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18/02/2006 - 02h10

Leia 1º capítulo do livro "À Espera dos Bárbaros"

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da Folha de S. Paulo

Leia o primeiro capítulo do livro "À Espera dos Bárbaros" (R$ 37,50, 280 págs.), de J.M. Coetzee, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. A edição deste sábado da Folha de S. Paulo traz resenha sobre o livro do Nobel de Literatura em 2003.




Nunca vi nada assim: dois disquinhos de vidro presos na frente dos olhos dele com aros de arame. Ele é cego? Dava para entender se quisesse esconder olhos cegos. Mas ele não é cego. Os discos são escuros, parecem opacos do lado de fora, mas dá para enxergar através deles. Ele me conta que são uma invenção nova. "Protegem os olhos contra o brilho do sol", diz. "O senhor ia achar bom aqui no deserto. Evitam que fiquemos apertando os olhos o tempo todo. Dá menos dor de cabeça. Olhe." Toca de leve os cantos dos olhos. "Sem rugas." Recoloca os óculos. É verdade. Ele tem a pele de um jovem. "Na minha terra todo mundo usa isto."

Estamos sentados na melhor sala da hospedaria com uma garrafa entre nós e uma tigela de nozes. Não comentamos a razão para ele estar aqui. Ele serve aos poderes de emergência, isso basta. Em vez disso, falamos de caçadas. Ele me conta do último grande giro que deu, quando foram mortos milhares de veados, porcos, ursos, tantos que uma montanha de carcaças teve de ser abandonada a apodrecer ("O que foi uma pena"). Conto dos grandes bandos de gansos e patos que pousam no lago todo ano em suas migrações e dos métodos nativos de capturá-los. Sugiro levá-lo pescar uma noite num barco nativo. "É uma experiência que ninguém pode perder", digo; "o pescador leva tochas acesas e toca tambores em cima da água para atrair os peixes para as redes que colocou." Ele concorda balançando a cabeça. Conta da visita que fez a outro ponto da fronteira, onde as pessoas comem certas cobras como especialidades, e de um imenso antílope que matou.

Desloca-se tateando em meio à mobília estranha, mas não remove os óculos escuros. Retira-se cedo. Está aquartelado aqui na hospedaria porque é a melhor acomodação que a cidade oferece. Fiz os funcionários entenderem que se trata de uma visita importante. "O coronel Joll é da Terceira Divisão", disse-lhes. "A Terceira Divisão é a mais importante da Guarda Civil hoje em dia." Pelo menos é isso que ouvimos nos rumores que nos chegam atrasados da capital. O proprietário faz um gesto de concordância, as camareiras baixam a cabeça. "Ele tem de ficar bem impressionado conosco."

Levo meu colchonete para a plataforma, onde a brisa da noite alivia um pouco o calor. Nos tetos planos da cidade, dá para perceber ao luar outros vultos adormecidos. Debaixo das nogueiras da praça ainda escuto o murmúrio de conversas. No escuro, um cachimbo brilha como um vagalume, esmorece, brilha de novo. O verão está rodando devagar para o fim. Os pomares gemem sob sua carga. Não vou à capital desde que era moço.

Acordo antes do amanhecer, passo na ponta dos pés pelos soldados adormecidos, que estão se mexendo e suspirando, sonhando com mães e namoradas, desço a escada. No céu, milhares de estrelas olham para nós. Na verdade aqui estamos no teto do mundo. Acordar à noite, ao ar livre, é deslumbrante.

O sentinela no portão está sentado de pernas cruzadas e dorme profundamente, aninhando o mosquete. O quartinho do porteiro está fechado, sua carroça parada fora. Eu passo.

"Não temos instalações para prisioneiros", explico. "Aqui não há muito crime, e a pena é sempre uma multa ou trabalho compulsório. Esta cabana é apenas um depósito ligado ao celeiro, como pode ver." Dentro está abafado, com um cheiro forte. Não há janelas. Os dois prisioneiros estão amarrados, no chão. O cheiro vem deles, cheiro de urina velha. Chamo o guarda: "Leve estes homens para se limparem, e depressa, por favor".

Mostro a meu visitante a penumbra fresca do celeiro. "Esperamos três mil alqueires da terra comunal este ano. Plantamos só uma vez. O tempo tem sido muito bom conosco." Falamos de ratos e das maneiras de controlar o número deles. Quando voltamos à cabana, ela cheira a cinza molhada e os prisioneiros estão prontos, ajoelhados num canto. Um deles é um velho, o outro um menino. "Foram presos faz poucos dias", digo. "Houve um ataque a uns trinta quilômetros daqui. O que não é comum. Normalmente eles ficam bem longe do forte. Esses dois foram capturados depois. Dizem que não tiveram nada a ver com o ataque. Eu não sei. Vai ver estão dizendo a verdade. Se o senhor quiser falar com eles, eu, é claro, ajudo com a língua."

O rosto do menino está estufado e ferido, um olho fechado pelo inchaço. Agacho-me diante dele e toco sua face. "Escute, menino", digo no patoá da fronteira, "queremos falar com você."

Ele não responde.

"Está fingindo", diz o guarda. "Ele entende."

"Quem bateu nele?", pergunto.

"Não fui eu", diz ele. "Já estava assim quando chegou."

"Quem bateu em você?", pergunto ao menino.

Ele não está me ouvindo. Olha por cima de meu ombro, não para o guarda, mas para o coronel Joll ao lado dele.

Viro-me para Joll "Ele provavelmente nunca viu nada igual antes." Aponto. "Os óculos, quero dizer. Deve pensar que o senhor é cego." Mas Joll não sorri de volta. Na presença de prisioneiros, ao que parece, é preciso manter uma certa postura.

Agacho-me diante do velho. "Vovô, escute aqui. Trouxemos você para cá porque te pegamos depois de um ataque ao rebanho. Sabe que isso é coisa séria. Sabe que pode ser castigado por isso."

Ele põe a língua para fora para umedecer os lábios. Tem o rosto cinzento e exausto.

