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06/07/2005
-
09h41
MARCOS GUTERMANM
SYLVIA COLOMBO
Enviados especiais da Folha ao Rio
A literatura nunca sofreu tamanha interferência da realidade política como hoje. Para o escritor indiano Salman Rushdie, 58, Jane Austen (1775-1817) podia ignorar as guerras napoleônicas porque a esfera pública não interferia tanto no cotidiano. "Nós vivemos num mundo muito estranho, e as conseqüências para a literatura são profundas", disse o autor, anteontem, no Rio, às vésperas de embarcar para Parati, onde lançará, na Flip (Festa Literária de Parati), o livro "Shalimar, o Equilibrista".
Nele, um embaixador norte-americano, Max Ophuls, de origem francesa, é assassinado. Sua filha, India, passa então a buscar sua identidade por meio do passado misterioso da mãe e das motivações do assassino de seu pai, Shalimar, personagem marcado por uma traição amorosa. É por meio dessa história de amor que Rushdie faz referências ao "encolhimento do mundo", ou seja, ao fato de que o que acontece hoje na Caxemira (Índia) pode influenciar a vida em Los Angeles, em alusão aos dois lugares da ação.
Em entrevista à Folha, Rushdie não quis comentar a recente eleição de um líder linha-dura no Irã, país onde foi condenado à morte pelo aiatolá Khomeini, em 89, que via em "Os Versos Satânicos" agressões ao islã. "Perguntem sobre lugares que conheço, como a Índia, o Reino Unido ou os EUA." Por conta disso, também não quis falar da realidade brasileira. "Leio os jornais, mas não me pergunte."
Folha - Quanto do sr. há em "Shalimar, o Equilibrista"?
Salman Rushdie - Não há um personagem que fale pelo autor. Meu objetivo foi criá-los como seres empenhados em suas próprias histórias. A maneira como os personagens do livro evoluem não tem nada a ver com uma vontade de expor meu ponto de vista sobre o mundo. Flaubert disse: "Madame Bovary, c'est moi", mas é claro que é mentira. Madame Bovary não é Flaubert. A verdade é que você deve estar em cada frase do seu livro. Há algo com que devemos lidar mais do que nunca agora, que é o fato de que nossas vidas não são mais vidas privadas. Quando Jane Austen escrevia, ela ignorava as guerras napoleônicas. Podia contar a história de seus personagens sem se referir à esfera pública, pois esta não interferia na vida dos seus personagens. Só que hoje não vivemos mais assim.
Folha - Hoje um escritor pode ignorar a situação mundial?
Rushdie - Não quero ditar regras, mas é difícil para mim. Para explicar a vida das pessoas, você precisa levar em conta o mundo em que elas vivem e o efeito direto que esse mundo causa nelas.
Folha - Como no exemplo da Caxemira, que está no livro.
Rushdie - Sim, a vida de Shalimar foi destruída por dentro, pela traição de sua mulher mas também por fora, pelas forças da história. A maneira como costumávamos acreditar no destino dos personagens não existe mais, agora é o destino que faz os personagens. É preciso trabalhar com esse duplo sentido para escrever. Uma boa questão é se somos os mestres ou as vítimas do nosso tempo. Nós comandamos nossas vidas ou não temos chances?
Folha - E o que o sr. acha?
Rushdie - As duas coisas. Às vezes, nós podemos comandá-la, noutras não. Por exemplo, esse concerto de rock que houve no fim de semana, o Live 8, foi uma tentativa de um grande número de pessoas de causar algum impacto transformador. Pode-se dizer que é simplista, mas pode funcionar. Mas é claro que, se você estiver num arranha-céu e um avião bater nele, não importará se você viveu sua vida bem ou mal. Nós vivemos num mundo muito estranho, e as conseqüências para a literatura são muito profundas.
Folha - Por quê?
Rushdie - Porque uma das grandes perguntas para um escritor é: como se diz a verdade sobre o mundo? De acordo com o nível do seu talento, a profundidade da sua visão, ou das limitações que todos nós temos. De outro modo, você não dirá a verdade.
