os eventos acontecem", afirmou o cineasta. "Por ter passado à condição de mito, Blake já está um pouco morto antes de morrer fisicamente."

Toda a trilogia de Van Sant parte dessa confrontação com a morte. Estranhamente, nesta época em que a juventude virou modelo social para todas as idades, os personagens de Van Sant são adolescentes sensuais que de repente caem em prostração existencial e enfrentam o sem-sentido do mundo --seja em "Gerry", mais metafísico, sobre dois amigos perdidos num deserto, seja em "Elefante", mais social, sobre um assassinato coletivo, seja aqui em "Last Days".

A morte, a alienação, a angústia metafísica são, com certeza, temas muito abstratos para o cinema. Mas Van Sant consegue enfrentá-los como poucos, graças à força de sua poética cinematográfica, que concretiza a idéia mais complexa e o sentimento mais forte a partir da observação simples e intensa do mundo, dos corpos e das coisas.

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