"Vovô, está vendo esse cavalheiro? Esse cavalheiro é uma visita da capital. Ele visita todos os fortes da fronteira. O trabalho dele é descobrir a verdade. É só isso que ele faz. Descobre a verdade. Se você não falar comigo, vai ter de falar com ele. Está entendendo?"

"Excelência", diz ele. Sua voz falha; ele limpa a garganta. "Excelência, a gente não sabe nada de roubo. Os soldados pararam a gente e amarraram. Por nada. A gente estava na estrada, estava indo ver o médico. Este é o menino da minha irmã. Ele está com uma ferida que não sara. A gente não é ladrão. Mostre a ferida para as Excelências."

Esperto, com mãos e dentes o menino começa a desenrolar os trapos que envolvem seu antebraço. A última volta, dura de sangue e pus, está grudada na pele, mas ele levanta a beirada para me mostrar a borda vermelho-vivo da ferida.

"Tá vendo?", diz o velho, "nada cura isso aí. Eu estava levando ele no médico quando os soldados pararam a gente. Só isso."

Retorno com meu visitante para o outro lado da praça. Três mulheres passam por nós, voltando do dique de irrigação com cestos de roupa na cabeça. Olham-nos com curiosidade, mantendo o pescoço rijo. O sol castiga.

"São os primeiros prisioneiros que fazemos em muito tempo", digo. "Uma coincidência: normalmente não teríamos nenhum bárbaro para mostrar ao senhor. Isso que chamam de banditismo não é coisa grande. Eles roubam uns carneiros ou retiram uma besta de carga de uma tropa. Às vezes, damos o troco. São quase todos gente de tribo pobre com uns rebanhos minúsculos na beira do rio, para sua própria subsistência. Vira um modo de vida. O velho diz que estavam indo ao médico. Pode ser verdade. Ninguém levaria um velho e um menino doente num grupo de ataque."

Tomo consciência de que estou falando em favor deles.

"Claro que não dá para ter certeza. Mas, mesmo que estejam mentindo, que utilidade eles têm para o senhor, gente simples assim?"

Tento controlar minha irritação com seus silêncios crípticos, com o bobo mistério teatral dos escudos escuros que escondem olhos saudáveis. Ele caminha com as mãos entrelaçadas diante do corpo como uma mulher.

"Mesmo assim", diz, "tenho de interrogar os dois. Hoje à noite, se for conveniente. Vou levar meu assistente comigo. Vou precisar também de alguém que me ajude com a língua. O guarda, talvez. Ele fala a língua deles?"

"Nós todos nos fazemos entender. Prefere que eu não esteja lá?"

"O senhor ia achar maçante. Temos procedimentos preestabelecidos a obedecer."

Dos gritos que as pessoas afirmam ter ouvido do celeiro depois, eu não ouço nada. A cada momento daquela noite, enquanto faço o que tenho de fazer, estou alerta para o que possa estar acontecendo, e meu ouvido está até sintonizado para o tom de dor humana. Mas o celeiro é um edifício sólido com portas pesadas e janelas minúsculas; fica além do abatedouro e do moinho no lado sul. Além disso, o que foi um dia um posto avançado e depois um forte na fronteira cresceu até se tornar um assentamento agrícola, uma cidade de três mil almas onde o barulho da vida, o barulho que todas essas almas fazem numa noite quente de verão, não cessa porque em algum lugar alguém está gritando. (A certo ponto, começo a defender minha própria causa.)

Quando vejo o coronel Joll de novo, quando ele tem tempo, puxo o assunto tortura. "E se o prisioneiro estiver dizendo a verdade", pergunto, "mas descobre que não acreditam nele? Não é uma situação terrível? Imagine: estar preparado para ceder, ceder, não ter mais nada a ceder, estar quebrado, e ser pressionado a ceder mais! E que responsabilidade para o interrogador! Como o senhor pode ter certeza de que um homem disse a verdade?"

"Há um certo tom", Joll diz. "Um certo tom que aparece na voz de um homem que está dizendo a verdade. Treino e experiência ensinam a reconhecer esse tom."

"O tom da verdade! Dá para perceber esse tom na conversa de todo dia? O senhor consegue escutar quando eu estou dizendo a verdade?"

É o momento mais íntimo que tivemos até agora, o qual ele afasta com um pequeno aceno de mão. "Não, o senhor está me entendendo mal. Estou falando de uma situação especial apenas, estou falando de uma situação em que estou procurando a verdade, em que tenho de exercer pressão para descobrir a verdade. Primeiro eu consigo mentiras, entende-é isso que acontece-, primeiro mentiras, depois pressão, depois mais mentiras, depois mais pressão, depois a quebra, depois mais pressão, depois a verdade. É assim que se consegue a verdade."

A dor é a verdade; tudo o mais está sujeito a dúvida. É isso que concluo de minha conversa com o coronel Joll, a quem, com suas unhas que tamborilam, os lenços roxos, os pés finos em sapatos macios, fico imaginando de volta à capital pela qual ele está obviamente tão impaciente, cochichando com os amigos nos corredores do teatro entre os atos.

(Por outro lado, quem sou eu para afirmar minha distância dele? Bebo com ele, como com ele, mostro-lhe os lugares, presto-lhe toda a assistência que a carta de comissionamento dele requer, e mais. O Império não exige que seus súditos amem uns aos outros, simplesmente que cumpram seu dever.)

O relato que ele faz a mim, na minha qualidade de magistrado, é breve.

"No curso do interrogatório contradições ficaram aparentes no depoimento do prisioneiro. Confrontado com essas contradições, o prisioneiro ficou enraivecido e atacou o oficial investigador. Seguiu-se um corpo-a-corpo durante o qual o prisioneiro caiu pesadamente contra a parede. Os esforços para reanimá-lo foram inúteis."

Em prol da completude, conforme exigido na forma da lei, convoco o guarda e lhe peço que faça um relato. Ele recita, e eu anoto suas palavras: "O prisioneiro ficou incontrolável e atacou o oficial visitante. Fui chamado para ajudar a dominar o prisioneiro. Quando cheguei, o conflito havia terminado. O prisioneiro estava inconsciente e sangrando pelo nariz". Aponto o lugar onde ele deve fazer sua marca. Ele pega a caneta de minha mão com reverência.

