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18/11/2005 - 04h30

Eduardo Coutinho fala de novo filme

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LEONARDO CRUZ
da Folha de S.Paulo

Eduardo Coutinho está no auge. Aos 72 anos, o documentarista apresenta "O Fim e o Princípio", seu quinto filme em seis anos, mote para que a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo lhe concedesse um prêmio pelo conjunto da carreira há duas semanas. E o que Coutinho pensa desse momento? "É uma ironia muito grande. Até fazer 'Santo Forte', em 1999, eu estava morto", avalia.

A referência a "Santo Forte" é fundamental. Após oito anos sem filmar um longa, Coutinho obteve verba para subir um morro carioca e ouvir moradores sobre suas relações com a fé. A obra foi sucesso de crítica e recebeu prêmios, rotina em seus filmes posteriores.

Para Coutinho, "Santo Forte" resume a essência de seu cinema. "Minha fissura é filmar aquilo que não interessa a ninguém, que, se eu não tivesse feito, ninguém faria." E foi esse raciocínio que o motivou a fazer "O Fim e o Princípio". Sem pesquisa prévia, Coutinho levou mais sete pessoas ao sertão da Paraíba em busca de um filme. Na comunidade Sítio Araçás, em São João do Rio do Peixe (a cerca de 400 km de João Pessoa), encontrou Rosa, jovem que seria sua mediadora no contato com os moradores --86 famílias, muitas ligadas por parentesco.

Dessas conversas, o que era inicialmente um filme sobre o nada se tornou um documentário sobre o envelhecimento, o passar do tempo, a memória e a proximidade da morte. Sobre o ser humano.

Em uma entrevista no café do Espaço Unibanco de Cinema, em São Paulo, regada a pães de queijo, um expresso e um punhado de cigarros, Coutinho discorreu sobre "O Fim e o Princípio" e a produção de documentários, gênero que "foi, é e sempre será marginal". Esta estréia confirma isso: o filme só passa em uma sala paulistana e em duas do Rio. Que pena.

Foi uma boa conversa, em que o cineasta falou muito, mas não contou tudo, porque, como diz um de seus personagens, quem fala tudo fica besta.

Folha - Em que medida trabalhar sem pesquisa prévia dificultou a realização do filme? Era um risco muito grande?

Eduardo Coutinho - Nesse sentido, "Babilônia 2000' era um risco mais duro, porque estávamos fazendo um filme no último dia do ano. A produção começou 15 dias antes e a tensão se transferiu para o meu relacionamento com a equipe.

Neste filme agora, não foi tão complicado. Gosto muito da Paraíba, o "Cabra [Marcado para Morrer"] foi feito lá. E tivemos sorte. A primeira pessoa encontrada ao acaso foi a Rosa, que foi maravilhosa. Mas a primeira semana foi péssima. Filmei em dois lugares, um com a Rosa, outro sem ela. E foi um desastre. As entrevistas não funcionavam, a câmera não me agradava, eu estava muito insatisfeito. Aí, fiquei doente. Tive um problema gastrointestinal e tive que voltar ao Rio. A doença foi uma solução. Quando você não morre, é ótimo. Voltei dois meses depois e descobri que tinha que fazer um filme em um local em que a Rosa fosse a grande ponte. A partir daí, foi a produção mais tranqüila da minha vida.

Folha - A idéia era focar numa comunidade que representasse um Brasil arcaico?

Coutinho - Essa coisa do contraste do arcaico com o moderno era algo que me interessava que houvesse, mas sem forçar. E, na primeira parte das filmagens, havia outras questões mais sociológicas que eu pretendia abordar. Por exemplo, pensávamos em acompanhar um dia na vida de um beneficiário do Fome Zero. Mas isso foi na primeira vez. Na volta, na segunda vez, tudo isso desapareceu completamente do mapa. Eu já estava interessado em mostrar a vida daquela comunidade, de Araçás.

Folha - O envelhecimento e a passagem do tempo são fortes no filme. A intenção era essa desde o início?