Folha - Os americanos sabem o quanto o que acontece na Caxemira afeta a vida deles?
Rushdie - Acredito que o 11 de Setembro tenha sido um alerta. Mostrou que o mundo não está mais separado. Os americanos sentiram na pele as conseqüências de um mundo que encolheu.
Folha - Há uma grande importância em relação a nomes e identidades em seu livro.
Rushdie - Acho que a questão da identidade é central. Ninguém no livro gosta do nome que tem, exceto Max [o embaixador na Índia].
Folha - Max falsificava identidades quando estava na Resistência francesa.
Rushdie - Exato. Ele é o único que sabe quem é. O livro é sobre pessoas que não sabem quem são. No caso de India [filha de Max], há uma boa razão para isso. Durante toda a sua vida lhe mentiram, inclusive sobre seu nome.
Folha - Por que Max compara a situação na Alsácia, nos anos 30/40, ocupada por França e Alemanha, com a da Caxemira, disputada por Paquistão e Índia?
Rushdie - O interessante na região da Alsácia é a questão das fronteiras cambiantes. No livro, que é sobre a Índia, sobre a Caxemira, essa questão está em primeiro plano. Foi uma maneira de unir as pontas do mundo. Na França, durante o jugo nazista, há a Resistência, que é a reação militar à ocupação. Na Caxemira, há a resistência ao poder ocupante, e essa reação pode não ser necessariamente terrorismo --depende de que parte do mundo falamos. Temos aqui uma forma muito similar de ação, tomada em diferentes circunstâncias. O julgamento que fazemos desses momentos é diferente.
Folha - O destino da Caxemira é há muito tempo decidido por forças externas.
Rushdie - Sim, acho que essa é a grande tragédia da Caxemira. Os caxemirenses querem que os deixem em paz. Há o Exército indiano e há os grupos patrocinados pelo Paquistão. Ambos destruíram a Caxemira de diversas maneiras. A intelligentsia indiana não tinha idéia do quão grande era o ressentimento na Caxemira. Mas não era preciso ser profeta para ver a insurgência, bastava ter olhos. Quando chamei a atenção para o problema, me chamaram de "muçulmano comunista".
Folha - E além disso há os grupos terroristas...
Rushdie - Veja, o islã na Caxemira sempre foi místico, gentil e aberto, não como o dos jihadistas. Não havia segregação sexual. Havia uma grande mistura religiosa. Mas então vieram os grupos extremistas, que tentaram impor à Caxemira uma idéia de islã estranha a ela. A violência funcionou, e hoje na Caxemira se vêem mulheres cobertas, o que é anticaxemirenses. Sempre me senti mal sobre isso, porque minha família é de lá, passava férias lá quando criança. Para todos na Índia, a Caxemira é o espaço encantado da infância. E foi destruído, obrigando-nos a viver num mundo sem sonho. Meu livro é um pouco sobre como viver num mundo no qual seus sonhos são destruídos.
Folha - E, para Max, os sonhos acabaram na Europa. Ele é nostálgico. O sr. também parece saudoso dos velhos valores.
Rushdie - Não diria "velhos valores". Diria "valores", sem os quais é muito difícil viver, num mundo desenraizado. Sou saudoso de um mundo menos desenraizado. Há uma ausência de sutileza. O desenraizamento está barateando a vida humana. Mata-se por nada.
Folha - Qual é o papel da religião nisso?
Rushdie - É absolutamente catastrófico, quer seja o jihadismo ou o fundamentalismo cristão, ou os hindus fanáticos.
Folha - O sr. é religioso?
Rushdie - Não. Não. Não me considero religioso [risos]. Mas, quando você começa a escrever sobre humanos, passa a acreditar que haja algo sobre nós que não é apenas carne e ossos. Há coisas que não podemos explicar para nós mesmos. No entanto, se você não acredita na existência da alma, é muito difícil escrever sobre isso, porque faltam palavras.