"O oficial falou para você o que tinha de me dizer?", pergunto baixinho.

"Sim, senhor", diz ele.

"O prisioneiro estava com as mãos amarradas?"

"Sim, senhor. Quer dizer, não, senhor."

Dispenso-o e preencho a autorização para o enterro.

Mas, antes de ir para a cama, pego uma lanterna, atravesso a praça e circundo as ruas de trás do celeiro. Há um novo guarda na porta da cabana, outro rapaz camponês dormindo enrolado em seu cobertor. Um grilo pára de cantar quando me aproximo. O ruído do trinco não acorda o guarda. Entro na cabana segurando alta a lanterna, invadindo, me dou conta, solo que se tornou sagrado ou profano, se existe alguma diferença, reserva dos mistérios do Estado.

O menino está deitado numa cama de palha num canto, vivo, bem. Parece estar dormindo, mas a tensão em sua postura o trai. As mãos estão amarradas na frente do corpo. No outro canto há uma trouxa branca comprida.

Acordo o guarda. "Quem mandou deixar o corpo aqui? Quem costurou a mortalha?"

Ele identifica a raiva em minha voz. "Foi o homem que veio com a outra Excelência, sir. Ele estava aqui quando entrei em serviço. Ele disse para o menino, eu ouvi: 'Durma com seu avô, esquente ele'. Fingiu que ia costurar o menino dentro da mortalha também, da mesma mortalha, mas não costurou."

Com o menino ainda deitado, dormindo rigidamente, os olhos apertados, levamos o corpo para fora. No pátio, o guarda segura a lanterna, e eu encontro a costura com a ponta de minha faca, abro a mortalha e dobro, afastando-a da cabeça do velho.

A barba grisalha está dura de sangue. Os lábios estão esmagados e repuxados, os dentes quebrados. Um olho está virado para trás, a outra órbita é um buraco sangrento. "Feche", digo. O guarda junta as duas partes. A mortalha fica aberta. "Disseram que ele bateu a cabeça na parede. O que o senhor acha?" Ele olha para mim, cauteloso. "Encontre um fio e amarre isso."

Seguro a lanterna acima do menino. Ele não se mexe; mas, quando me inclino para tocar sua face, se encolhe e começa a tremer em longas ondas que lhe percorrem o corpo para cima e para baixo. "Escute aqui, menino", digo, "não vou te fazer mal." Ele rola de costas e leva as mãos amarradas ao rosto. Estão inchadas e roxas. Luto com a corda. Todos os meus gestos em relação a esse menino são desastrados. "Escute: você tem de dizer a verdade para o oficial. É só isso que ele quer ouvir de você-a verdade. Se ele tiver certeza de que está dizendo a verdade, não vai te machucar. Mas você tem de dizer para ele tudo o que sabe. Tem de responder com a verdade cada pergunta que ele fizer. Se doer, não perca a coragem." Desfaço o nó e por fim afrouxo a corda. "Esfregue as mãos até o sangue começar a correr." Fricciono suas mãos entre as minhas. Ele dobra os dedos dolorosamente. Não posso querer ser nada mais do que uma mãe a confortar um filho entre os ataques de raiva do pai. Não me escapou que um interrogador pode usar duas máscaras, falar com duas vozes, uma áspera, outra sedutora.

"Ele comeu alguma coisa agora à noite?", pergunto ao guarda.

"Não sei."

"Comeu alguma coisa?", pergunto ao menino. Ele sacode a cabeça. Sinto o coração pesar. Jamais quis ser levado a isto. Onde vai terminar não sei. Volto-me para o guarda. "Vou sair agora, mas quero que você faça três coisas. Primeiro, quando as mãos do menino tiverem melhorado, quero que amarre de novo, mas não com tanta força a ponto de ficarem inchadas. Segundo, quero que deixe o corpo onde está, no pátio. Não traga de volta para cá. De manhã cedo vou mandar uma equipe funerária buscar, e você vai entregar o corpo para eles. Se houver algum problema, diga que fui eu que dei as ordens. Terceiro, quero que tranque a cabana agora e venha comigo. Vou pegar alguma coisa na cozinha para o menino comer, e você vai trazer de volta. Venha."

Eu não queria me envolver nisto. Sou um magistrado da roça, um funcionário responsável a serviço do Império, servindo meus dias nesta fronteira preguiçosa, esperando para me aposentar. Recolho o dízimo e os impostos, administro as terras comunais, cuido de que não falte nada para a guarnição, supervisiono os funcionários juniores, que são os únicos funcionários que temos aqui, fico de olho no comércio, presido o tribunal duas vezes por semana. De resto, vejo o sol nascer e se pôr, como e durmo, e estou contente. Quando morrer, espero merecer três linhas em letra miúda na gazeta imperial. Não pedi nada mais que uma vida tranqüila em tempos tranqüilos.

Mas no ano passado começaram a nos chegar da capital histórias de inquietação entre os bárbaros. Comerciantes que viajavam por rotas seguras foram atacados e roubados. O roubo de gado tem aumentado em escala e audácia. Um grupo de funcionários do censo desapareceu e foi encontrado enterrado em covas rasas. Tiros foram disparados contra um governador provincial durante uma visita de inspeção. Tem havido choques com patrulhas da fronteira. As tribos bárbaras estão se armando, dizem os rumores; o Império devia tomar medidas de precaução, porque certamente vai haver guerra.

Dessa inquietação eu mesmo não vi nada. Em particular observei que uma vez em cada geração, sem falhar nunca, há um episódio de histeria ligado aos bárbaros. Não existe mulher que viva perto da fronteira que não tenha sonhado com uma escura mão bárbara saindo de sob a cama para agarrar seu tornozelo, não existe homem que não se assuste com visões dos bárbaros farreando em sua casa, quebrando os pratos, tocando fogo nas cortinas, estuprando suas filhas. Esses sonhos são conseqüência de muito ócio. Mostre-me um exército de bárbaros que então eu acredito.