Coutinho - Ao longo do filme, eu achava que os velhos seriam importantes, mas não ao ponto de eliminar personagens interessantes. Filmei um cara chamado Careca, que era um migrante, que já tinha vindo a São Paulo. Era um troço forte, mas que não tinha nada a ver com o filme. Você não pode ter um cara que é maravilhoso, mas que a estrutura do filme expulsa. Acabou sendo uma película sobre os velhos --velhos em termo, porque tem três caras que têm menos de 60 anos, mas claramente ficou um troço que eu supunha que seria assim e ficou quase inteiramente sobre isso.

Folha - E a proximidade da morte?

Coutinho - A questão da morte surge naturalmente quando você fala com pessoas com mais de 60 anos. Eu fiz duas perguntas sobre isso, mas as pessoas falam sobre isso fora das perguntas. O poeta, por exemplo. Em princípio, não quer falar, de repente perde a gagueira e declama um soneto, que fala também sobre morte. Isso está presente sempre. As pessoas desenvolvem raciocínios sobre o Juízo Final, o que é algo que está sempre presente na cultura católica tradicional. A questão metafísica está presente o tempo todo.

Folha - Essa questão da religião também é sempre central nos seus filmes...

Coutinho - Não dá para não tratar de religião quando se faz documentário no Brasil. Nos anos 60 e 70, tinha aquela história de que a religião é o ópio do povo etc. Até que se começou a entender que o buraco é mais embaixo. Tratar a religião como ópio do povo é de uma ingenuidade enorme. Foi por isso que fiz "Santo Forte". Como o cara pode viver sem simbolizar uma transcendência? Não pode. E, no sertão, com a força do catolicismo popular, a presença dos santos, a religiosidade surge como algo extraordinário.

Folha - Seu foco está na sociedade à margem?

Coutinho - Não é bem isso. Faço filmes sobre pessoas que são o contrário das grandes figuras públicas. O grande cientista, o grande político, essas pessoas sempre têm muito a perder. Esses não me interessam. A figura não-pública é a que me atrai. E não tem a ver com o fato de ser excluído ou dominado. É que eles, por não terem nada a perder, se dão muito mais de si.

O fato é o seguinte: os grandes acontecimentos não me interessam. Quando filmaram Woodstock, aquilo estava pedindo para ser filmado, a greve de São Bernardo, aquilo estava aberto ao espetáculo. Quando eu subo um pequeno morro para falar sobre religião, ninguém está pedindo para filmar aquilo. O acontecimento não existe antes da filmagem. Chego, ligo a câmera e acontece uma relação, que é única. E o filme passa a existir.

Folha - Depois de seus filmes prontos, você mantém contato com os entrevistados?

Coutinho - Tem gente que diz que quando você filma uma pessoa, ela jamais será a mesma. Isso é muito raro. A Elizabeth Teixeira, protagonista do "Cabra", a vida dela mudou, porque ela tinha um papel político, foi resgatada simbolicamente. Quando vou editar uma entrevista, eu esqueço que aquela pessoa é uma pessoa. Para mim é uma personagem, que eu vou editar da melhor forma possível, correspondendo ao conjunto do que ela disse. Só passo a tratá-la como pessoa quando vejo, ou alguém me diz, que aquilo que ela disse pode ser contra ela. Mas só nesses casos. Porque o entrevistado vira um condensado tal que é quase um condensado ficcional.

Folha - E já te procuraram após as filmagens?

Coutinho - É raríssimo. Houve um caso. Um entrevistado que adorou o filme, viu dez vezes. Um ano e meio depois, veio me pedir dinheiro, disse que estava com problema. Não tenho menor problema em ceder. E cedi na primeira vez. Mas depois não mais.

Folha - O que você acha que acontecerá com a Rosa?

