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26/01/2006 - 21h59

Mozart integra Santíssima Trindade da melhor música de todos os tempos

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RICARDO FELTRIN
Editor-chefe da Folha Online

Há uma velha máxima cristã, usada geralmente para rebater críticas alheias, que diz: "Nem Jesus Cristo conseguiu agradar a todos". Aparentemente a frase vale não só para Jesus, mas para todos os grandes gênios da humanidade. De Shakespeare a Einstein, de Goethe a Van Gogh, não há ser humano, por mais brilhante que seja, que escape da pena ou da sanha dos invejosos, dos tolos ou dos ignorantes.

No dia em que o mundo --melhor dizer o universo-- comemora os 250 anos do nascimento de Wolfang Amadeus Mozart, não poderia ser diferente. Era previsível que alguém tentaria jogar alguma lama no gênio, já que, sabe-se, uma das táticas reptícias que os medíocres usam para chamar a atenção para si é escolher uma boa efeméride para espirrar seu veneno no próximo, esteja ele vivo ou morto.

Divulgação
Mundo comemora hoje 250 anos do nascimento de Mozart
Mundo comemora hoje 250 anos do nascimento de Mozart
Para dar nome aos bois, o medíocre em questão é o crítico e jornalista Norman Lebrecht, 54, conhecido no Brasil pelo pretensioso, porém raso "O Mito do Maestro" (Civilização Brasileira, 2002). Em artigo no mínimo arrogante, publicado inicialmente na revista "La Scena Musicale" e reproduzido no último domingo pelo caderno "Mais", da Folha, o senhor Lebrecht acusa Mozart de ter seu valor musical "sobrevalorizado" (pelo mundo todo), afirma que o músico não passava de um "esnobe" e que, "em sua ânsia por glória", só fez "atrair musicalmente as graças dos ricos e poderosos".

Lebrecht não mereceria mais que um "tsk, tsk" e um meneio de cabeça com essas sandices, não fosse "Mozart" o nome citado por sua boca venenosa. Lebrecht finge esquecer que, desde os cinco anos de idade, carregado pelo pai Leopold por toda Europa para apresentar sua genialidade precoce, e sob uma educação feudal, o pequeno Mozart não tinha condições ou discernimento suficientes para tomar nas mãos seu próprio destino. Quando adulto --assim como alguns críticos-- obviamente ele dependia de poderosos para bancar seu sustento. Mas Mozart dava aulas. Fazia recitais. Compunha sob encomenda. Para um esnobe, até que ele se comportava como um operário. Sobre a "sobrevalorização", bem... vamos parar por aqui com o medíocre e festejar o gênio.

Mitos, lendas e verdades

Além da sua música, que pode ser classificada como de caráter sinfônico-celestial, e de uma infinita facilidade para criar quaisquer temas, sejam os mais simples, alegres e doces (como a famosa Sonata em Dó Maior K 545, tão adorada pelos iniciantes de piano), sejam os mais profundos e dolorosos (como o Réquiem), seja sobrepondo cordas a sopros delicados como o oboé --cujo timbre era uma das sua grandes paixões--, a minúscula vida de Mozart (1756-1791) também foi fértil em mitos e lendas. A contribuição para histórias irreais a respeito de Mozart começou apenas 40 anos após sua morte, quando as primeiras biografias começaram a sair.

Em 1897/98, Nikolay Rimsky-Korsakov (1844-1908) contribuía com a solidificação de mais uma lenda ao escrever a ópera "Mozart e Salieri", na qual o compositor italiano era apontado como suposto homicida, acusado de tentar envenenar o jovem austríaco por pura inveja.

A mesma ficção seria retomada quase 90 anos depois pelo diretor Milos Forman no maravilhoso filme "Amadeus" (de 1984, ganhador de 8 Oscar). O resultado é que ainda hoje há pessoas que acreditam que Antonio Salieri (1750-1825) é o grande vilão da vida de Mozart, apesar de não existir uma só remota prova a respeito. Nada mais injusto também para Salieri, que merece figurar na lista de bons músicos do século 18. Não a dos geniais, mas a dos bons.