Na capital, a preocupação era que as tribos bárbaras do norte e do oeste pudessem afinal estar se unindo. Oficiais do estado-maior foram mandados em expedições à fronteira. Algumas guarnições foram reforçadas. Comerciantes que pediram receberam escolta militar. E oficiais da Terceira Divisão da Guarda Civil foram vistos pela primeira vez na fronteira, guardiães do Estado, especialistas nos obscuros movimentos de sedição, devotos da verdade, doutores do interrogatório. De forma que agora parece que meus anos de sossego estão chegando ao fim, quando eu poderia dormir com o coração tranqüilo, sabendo que com um cutucão aqui e um toque ali o mundo continuaria firme em seu curso. Se eu tivesse ao menos entregado esses dois prisioneiros absurdos ao coronel, penso-"Aqui, coronel, o senhor é o especialista, veja o que pode fazer com eles!"-, se eu tivesse saído numa expedição de caça por uns dias, como devia ter feito, uma visita rio acima talvez, e voltado, e sem ler, ou depois de uma passada de olhos sem curiosidade, pusesse meu selo no relatório dele, sem nenhuma pergunta sobre o que quer dizer a palavra investigações, sobre o que há debaixo dela tal como uma fada má debaixo de uma pedra-se eu tivesse feito uma coisa sábia, talvez pudesse agora voltar à minha caça, à minha falcoaria e à plácida concupiscência enquanto espero cessarem as provocações e se aplacarem os tremores ao longo da fronteira. Mas, ai!, eu não fui embora: durante algum tempo tapei os ouvidos para os ruídos que vinham da cabana junto ao celeiro onde guardam as ferramentas, depois, à noite, peguei uma lanterna e fui ver por mim mesmo.

De horizonte a horizonte a terra está branca de neve. Ela cai de um céu em que a fonte de luz é difusa e presente em toda parte, como se o sol tivesse se dissolvido em neblina, se tornado uma aura. No sonho, passo pelo portão do alojamento, passo pelo mastro da bandeira vazio. A praça se estende diante de mim, seus limites fundidos com o céu luminoso. Muros, árvores, casas murcharam, perderam sua solidez, retiraram-se para as bordas do mundo.

Enquanto deslizo pela praça, figuras escuras se separam da brancura, crianças que brincam de construir um castelo de neve em cima do qual cravaram uma bandeirinha vermelha. Estão de luvas, de botas, com protetores de orelha contra o frio. Levam punhado após punhado de neve, cobrindo as paredes de seu castelo, preenchendo-o. A respiração se desprende delas em nuvens de vapor. A muralha em torno do castelo está semiconstruída. Esforço-me para penetrar a estranha tagarelice flutuante de suas vozes, mas não me saio bem.

Tenho consciência do meu tamanho, da natureza da minha sombra, portanto não me surpreende que as crianças desapareçam de ambos os lados quando me aproximo. Todas menos uma. Mais velha que as outras, talvez nem mesmo uma criança, ela está sentada na neve, encapuzada, de costas para mim, trabalhando na porta do castelo, as pernas abertas, cavando, batendo levemente, moldando. Paro atrás dela e observo. Ela não se vira. Tento imaginar o rosto entre as pétalas do seu capuz pontudo, mas não consigo.

O menino está deitado de costas, nu, adormecido, respirando depressa e superficialmente. A pele brilha de suor. Pela primeira vez seu braço está sem bandagem, e vejo a viva ferida aberta que ela escondia. Aproximo a lanterna. Sua barriga e ambas as virilhas têm furos com pequenas crostas, feridas e cortes, algumas marcadas por fios de sangue.

"O que fizeram com ele?", sussurro ao guarda, o mesmo rapaz da noite passada.

"Uma faca", ele sussurra de volta. "Só uma faquinha, assim." Abre o polegar e o indicador. Com a faquinha de ar entre os dedos, ele faz um breve movimento em cima do corpo do menino adormecido e vira a faca delicadamente, como uma chave, primeiro para a esquerda, depois para a direita. Depois a retira, a mão volta para o lado do seu corpo, ele fica esperando.

Ajoelho-me ao lado do menino, aproximo a luz de seu rosto e o chacoalho. Seus olhos se abrem languidamente e se fecham de novo. Ele suspira, a respiração rápida se torna mais lenta. "Escute!", digo-lhe. "Você teve um pesadelo. Tem de acordar." Ele abre os olhos e com eles semicerrados olha além da luz, para mim.

O guarda oferece uma vasilha de água. "Ele consegue sentar?", pergunto. O guarda sacode a cabeça. Levanta o menino e o ajuda a beber.

"Escute", digo. "Me disseram que você fez uma confissão. Que admitiu que você, o velho e outros homens de seu clã roubaram carneiros e cavalos. Você disse que os homens de seu clã estão se armando, que na primavera vão todos se juntar numa grande guerra contra o Império. Está dizendo a verdade? Você entende o que essa sua confissão vai significar? Entende?" Faço uma pausa; ele olha vagamente para toda essa veemência, como alguém cansado depois de correr uma grande distância. "Significa que os soldados vão perseguir o seu povo. Vai haver matança. Parentes seus vão morrer, talvez até seus pais, seus irmãos e irmãs. Você quer mesmo isso?" Ele não responde. Chacoalho seu ombro, bato em sua face. Ele não se esquiva: é como bater em carne morta. "Acho que ele está muito mal", o guarda sussurra atrás de mim, "muito machucado e muito mal." O menino fecha os olhos para mim.

Chamo o único médico que temos, um velho que ganha a vida arrancando dentes e fabricando afrodisíacos com farinha de osso e sangue de lagarto. Ele aplica um cataplasma de barro na ferida e espalha ungüento na centena de pequenos ferimentos. Dentro de uma semana, promete, o menino poderá andar. Recomenda comida nutritiva e vai embora depressa. Não pergunta como o menino suportou seu sofrimento.

