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25/07/2005 - 11h42

"Já senti vergonha de ser negro", diz Milton Gonçalves

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MARY PERSIA
da Folha Online, em Brasília

Ele já brigou com quem teria lhe dado prêmio achando que "fazia um favor", discutiu com autor que teria reduzido a participação histórica do negro em minissérie e diz ter "urticária" quando pensa na limitação dos "papéis para negros". Aos 71 anos, Milton Gonçalves diz que sua luta é pela "integração sem humilhação".

12.nov.2003/FI
O ator Milton Gonçalves
O ator Milton Gonçalves
"Não posso me comportar como a sociedade espera que eu me comporte. Quero ter o direito de dançar e sambar quando eu quiser. Não posso ser o macaquinho do realejo impunemente. Poderei ser o macaquinho, mas quando eu quiser, não como resposta a essa necessidade que a sociedade tem de ver em mim o macaquinho do realejo", disse Gonçalves em entrevista à Folha Online.

O ator e diretor é o homenageado do 7º Festival Internacional de Brasília (FICBrasília), que lança dois livros biográficos, os Cadernos Cine Academia (o outro traz o diretor Nelson Pereira dos Santos). "Não posso reclamar, estou sendo homenageado. Mas sou uma exceção, e não me acomodo nela. Tenho como meta a luta pela realização do ser humano. E sou mais persistente ainda em relação ao ser humano afrodescendente."

O festival exibiu o longa "Filhas do Vento", de Joel Zito Araújo, ganhador de seis Kikitos em Gramado no ano passado. No filme, ele interpreta o pai de uma família que sofre desencontros emocionais, ao passo que uma de suas filhas tenta virar artista de novela.

Abordando a restrição à participação de negros na teledramaturgia, a produção (que custou R$ 1,4 milhão, muito pouco em relação a outros títulos nacionais, e ainda não tem data para estrear nos cinemas devido à recusa das distribuidoras) tem no elenco Maria Ceiça, Ruth de Souza, Taís Araújo, Léa Garcia, Thalma de Freitas e Rocco Pitanga, entre outros.

Em Gramado, o filme foi alvo de polêmica após a declaração do presidente do júri, Rubens Ewald Filho, de que a premiação foi "totalmente planejada". "Ou alguém acha que foi à toa que demos prêmios para seis atores negros em um Estado como o Rio Grande do Sul, que sempre foi acusado de desprestigiar o negro", afirmo à época o crítico de cinema. A equipe do filme ameaçou devolver os prêmios.

"A Casa das Sete Mulheres"

Sobre a imagem da sua etnia na mídia, Gonçalves é claro: "A manutenção da inferioridade do negro na mídia, muitas vezes até pelo seu não aparecimento, torpedeia toda a coesão do movimento de milhares de negros que buscam elevação espiritual, social e financeira, o que por si só já é muito difícil", considera o ator. "Me dá urticária essa idéia de negro fazer apenas papel específico para negro."

Divulgação
Luta é pela "integração sem humilhação"
Luta é pela "integração sem humilhação"
Mas ele considera que as coisas têm melhorado. "Ultimamente, alguns personagens têm fugido a isso, mas é resultado de muito esforço. Porém isso não é um reclamo nacional. Não posso reclamar dos meus personagens. Tenho recebido papéis importantes. Sou o presidente, mas também sou o bandido, todos personagens ricos, cheios de nuances, com relevância na história."

Gonçalves afirma que já brigou para quebrar a tendência de subvalorização do negro em peças da teledramaturgia. Especialmente nas que tratam da história do Brasil. E cita a Guerra dos Farrapos, retratada na minissérie "A Casa das Sete Mulheres".

"O exército farrapo era constituído de um terço de soldados negros, mas a minissérie, não deu a devida importância a esse fato. A autora [Maria Adelaide Amaral] brigou comigo, e eu também briguei com ela por isso. Nunca ninguém disse que a infantaria negra foi fundamental para o ideário separatista de Bento Gonçalves."

Talvez por conta dessa falta de referências, que acaba resultando no desconhecimento da importância da sua etnia na História --e não apenas por isso--, Gonçalves conta que sofreu quando jovem. "Até a adolescência, eu tinha vergonha de ser negro", relata. "Tinha pesadelos. Sonhava que, todas as noites, um grande cão negro corria atrás de mim. Um dia, li algo que me despertou, mostrou que isso era o meu complexo de inferioridade. Eu, bem jovem, precisei que alguém me contasse as coisas sob a ótica da minha etnia."

Carreira

Aos 24 anos, o ator estreou sua primeira peça, "Ratos e Homens" em São Paulo. Daí para frente, foram inúmeros papéis no teatro, TV e cinema --tantos que não sabe contar quantos e se nega a eleger os prediletos. "Em tese, todos os meus trabalhos ainda me tocam. Na minha vida, apenas dois filmes 'passaram' --e não vou dizer quais são. Fiz porque precisava ganhar um dinheirinho. No restante, me entreguei de corpo e alma."

Divulgação
Ator recebeu homenagem
Ator recebeu homenagem
Mas ele deixa escapar as fortes lembranças que tem de "Eles Não Usam Black-Tie" (filme de 1981, direção de Leon Hirszman, baseado na peça de Gianfrancesco Guarnieri). "Sempre que vejo o filme, quando o final se aproxima, choro. É um filme muito forte", diz Gonçalves. "Era um tempo em que estávamos abertos à batalha para a recondução do homem à dignidade, pensávamos no homem como um ser que tem o direito inalienável... [faz uma pausa, emocionado] de ter três refeições quentes por dia, de não ser jogado na rua como lixo. Acreditávamos nisso. Ainda acredito."

Atualmente, o ator prepara-se para interpretar o presidente do Brasil no thriller "Segurança Nacional", do jovem Roberto Carminati, ainda em fase de pré-produção. "É um filme que discute a vigilância das fronteiras brasileiras, a lei do abate, o projeto Sivam. Traficantes seqüestram pessoas, os EUA tentam intervir, mas o presidente brasileiro não aceita." A produção deve ter parceria de produtores norte-americanos.

Sobre a possibilidade de haver um presidente negro no Brasil, Gonçalves diz que é possível. Mas é preciso lutar. "Sou velho o suficiente para afirmar que liberdade, dignidade e respeito ninguém dá. Você conquista", afirma ele, para quem a idade não impede de continuar brigando pela "integração sem humilhação". "Eu vou para a luta. Hoje já não posso andar muito, não tenho mais aquele fôlego, mas o fogo está aqui dentro. Eu sou guerreiro."

Especial
  • Leia o que já foi publicado sobre Milton Gonçalves
  • Leia o que já foi publicado sobre o Festival Internacional de Cinema de Brasília
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