Há poucas dúvidas de que Mozart era de fato um "crianção", um sujeito temperamental e irreverente na vida social. Desde criança demonstrava ter a saúde frágil. Aparentemente tinha tendência a exagerar nos prazeres, por mais que tenha passado anos e anos escrevendo ao pai insistindo que vivia à beira da privação, apenas para o trabalho. Costumava finalizar suas cartas sempre com um "de seu filho mais obediente". Rá!

Ao mesmo tempo em que tinha uma inesgotável capacidade de criar, escrever e memorizar música, Mozart aparentemente tinha uma dificuldade imensa em lidar com os aspectos corriqueiros da vida. Era, sim, vaidoso ao ponto de desancar alunas que diziam ter como objetivo de vida "tocar tão bem" quanto ele. Aos seus ouvidos isso soava como uma pretensão alheia descabida, embora certamente fosse uma forma enviesada de um aluno elogiar seu idolatrado professor.

Seu temperamento explosivo também lhe causou problemas sociais durante toda sua curta vida. Quando se achava senhor da razão, não hesitava em trocar impropérios com qualquer um, fosse seu colega de profissão ou fosse algum bispo arrogante. E, nesse último exemplo, é claro que ele só tinha a perder naquela sociedade.

O gênio perdulário

Embora jamais tenha sido aquinhoado com um grande montante, aparentemente Mozart passou a vida toda gastando tudo o que ganhava, sem tempo, chance ou capacidade para poupar. Isso o diferenciava --e muito-- de outros gênios como Bach e, especialmente, Beethoven, que passaram sua existência preocupados, se não em enriquecer, ao menos em ter uma velhice sem sobressaltos. Tanto faz, porque afinal Mozart jamais chegaria até lá.

Se por um lado era sintonizado com um mundo mágico quando compunha música, na vida real Mozart era absolutamente identificado com o materialismo e o machismo daquele universo patriarcal. Um exemplo prosaico: ao saber que a irmã, Maria Anna (a Nannerl, 1751-1829), se encontrava adoecida havia mais de um mês, Wolfang nem questiona os sintomas e já sugere a cura em uma carta: "Você precisa se casar".

Difícil imaginar o que Mozart teria feito se tivesse vivido mais dez anos, por exemplo. Haveria espaço para algo além das cerca de 600 obras diferentes que fez em apenas 35 anos de vida? Aí se incluem sinfonias, óperas, concertos, oratórios, serenatas, quartetos e quintetos, sonatas para piano e/ou violino, missas e até um réquiem. Sem contar outras inúmeras composições que se perderam ou ainda estão ocultas para o público.

O gênio sem túmulo

Assim como ocorreu com Bach, cujos restos mortais não estão no túmulo localizado na Thomaskirche, em Leipzig (Alemanha), vizinha ao pequenino museu Bach --por mais que o governo local insista, obviamente por interesse turístico--, também não se sabe onde os restos de Mozart foram depositados.

Tampouco sabemos alguma coisa sobre a causa real de sua morte. Uns falam em pneumonia, outros em tuberculose e, mais recentemente, sugeriu-se até morte por intoxicação alimentar. Tudo não passa de especulação. A verdade talvez nunca venha à tona.

Para saber realmente quem foi Mozart --além da audição de sua música-- uma sugestão é o livro "Cartas Vienenses", lançado em 2004 pela editora Veredas (282 pags.). A obra traz 197 cartas escritas por ele, entre outros destinos, a seu pai, à sua irmã, à sua mulher e grande amor, Constanze Weber --a quem ele chamava amavelmente de "querida e boa mulherzinha".

A última carta foi enviada apenas cerca de três meses antes dele morrer. O livro termina com o emocionante relato, por Sophie, uma de suas cunhadas, dos momentos que precederam sua morte.

Com "Cartas Vienenses" é possível montar um quadro fiel desse gênio que, ao lado de Bach e Beethoven, compõe a Santíssima Trindade da melhor música de todos os tempos. Amém.

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