Mas o coronel está impaciente. Seu plano é proceder a um rápido raide contra os nômades e fazer mais prisioneiros. Quer o menino junto, como guia. Pede-me que libere para ele trinta homens da guarnição de quarenta e que forneça montarias.

Tento dissuadi-lo. "Sem nenhum desrespeito, coronel", digo, "o senhor não é um soldado profissional, nunca fez campanha alguma nesta região inóspita. Não vai ter guia nenhum além de uma criança que tem pavor do senhor, que vai dizer o que lhe vier à cabeça para agradar ao senhor, que de qualquer modo não está em condições de viajar. Não pode confiar nos soldados para ajudar o senhor, porque não passam de camponeses recrutados, a maioria deles nunca esteve a mais de oito quilômetros do assentamento. Os bárbaros que o senhor vai perseguir vão farejar sua chegada e desaparecer no deserto enquanto o senhor ainda estiver a um dia de marcha de distância. Eles viveram aqui a vida toda, conhecem a terra. O senhor e eu somos estrangeiros-o senhor mais do que eu. Eu sinceramente aconselho o senhor a não ir."

Ele me ouve até o fim, até (tenho a sensação) me incentiva um pouco. Tenho certeza de que essa conversa é anotada em seguida, com o comentário de que estou "perturbado". Depois de ouvir o bastante, ele descarta minhas objeções: "Tenho uma missão a cumprir, magistrado. Só posso julgar quando meu trabalho estiver completo". E segue em frente com seus preparativos.

Viaja em sua carruagem de duas rodas, com cama de campanha e escrivaninha dobrável amarradas no teto. Forneço cavalos, carroças, forragem e provisões para três semanas. Um tenente júnior da guarnição o acompanha. Falo com o tenente em particular: "Não confie no seu guia. Ele está fraco e apavorado. Fique de olho no tempo. Observe pontos de referência. Seu primeiro dever é trazer nosso visitante de volta em segurança". Ele faz uma reverência.

Abordo Joll mais uma vez, tentando delinear suas intenções.

"É", diz ele. "Claro que não gostaria de me prender antecipadamente a um trajeto. Mas em termos gerais vamos localizar o acampamento desses seus nômades e depois proceder ao que a situação determinar."

"Estou perguntando", continuo, "só porque, se se perder, passa a ser nosso dever encontrar o senhor para trazer de volta à civilização." Fazemos uma pausa, saboreando de nossas diferentes posições as ironias da palavra.

"Sim, claro", diz ele. "Mas isso é pouco provável. Temos a sorte de contar com os excelentes mapas da região fornecidos pelo senhor."

"Esses mapas são baseados em pouco mais que boatos, coronel. Fui compondo esses mapas a partir do que contavam viajantes ao longo de um período de dez ou vinte anos. Eu próprio nunca pisei onde o senhor planeja ir. Estou simplesmente lhe fazendo um alerta."

Desde o segundo dia dele aqui, estou perturbado demais por sua presença para ir além do correto em meu comportamento com ele. Suponho que, como carrasco itinerante, esteja acostumado a ser evitado. (Ou será que é só nas províncias que carrascos e torturados ainda são considerados sujos?) Olhando para ele, imagino como se sentiu na primeiríssima vez: será que, convidado como aprendiz a torcer a torquês ou girar o parafuso ou seja lá o que for que eles fazem, estremeceu ao menos um pouco ao saber que naquele instante estava ultrapassando o limite do proibido? Vejo-me imaginando também se ele tem algum ritual particular de purificação, realizado a portas fechadas, para habilitá-lo a voltar e comungar com outros homens. Será que lava as mãos com muito cuidado, talvez, ou troca toda a roupa; ou será que a Divisão criou novos homens, que conseguem passar sem inquietação do sujo para o limpo?

Tarde da noite, escuto o raspar e o bater da orquestra debaixo das velhas nogueiras do outro lado da praça. Há um fulgor rosado no ar, vindo do grande leito de brasas sobre o qual os soldados estão assando um carneiro inteiro, presente da "Excelência". Vão beber até de madrugada, depois partir ao amanhecer.

Dirijo-me ao celeiro pelas vielas de trás. O guarda não está em seu posto, a porta da cabana está aberta. Estou prestes a entrar quando escuto vozes lá dentro, cochichando e rindo.

Espio no escuro de breu. "Quem está aí?", pergunto.

Ouve-se um som arranhado, e o jovem sentinela se choca comigo. "Desculpe, sir", diz. Sinto o cheiro de seu hálito saturado de rum. "O prisioneiro me chamou, e eu estava tentando ajudar." Do escuro vem um ronco de riso.

Vou dormir, desperto com outro round de música de dança na praça, adormeço de novo, e sonho com um corpo deitado de costas, uma profusão de pêlos púbicos escorrendo brilhantes, pretos e dourados, pela barriga, pelas virilhas, e descendo como uma flecha para o sulco das pernas. Quando estico a mão para alisar os pêlos, eles começam a se agitar. Não são pêlos, mas abelhas densamente aglomeradas umas em cima das outras: encharcadas de mel, pegajosas, rastejam para fora do sulco e batem as asas.

Meu último ato de cortesia é acompanhar o coronel a cavalo até onde a estrada vira para noroeste ao longo da costa do lago. O sol já saiu e brilha tão selvagemente na superfície que tenho de proteger os olhos. Os homens, cansados e enjoados depois da noite de festa, arrastam-se atrás de nós. No meio da coluna, amparado por um guarda que cavalga a seu lado, vem o prisioneiro. Seu rosto está lívido, ele está desconfortável em cima do cavalo, é evidente que os ferimentos ainda lhe causam dor. Por último vêm os cavalos de carga e as carroças com os tonéis de água, provisões e o equipamento mais pesado: lanças, fuzis, munição, barracas. No conjunto, uma visão nada animadora: a coluna marcha irregularmente, alguns homens de cabeça descoberta, alguns com o pesado capacete emplumado da cavalaria, outros com o quepe de couro simples. Eles protegem os olhos da claridade, todos menos um, que olha direto em frente através de uma tira de vidro enfumaçado colada a uma haste que ele sustenta diante dos olhos, imitando seu líder. Até onde essa afetação absurda vai se espalhar?

