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25/01/2006 - 17h43

Dimenstein lança "O Mistério das Bolas de Gude"

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da Folha de S.Paulo
com Folha Online

O passeio literário começa na Vila Madalena e segue para o centro de São Paulo. Depois, passa por destinos como Rio, Recife, Cali (Colômbia), Manaus, Nova York e a Índia. Misto de investigação jornalística e de diário de viagem, a obra "O Mistério das Bolas de Gude" (Papirus), do jornalista Gilberto Dimenstein, narra histórias de invisibilidade e de encantamento.

Em 190 páginas, o colunista e membro do Conselho Editorial da Folha descortina casos de pessoas excluídas da sociedade que, das mais diversas formas de expressão, foram "despertadas" e estabeleceram uma relação de pertencimento com o mundo.

Lalo de Almeida/FI
Gilberto Dimenstein em frente a beco da Vila Madalena
Gilberto Dimenstein em frente a beco da Vila Madalena
Terceiro livro de reportagens do autor, "O Mistério ..." retrata um hábito que Dimenstein adquiriu na infância: o de flanar, ou seja, de andar sem destino e descobrir coisas por si só. "O flanador não se incomoda de não conhecer o grande museu. O barato dele é andar, parar para tomar um café e descobrir um azulejo perdido, uma escada."

Essa idéia o encanta de tal forma que por pouco não colocou o nome no livro de "Diário de um flanador." "Costumo andar oito, nove horas. Saio da Vila [Madalena], vou ao centro, passo pelo Pátio do Colégio, vejo exposições, paro para tomar café e vou anotando tudo o que acho de interessante."

Foi numa dessas andanças que o jornalista deparou com a fachada de um bar tomada por bolas de gude, na Vila Madalena. Apesar da cobiça das crianças e da facilidade de serem arrancadas, as bolinhas sobrevivem até hoje. Um símbolo de resistência e o fio condutor para o passeio que o jornalista convida o leitor a fazer.

A Folha Online publica, a seguir, um trecho do livro (páginas 67 a 70).

"Em 30 de janeiro de 1998, o céu estava azul e o dia, ensolarado. Nem parecia inverno, assemelhava-se a uma manhã outonal. Era a imagem ideal para ficar na lembrança, o inverno quente, as ruas repletas de gente, bares e restaurantes cheios. Foi o dia de minha despedida de Nova York. Nas caminhadas diárias, muitas vezes sem roteiro determinado, apenas pelo prazer de flanar, aprendi o gosto de andar em calçadas largas, sem me importar com quem estava atrás. Não me preocupava com os automóveis; mesmo os motoristas mais nervosinhos rendem-se, com medo de processos judiciais, à arrogância dos pedestres que não esperam o sinal verde. Disseram-me certa vez que a civilidade de uma cidade se mede pela largura das calçadas. É verdade.

De onde morava, alcançava qualquer lugar a pé, quase sempre passando por algum parque, com paradas estratégicas em livrarias ou cafés. Uma das paradas era o Metropolitan Museum of Art (MET), grudado no Central Park, onde, depois de tantas visitas apenas na última semana de minha estada, observei uma placa mínima. Antes de morrer, Lilá Acheson Wallace fez ao MET uma doação em dinheiro, cujos juros deveriam ser usados apenas para trocar, semanalmente e para sempre, as flores exuberantes e frescas espalhadas em vasos chineses pelo hall. Era com se aquela mulher tivesse decidido se tornar visível para sempre na forma de flores. A mulher sobrevivendo em flores aparecia como a melhor imagem de um espírito de pertencimento a uma comunidade, talvez por resumir poeticamente a força de toda uma cidade, amedrontada, que decidiu ser protagonista da retomada de seu território. Essa imagem se traduzia nas flores do museu, nos remédios contra o vírus HIV, na versão digital de Dante no Harlem, nos jovens restauradores de South Bronx ou no teatro Disney em Times Square.