Coutinho - A Rosa é uma pessoa de transição. Ela ama a comunidade onde vive, ama aquela tradição, mas, por esforço próprio, conseguiu convencer seu pai a estudar, colocou canalização de água na casa onde mora. É católica, tradicional, progressista. Depois do filme, ela passou uma semana no Rio, viu quatro, cinco filmes. Viu "Carreiras", do Domingos Oliveira. E a personagem cheira o tempo inteiro, e a Rosa perguntava: "O que é aquilo?". E nós dizíamos: "É cocaína". Acho que o filme vai mudá-la, mas tenho certeza que será para o bem. Mas nós não damos conselho para ela. Não quero fazer a cabeça de ninguém.

Folha - Que avaliação você faz hoje do país? Do governo Lula?

Coutinho - Ah, isso daí... De idéias gerais eu não falo. Esse tipo de pergunta... E não é só sobre o governo, não. Sempre perguntam: "Há um boom do documentário?". Não é boom, nada. Teve o Michael Moore, até melhorou um pouco, mas o cinema documentário foi, é e será marginal. Agora, em geral, do que está acontecendo, acho um horror. Acho um horror o que está acontecendo desde abril. E ponto.

Folha - E o cinema nacional? Está numa fase boa?

Coutinho - Ah! Aí outra pergunta...

Folha - Mas tem uma safra boa surgindo?

Coutinho - Eu acho que tem. Principalmente no campo do documentário, porque com a filmagem digital, o número de produções aumentou muito. Tem coisas interessantes, variadas, filmes que não tem nada a ver com o meu estilo de cinema.

Agora, no cinema brasileiro hoje, uma grande dificuldade é que os filmes de baixo orçamento, que experimentam mais, não entram nos cinemas de shopping, que são 70% do público. Isso é um desastre. Porque ninguém está contente em ser marginal. O documentário é um artesanato que não é feito para dar dinheiro. Mas, nos filmes de ficção, há sempre a esperança de que o filme possa acontecer. Vejo a dificuldade de filmes que são muito interessantes, muito bons, como os filmes do Beto Brant ("Crime Delicado"), que não entram em shopping. Para acontecer, entram na máquina, com a Globo ou uma major apoiando, ou só passam no circuito de arte. E aí nossos jovens vão ver filme brasileiro quando?

Folha - E o que entra no shopping é derivado da estética da TV?

Coutinho - Pode ter de tudo e que tenha de tudo no cinema, mas, se a gente tiver uma indústria de cinema brasileiro baseada em subproduto da TV, é preferível morrer. Não vale a pena ter cinema brasileiro.

Folha - Você já tem novos projetos?

Coutinho - Graças à Videofilmes e ao João Moreira Salles, eu estou podendo fazer meus filmes. Fiz cinco filmes em seis anos. Na minha idade, fumando o que eu fumo, com a saúde que eu tenho... Tenho a possibilidade de fazer um filme no começo do ano que vem, só precisa ser barato. Mas me pergunto: filmar o quê? O bom é quando você sabe que vai fazer um filme que ninguém mais quer ou pode fazer. O caso mais feliz de minha vida foi "Santo Forte", porque ninguém queria nem poderia fazer.

Folha - Nesse sentido, "O Fim e o Princípio" é assim, não?

Coutinho - É a mesma coisa. E partiu do quê? Eu estava montando "Peões", e o João perguntou o que eu queria fazer. Disse que não queria metrópole, enchi o saco de filmar metrópole. Queria filmar em ambiente rural. E no Nordeste, porque sei que as pessoas falam bem. Muitas pessoas, mesmo analfabetas, tem um talento natural da retórica.

Folha - Você fez cinco filmes em seis anos. Está no melhor momento de sua carreira? Administra isso de alguma forma?

Coutinho - Eu acho tudo isso uma ironia tão grande. Quanto fui fazer "Santo Forte", eu era o cara que tinha feito o "Cabra" e dois filmes interessantes e só. Eu estava morto. Morto. É uma ironia, porque foi a partir disso que as coisas aconteceram. Nunca se pode dizer que tudo está acabado. É uma grande ironia, no bom sentido. E o essencial é nunca se levar muito a sério.

Trechos desta entrevista foram publicados na versão impressa da Ilustrada de hoje.

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