Cavalgamos em silêncio. Os ceifadores, ocupados nos campos desde antes do amanhecer, interrompem o trabalho para acenar quando passamos. Na curva da estrada, puxo as rédeas e me despeço. "Desejo ao senhor um retorno seguro, coronel", digo. Emoldurado pela janela de sua carruagem, ele inclina a cabeça inescrutavelmente.

Então marcho de volta, aliviado de meu encargo e contente por estar de novo sozinho num mundo que conheço e entendo. Subo à muralha para observar a pequena coluna se deslocando ao longo da estrada noroeste em direção à grande mancha verde onde o rio desemboca no lago e a linha de vegetação se dissipa na bruma do deserto. O sol ainda paira bronze e pesado sobre a água. Ao sul do lago, estendem-se terras pantanosas e planícies salgadas e além delas a linha azul-acinzentada das montanhas estéreis. Nos campos, os fazendeiros estão carregando as duas enormes carroças velhas de feno. Um bando de patos gira no céu e desce planando em direção à água. Fim de verão, um tempo de paz e abundância. Acredito na paz, talvez até mesmo na paz a qualquer preço.

Três quilômetros ao sul da cidade, um aglomerado de dunas se destaca da paisagem plana e arenosa. Caçar sapos nos pântanos e deslizar pelas encostas das dunas em pranchas de madeira polida são os principais esportes de verão das crianças, um para as manhãs, outro para os fins de tarde, quando o sol se põe e a areia começa a esfriar. Embora o vento sopre em todas as estações, as dunas são estáveis, mantidas no lugar por uma capa de fina relva e também, como descobri por acaso alguns anos atrás, por esqueletos de madeira. Porque as dunas cobrem as ruínas de casas que datam de tempos muito anteriores à anexação das províncias ocidentais e à construção do forte.

Um de meus hobbies tem sido escavar essas ruínas. Se não há reparos a fazer no sistema de irrigação, condeno os pequenos criminosos a alguns dias cavando nas dunas; soldados são mandados para cá em destacamentos punitivos; e no auge de meu entusiasmo cheguei a pagar do próprio bolso trabalhadores eventuais. O trabalho é impopular, porque os cavadores têm de batalhar debaixo do sol quente ou ao vento cortante sem nenhum abrigo e com areia voando por toda parte. Trabalham indiferentes, sem partilhar do meu interesse (que consideram caprichoso), desanimados pela rapidez com que o vento carrega a areia de volta a seu lugar. Mas no curso de alguns anos consegui desencavar diversas edificações até o nível do chão. A que foi escavada mais recentemente lá está, como um navio naufragado no deserto, visível até dos muros da cidade. Dessa edificação, talvez um prédio público ou um templo, recuperei a pesada viga de choupo, entalhada com figuras de peixes saltando entrelaçados, agora pendurada em cima de minha lareira. Enterrada abaixo do nível do chão numa bolsa que se desmanchou assim que foi tocada, encontrei também uma quantidade de tiras de madeira nas quais estão pintados caracteres numa escrita que nunca vi. Encontramos tiras como essas antes, espalhadas tal qual prendedores de roupas nas ruínas, mas a maior parte delas tão desbotada pela ação da areia que a escrita estava ilegível. Os caracteres das tiras novas estão tão nítidos quanto no dia em que foram escritos. Agora, na esperança de decifrar a escrita, me pus a colecionar todas as tiras que posso, e informei às crianças que aqui brincam que, se encontrarem uma, sempre vale um tostão.

As madeiras que desenterramos estão secas e friáveis. Muitas foram mantidas juntas apenas pela areia circundante e, uma vez expostas, desmoronam. Outras lascam à menor pressão. Que idade tem essa madeira eu não sei. Os bárbaros, que são pastores, nômades, moradores de tendas, não fazem em suas lendas nenhuma referência a assentamentos permanentes junto ao lago. Não há restos humanos entre as ruínas. Se existe um cemitério, não o encontramos. As casas não contêm móveis. Num monte de cinzas, encontrei fragmentos de cerâmica seca ao sol e algo marrom que pode um dia ter sido um sapato ou gorro de couro e que caiu aos pedaços diante dos meus olhos. Não sei de onde vinha a madeira para construir essas casas. Talvez, em tempos idos, criminosos, escravos, soldados, atravessassem os dezenove quilômetros até o rio, cortassem choupos, serrassem e aplainassem essas árvores, com carroças transportassem a madeira de volta a este lugar estéril e construíssem casas e um forte também, pelo que sei, e com o passar do tempo morreram, de forma que seus senhores, seus prefeitos, magistrados e capitães pudessem subir nos tetos e nas torres, de manhã e à noite, para examinar o mundo de horizonte a horizonte em busca de sinais dos bárbaros. Talvez em minhas escavações eu só tenha raspado a superfície. Talvez três metros abaixo do chão haja ruínas de outro forte, arrasado pelos bárbaros, povoado de ossos das pessoas que acharam que estariam seguras detrás de altas muralhas. Talvez, quando paro no chão do fórum, se é disso que se trata, eu esteja em cima da cabeça de um magistrado como eu, outro servidor grisalho do Império que tombou na arena de sua autoridade, face a face com o bárbaro, afinal. Como posso saber? Cavando como um coelho? Será que os caracteres das tiras um dia me contarão? Havia duzentas e cinqüenta e seis tiras na bolsa. Será por acaso que o número é perfeito? Quando as contei pela primeira vez e fiz essa descoberta, liberei o chão do meu escritório e as arrumei, primeiro num grande quadrado, depois em dezesseis quadrados menores, depois em outras combinações, pensando que o que eu havia tomado até então por caracteres de um silabário podiam ser de fato elementos de um quadro cujo traçado me tomaria de assalto se eu descobrisse a ordem correta: um mapa das terras dos bárbaros em tempos antigos, ou a representação de um panteão perdido. Eu me vi até lendo as tiras num espelho, ou traçando uma em cima da outra, ou combinando metade de uma com metade de outra.