Voltei para São Paulo, onde as calçadas iam desaparecendo engolidas pelos carros, trazendo na bagagem o aprendizado sobre as possibilidades de auto-reciclagem de uma comunidade. Naturalmente, minha atenção voltou-se para as ações de resistência, de personagens muitas vezes anônimos em seus bairros - exatamente o contrário da minha vivência em Brasília, em que o foco se concentrava nas celebridades e autoridades, olhando o Brasil do planalto. Estava agora na planície.

Moldava meu olha o fato de que não reconhecia a cidade em que nasci e, de certa forma, apesar de todos os privilégios de classe média, experimentei a sensação da invisibilidade - e não porque estava há 15 anos fora, 14 dos quais em Brasília. Nasci em 1956, na fronteira do Parque do Ibirapuera, inaugurado dois anos antes para comemorar os 400 anos da cidade, que, na época, tinha 50 mil automóveis, o tamanho da atual frota de táxis.

Como sempre tive o prazer de andar a pé - talvez pela absoluta incompetência para os esportes e uma certa ojeriza à repetição da ginástica -, desde cedo desenvolvi o hábito de flanar. Quando era criança, andava sozinho pelo centro, onde meu pai tinha uma loja de móveis na rua Xavier de Toledo, a poucos metros do Teatro Municipal e do viaduto do Chá. Deparava sempre com os mesmos mendigos. Não me recordo de crianças abandonadas perambulando naquela paisagem, nem de caminhar olhando para trás, com medo de que alguém me abordasse.

A escola em que estudei (I.L. Peretz), na rua Madre Cabrini, na Vila Mariana, ostentava imensas janelas através das quais eu acompanhava, curioso, o movimento e os sons das ruas: a gaita do funileiro, a matraca do vendedor de biju, o realejo do homem do periquito. Agora, as janelas haviam desaparecido, cobertas por um imenso muro.

Os cines Belas Artes, na avenida Paulista, e Bijou, na praça Roosevelt, em que aprendíamos a beijar na boca, fazer escaladas sutis com os dedos nas meninas (o máximo permitido na época) e apreciar filmes de cineastas europeus - que não entendíamos - estavam abandonados. Houve um tempo em que o Bijou prestou memoráveis serviços à educação cinematográfica de uma geração de paulistanos, ao fazer vista grossa às nossas idades. Naquele momento, ao seu redor, viam-se calçadas esburacadas, mendigos e drogados.

Dali, seguindo pela avenida Ipiranga, na esquina com a avenida São João, o bar Brahma, na memória de tantos boêmios, estava fechado e, segundo rumores, candidatava-se a templo evangélico - justo naquela esquina, que entrou no imaginário brasileiro por causa de Sampa, de Caetano Veloso.

Na rua da Consolação, subindo à esquerda do Bijou, logo depois do cemitério, desaparecera uma escola de iniciação sexual com mulheres especializadas em clientes adolescentes. A casa da tia Olga, como era chamada, guardava lembranças profundas da perda da virgindade de garotos que se imaginavam espertos e contavam vantagens sobre as mulheres. Lembro-me de uma noite fria e chuvosa, em que cheguei ensopado da cabeça aos pés na tia Olga, e duas das mulheres, maternais, secaram meu corpo e me serviram café, comovidas com meus espirros.

A poucos metros dali, aproximando geograficamente Deus e as putas, ficava a sinagoga que eu freqüentava, agora parecia uma fortaleza. A três quadras da sinagoga, está a rua Augusta, que se converteu numa lembrança ruim dos dias de glória, quando chegou a receber um tapete no asfalto por onde perambulava a vanguarda cultural. Acabou invadida por igrejas evangélicas, saunas, casas de massagem, boates e prostitutas nas esquinas. As lojas ficaram vazias."

Especial
  • Leia o que já foi publicado sobre Gilberto Dimenstein
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