Folha - O sr. acompanha a política brasileira?
Rushdie - Leio os jornais. Mas não me pergunte nada [risos].
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SYLVIA COLOMBO
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A literatura nunca sofreu tamanha interferência da realidade política como hoje. Para o escritor indiano Salman Rushdie, 58, Jane Austen (1775-1817) podia ignorar as guerras napoleônicas porque a esfera pública não interferia tanto no cotidiano. "Nós vivemos num mundo muito estranho, e as conseqüências para a literatura são profundas", disse o autor, anteontem, no Rio, às vésperas de embarcar para Parati, onde lançará, na Flip (Festa Literária de Parati), o livro "Shalimar, o Equilibrista".
Nele, um embaixador norte-americano, Max Ophuls, de origem francesa, é assassinado. Sua filha, India, passa então a buscar sua identidade por meio do passado misterioso da mãe e das motivações do assassino de seu pai, Shalimar, personagem marcado por uma traição amorosa. É por meio dessa história de amor que Rushdie faz referências ao "encolhimento do mundo", ou seja, ao fato de que o que acontece hoje na Caxemira (Índia) pode influenciar a vida em Los Angeles, em alusão aos dois lugares da ação.
Em entrevista à Folha, Rushdie não quis comentar a recente eleição de um líder linha-dura no Irã, país onde foi condenado à morte pelo aiatolá Khomeini, em 89, que via em "Os Versos Satânicos" agressões ao islã. "Perguntem sobre lugares que conheço, como a Índia, o Reino Unido ou os EUA." Por conta disso, também não quis falar da realidade brasileira. "Leio os jornais, mas não me pergunte."
Folha - Quanto do sr. há em "Shalimar, o Equilibrista"?
Salman Rushdie - Não há um personagem que fale pelo autor. Meu objetivo foi criá-los como seres empenhados em suas próprias histórias. A maneira como os personagens do livro evoluem não tem nada a ver com uma vontade de expor meu ponto de vista sobre o mundo. Flaubert disse: "Madame Bovary, c'est moi", mas é claro que é mentira. Madame Bovary não é Flaubert. A verdade é que você deve estar em cada frase do seu livro. Há algo com que devemos lidar mais do que nunca agora, que é o fato de que nossas vidas não são mais vidas privadas. Quando Jane Austen escrevia, ela ignorava as guerras napoleônicas. Podia contar a história de seus personagens sem se referir à esfera pública, pois esta não interferia na vida dos seus personagens. Só que hoje não vivemos mais assim.
Folha - Hoje um escritor pode ignorar a situação mundial?
Rushdie - Não quero ditar regras, mas é difícil para mim. Para explicar a vida das pessoas, você precisa levar em conta o mundo em que elas vivem e o efeito direto que esse mundo causa nelas.
Folha - Como no exemplo da Caxemira, que está no livro.
Rushdie - Sim, a vida de Shalimar foi destruída por dentro, pela traição de sua mulher mas também por fora, pelas forças da história. A maneira como costumávamos acreditar no destino dos personagens não existe mais, agora é o destino que faz os personagens. É preciso trabalhar com esse duplo sentido para escrever. Uma boa questão é se somos os mestres ou as vítimas do nosso tempo. Nós comandamos nossas vidas ou não temos chances?
Folha - E o que o sr. acha?
Rushdie - As duas coisas. Às vezes, nós podemos comandá-la, noutras não. Por exemplo, esse concerto de rock que houve no fim de semana, o Live 8, foi uma tentativa de um grande número de pessoas de causar algum impacto transformador. Pode-se dizer que é simplista, mas pode funcionar. Mas é claro que, se você estiver num arranha-céu e um avião bater nele, não importará se você viveu sua vida bem ou mal. Nós vivemos num mundo muito estranho, e as conseqüências para a literatura são muito profundas.
Folha - Por quê?
Rushdie - Porque uma das grandes perguntas para um escritor é: como se diz a verdade sobre o mundo? De acordo com o nível do seu talento, a profundidade da sua visão, ou das limitações que todos nós temos. De outro modo, você não dirá a verdade.