Uma noite, fiquei entre as ruínas depois que as crianças correram para casa para jantar, no ar arroxeado do entardecer e das primeiras estrelas, a hora em que, segundo a lenda, os fantasmas despertam. Colei o ouvido no chão, como as crianças tinham me ensinado, para ouvir o que elas ouviam: baques e gemidos debaixo da terra, a batida profunda e irregular de tambores. No rosto eu sentia o toque da areia deslizando de lugar nenhum para lugar nenhum através dos desertos. A última luz se apagou, as muralhas ficaram pálidas contra o céu e se dissolveram no escuro. Durante uma hora esperei, embrulhado em minha capa, encostado no poste de esquina de uma casa onde pessoas um dia conversaram, comeram e tocaram música. Fiquei olhando a lua nascer, abrindo os sentidos para a noite, à espera de um sinal de que aquilo que havia à minha volta, o que jazia abaixo de meus pés, não era apenas areia, mas poeira de ossos, flocos de ferrugem, lascas, cinzas. O sinal não veio. Não senti nenhum tremor de medo fantasmagórico. Meu ninho na areia estava quente. Não demorou muito, me peguei cochilando.

Levantei e me espreguicei; depois marchei para casa na fragrante escuridão, me orientando pela ligeira fulguração dos fogos das casas no céu. Ridículo, pensei: um homem de barba branca sentado no escuro à espera de que espíritos dos desvãos da história lhe falem antes de ele ir para casa, para seu guisado militar e sua cama confortável. O espaço em torno de nós aqui é apenas espaço, nem menor nem maior que o espaço acima dos barracos, prédios, templos e escritórios da capital. Espaço é espaço, vida é vida, em toda parte é igual. Mas quanto a mim, sustentado pelo esforço de outros, sem vícios civilizados com que preencher meu lazer, eu mimo a minha melancolia e tento encontrar no vazio do deserto uma pungência histórica especial. Fútil, inútil, desorientado! Que bom que ninguém pode me ver!

Hoje, quatro dias apenas depois da partida da expedição, os primeiros prisioneiros do coronel chegaram. De minha janela vejo quando atravessam a praça entre os guardas montados, empoeirados, exaustos, já se encolhendo diante dos espectadores que se juntam em torno deles, das crianças pulando, dos cachorros latindo. À sombra da muralha do alojamento, os guardas desmontam; imediatamente os prisioneiros se agacham para descansar, a não ser um menino pequeno, que fica em cima de uma perna só, o braço no ombro da mãe, encarando curioso os observadores. Alguém traz um balde de água e uma concha. Eles bebem, sedentos, enquanto a multidão aumenta e se acotovela a tal ponto em torno deles que não consigo mais enxergar. Impaciente, espero o guarda que agora abre caminho pela multidão e atravessa até o pátio do alojamento.

"Como explica isto?", grito para ele. Ele abaixa a cabeça, remexe nos bolsos. "São pescadores! Como pode trazer essa gente até aqui?"

Ele estende uma carta. Quebro o selo e leio: "Por favor, mantenha estes e futuros detidos incomunicáveis até a minha volta". Abaixo da assinatura dele o selo aparece de novo, o selo da Divisão que ele levou para o deserto e que, se ele morrer, eu terei, sem dúvida, de mandar uma segunda expedição recuperar.

"Esse homem é ridículo!", grito. Caminho pela sala. Não se deve nunca depreciar funcionários na presença de subalternos, pais na presença de filhos, mas com esse homem não encontro nenhuma lealdade em meu coração. "Ninguém disse para ele que esses aí são pescadores? É uma perda de tempo trazer essa gente para cá! Você devia ajudar o coronel a encontrar ladrões, bandidos, invasores do Império! Será que essas pessoas parecem um perigo para o Império?" Jogo a carta pela janela.

A multidão se abre diante de mim até eu estar no centro, em frente a uma dúzia de prisioneiros patéticos. Eles se encolhem diante da minha ira, o menino se esgueira entre os braços da mãe. Faço um gesto para os guardas: "Abram caminho e levem essas pessoas para o pátio do alojamento!". Eles tocam os cativos; o portão do alojamento se fecha atrás de nós. "Agora se expliquem", digo; "ninguém contou para ele que esses prisioneiros são inúteis? Ninguém contou para ele a diferença entre pescadores com redes e cavaleiros nômades ferozes com arcos? Ninguém contou para ele que eles nem falam a mesma língua?"

Um dos soldados explicou: "Quando eles viram a gente chegando, tentaram se esconder nos juncos. Viram cavaleiros chegando, então tentaram se esconder. Aí o oficial, o Excelência, mandou a gente prender eles. Porque estavam se escondendo".

Eu podia xingar de irritação. Um policial! O raciocínio de um policial! "E Sua Excelência disse por que queria que fossem trazidos para cá? Ele disse por que não podia fazer perguntas para eles lá mesmo?"

"Nenhum de nós fala a língua deles, sir."

Claro que não! Essa gente do rio é aborígine, ainda mais antiga que os nômades. Vivem em assentamentos de duas ou três famílias ao longo da margem do rio, pescando e colocando armadilhas a maior parte do ano, remando para as praias mais remotas do norte do lago no outono para pegar minhocas e secá-las, constroem frágeis abrigos de junco, gemem de frio todo o inverno, vestidos com peles. Vivem com medo de todo mundo, esquivos entre os juncos, o que podem saber de uma grande campanha bárbara contra o Império?

Mando um dos homens buscar comida na cozinha. Ele volta com um pedaço de pão de ontem que oferece ao prisioneiro mais velho de todos. Reverente, o velho aceita o pão com ambas as mãos, cheira, quebra em pedaços, passa aos outros. Eles enchem a boca com esse maná, mastigando depressa, sem levantar os olhos. Uma mulher cospe o pão mastigado na palma da mão e alimenta seu bebê. Faço sinal de que precisam de mais pão. Ficamos olhando enquanto eles comem, como se fossem animais estranhos.

