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25/10/2000 - 05h54

João César Monteiro engana a visão com palavras

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TIAGO MATA MACHADO, da Folha de S.Paulo

"Falar não é ver. Falar libera o pensamento dessa exigência ótica que, na tradição ocidental, há milênios submete nossa abordagem das coisas e nos convida a pensar com a garantia da luz ou sob a ameaça da ausência de luz", dizia Blanchot num ensaio célebre em que defendia a emancipação da fala em relação à visão, buscando uma palavra que levasse guerra e loucura ao olhar.

Eis a visão, ou melhor, a não-visão que o diretor português João César Monteiro reserva à palavra do poeta Robert Walser, autor desta brilhante releitura de "Branca de Neve", a famosa história dos irmãos Grimm. Aqui, falar não é ver. Se Monteiro teve a ousadia de realizar um filme quase inteiramente sem imagens, é porque partiu do pressuposto, inteiramente correto, de que somente a pura função de fabulação torna possível a recriação de um mito.

Era o que já dizia Deleuze: só um ato de fala puro, fabulação criadora, é capaz de extrair o avesso de um mito dominante. É o avesso do conto de fadas original que o filme de Monteiro evidencia, ou melhor, faz ouvir num ato de fala que é tão mais puro quanto mais emancipado da visão.

Assim é que o príncipe se revela um "caçador" de fraco caráter, e o caçador se revela nobre. Assim é que a rainha, originalmente invejosa e feia, revela-se bela e amorosa. Mas, como a fabulação, tal como a praticam as personagens, não leva a uma nova verdade sem passar, necessariamente, pelo equívoco e pela mentira ("Tu mentes e inventas para ti própria um conto", diz o príncipe a Branca de Neve), os protagonistas da história não poderão evitar, antes, os enganos.

Mas mesmo esses equívocos já são mais verdadeiros do que os crimes e motivos da história original. São os caminhos da fala. No começo, Branca de Neve diz que a fala insinuante da rainha engana, mas que a arrogância de seus olhos não. Mas, no final, ainda que traiçoeira, é a conversa, e não a visão, que dissipa os verdadeiros equívocos.

"Oh, fala!", diz o príncipe, em seu "falar de príncipe", declarando a Branca de Neve que, antes de tudo, "prefere escutar do que olhar". Este é um filme para pessoas assim. Monteiro, que aparece no final para uma palavra muda, lembrando-nos de que o ato de fala, no cinema mudo, não era ouvido, mas lido, destaca as falas até mesmo dos sons ambientes.
Estes só surgem junto às raras imagens do filme. De resto, o filme é um ato de fala contínuo em que o negro da tela não deixa de funcionar como uma subjetiva da própria personagem-título.

Branca de Neve
Direção:
João César Monteiro
Produção: Portugal, 2000
Com: Diogo Dória, Luís Miguel Cintra
Quando: nesta quarta, às 20h25, na Sala Cinemateca; 31, às 20h45, no Masp; e 2, às 16h05, no Cinesesc

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