Folha - Os americanos sabem o quanto o que acontece na Caxemira afeta a vida deles?
Rushdie - Acredito que o 11 de Setembro tenha sido um alerta. Mostrou que o mundo não está mais separado. Os americanos sentiram na pele as conseqüências de um mundo que encolheu.
Folha - Há uma grande importância em relação a nomes e identidades em seu livro.
Rushdie - Acho que a questão da identidade é central. Ninguém no livro gosta do nome que tem, exceto Max [o embaixador na Índia].
Folha - Max falsificava identidades quando estava na Resistência francesa.
Rushdie - Exato. Ele é o único que sabe quem é. O livro é sobre pessoas que não sabem quem são. No caso de India [filha de Max], há uma boa razão para isso. Durante toda a sua vida lhe mentiram, inclusive sobre seu nome.
Folha - Por que Max compara a situação na Alsácia, nos anos 30/40, ocupada por França e Alemanha, com a da Caxemira, disputada por Paquistão e Índia?
Rushdie - O interessante na região da Alsácia é a questão das fronteiras cambiantes. No livro, que é sobre a Índia, sobre a Caxemira, essa questão está em primeiro plano. Foi uma maneira de unir as pontas do mundo. Na França, durante o jugo nazista, há a Resistência, que é a reação militar à ocupação. Na Caxemira, há a resistência ao poder ocupante, e essa reação pode não ser necessariamente terrorismo --depende de que parte do mundo falamos. Temos aqui uma forma muito similar de ação, tomada em diferentes circunstâncias. O julgamento que fazemos desses momentos é diferente.
Folha - O destino da Caxemira é há muito tempo decidido por forças externas.
Rushdie - Sim, acho que essa é a grande tragédia da Caxemira. Os caxemirenses querem que os deixem em paz. Há o Exército indiano e há os grupos patrocinados pelo Paquistão. Ambos destruíram a Caxemira de diversas maneiras. A intelligentsia indiana não tinha idéia do quão grande era o ressentimento na Caxemira. Mas não era preciso ser profeta para ver a insurgência, bastava ter olhos. Quando chamei a atenção para o problema, me chamaram de "muçulmano comunista".
Folha - E além disso há os grupos terroristas...
Rushdie - Veja, o islã na Caxemira sempre foi místico, gentil e aberto, não como o dos jihadistas. Não havia segregação sexual. Havia uma grande mistura religiosa. Mas então vieram os grupos extremistas, que tentaram impor à Caxemira uma idéia de islã estranha a ela. A violência funcionou, e hoje na Caxemira se vêem mulheres cobertas, o que é anticaxemirenses. Sempre me senti mal sobre isso, porque minha família é de lá, passava férias lá quando criança. Para todos na Índia, a Caxemira é o espaço encantado da infância. E foi destruído, obrigando-nos a viver num mundo sem sonho. Meu livro é um pouco sobre como viver num mundo no qual seus sonhos são destruídos.
Folha - E, para Max, os sonhos acabaram na Europa. Ele é nostálgico. O sr. também parece saudoso dos velhos valores.
Rushdie - Não diria "velhos valores". Diria "valores", sem os quais é muito difícil viver, num mundo desenraizado. Sou saudoso de um mundo menos desenraizado. Há uma ausência de sutileza. O desenraizamento está barateando a vida humana. Mata-se por nada.
Folha - Qual é o papel da religião nisso?
Rushdie - É absolutamente catastrófico, quer seja o jihadismo ou o fundamentalismo cristão, ou os hindus fanáticos.
Folha - O sr. é religioso?
Rushdie - Não. Não. Não me considero religioso [risos]. Mas, quando você começa a escrever sobre humanos, passa a acreditar que haja algo sobre nós que não é apenas carne e ossos. Há coisas que não podemos explicar para nós mesmos. No entanto, se você não acredita na existência da alma, é muito difícil escrever sobre isso, porque faltam palavras.
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