"Deixem que fiquem no pátio", digo aos guardas. "Vai ser inconveniente para nós, mas não tem outro lugar. Se esfriar à noite, faço outro arranjo. Providenciem para que sejam alimentados. Dêem alguma coisa para se ocuparem. Mantenham o portão fechado. Não vão fugir, mas não quero nenhum curioso entrando aqui para olhar para eles."

Então controlo minha raiva e faço o que o coronel mandou: mantenho os prisioneiros inúteis "incomunicáveis". E, depois de um dia ou dois, esses selvagens parecem esquecer que já tiveram outro lar. Inteiramente seduzidos pela comida grátis e abundante, acima de tudo pelo pão, eles relaxam, sorriem para todo mundo, deslocam-se pelo pátio do alojamento de uma sombra para outra, cochilam e despertam, ficam excitados quando chega a hora da refeição. Seus costumes são francos e imundos. Um canto do pátio se tornou uma latrina onde homens e mulheres se agacham abertamente e onde uma nuvem de moscas zune o dia inteiro. ("Dêem uma pá para eles!", digo aos guardas; mas eles não a usam.) O menininho, que ficou bem destemido, vaga pela cozinha, implorando açúcar às empregadas. Além do pão, o açúcar e o chá são grandes novidades para eles. Toda manhã, recebem um bloquinho de folhas de chá prensadas que fervem num balde de quatro galões de água num tripé sobre o fogo. Estão felizes aqui; na verdade, a menos que os mandemos embora, são capazes de ficar conosco para sempre, tão pouco parece ter sido preciso para atraí-los para longe de um estado natural. Passo horas observando-os da janela do segundo andar (outros curiosos têm de olhar pelo portão). Observo as mulheres catando piolhos, penteando e trançando os longos cabelos escuros umas das outras. Alguns têm crises de uma áspera tosse seca. É notável que não haja crianças no grupo além do bebê e do menininho. Será que alguns deles, os mais ágeis, mais alertas, conseguiram apesar de tudo escapar dos soldados? Espero que sim. Espero que, quando os devolvermos a suas casas ao longo do rio, eles tenham muitas histórias incríveis para contar aos vizinhos. Espero que a história de seu cativeiro entre para suas lendas, passada de avô para neto. Mas espero também que a lembrança da cidade, com sua vida fácil e comidas exóticas, não seja forte o bastante para atraí-los de volta. Não quero uma raça de mendigos em minhas mãos.

Durante alguns dias, os pescadores são um divertimento, com sua estranha tagarelice, seu vasto apetite, sua falta de vergonha animal, seu temperamento volátil. Os soldados ficam pelas portas olhando para eles, fazendo comentários obscenos que eles não entendem, rindo; há sempre crianças com o rosto apertado nas grades do portão; e de minha janela eu observo, invisível atrás do vidro.

Depois, todos juntos, perdemos a simpatia por eles. A sujeira, o cheiro, o barulho de suas brigas e de sua tosse se tornam excessivos. Ocorre um feio incidente quando um soldado, talvez só de brincadeira, tenta arrastar uma das mulheres para dentro e é alvejado com pedras. Começa a se espalhar um rumor de que eles estão doentes, de que trarão uma epidemia para a cidade. Embora eu os faça abrir um fosso no canto do pátio a fim de para lá removerem seus dejetos, o pessoal da cozinha lhes recusa utensílios e começa a jogar a comida da porta para eles como se fossem realmente animais. Os soldados trancam a porta do salão do alojamento, as crianças não chegam mais ao portão. Alguém atira um gato morto por cima do muro de noite e provoca um tumulto. Durante os longos dias quentes eles vagueiam pelo pátio vazio. O bebê chora e tosse, chora e tosse, até que eu busco refúgio no canto mais distante de meu apartamento. Escrevo uma carta furiosa à Terceira Divisão, insone guardiã do Império, denunciando a incompetência de um de seus agentes. "Por que não mandam pessoal com experiência na fronteira para investigar a inquietação da fronteira?", escrevo. Sabiamente, rasgo a carta. Se eu destrancar o portão na calada da noite, penso, será que os pescadores se esgueiram e vão embora? Mas nada faço. Então, um dia, noto que o bebê parou de chorar. Quando olho pela janela, ele não está em parte alguma. Mando um guarda dar busca, e ele encontra o cadaverzinho debaixo da roupa da mãe. Ela não quer largá-lo, temos de arrancá-lo dela. Depois disso, ela passa o dia inteiro agachada, com o rosto coberto, recusa-se a comer. Seu povo parece evitá-la. Será que violamos algum costume deles, penso, tirando a criança e enterrando-a? Amaldiçôo o coronel Joll por toda essa confusão que me arranjou e pela vergonha também.

Então, no meio da noite, ele volta. Toques de clarim das plataformas interrompem meu sono, o salão do alojamento entra em erupção quando os soldados vão correndo pegar suas armas. Minha cabeça está confusa, demoro para me vestir, quando saio para a praça, a coluna já está entrando pelos portões, alguns homens montados, outros puxando as montarias. Dou um passo para trás quando os observadores se juntam, tocando e abraçando os soldados, rindo de excitação ("Tudo seguro!", alguns gritam), até que, avançando no meio da coluna, vejo o que vinha temendo: a carruagem negra, depois o grupo de prisioneiros arrastando os pés, amarrados um ao outro pelo pescoço por uma corda, figuras sem forma em seus casacos de pele de carneiro debaixo do luar prateado, depois, atrás deles, os últimos soldados tocando as carroças e os cavalos de carga. À medida que mais e mais gente vem correndo, alguns com tochas acesas, e a barulheira aumenta, dou as costas ao triunfo do coronel e volto para minhas acomodações. É nesse ponto que começo a perceber as desvantagens de morar, como escolhi morar, no amplo apartamento em cima dos armazéns e da cozinha, destinado ao comandante militar que não temos há anos, em vez de ir para a atraente vila com gerânios nas janelas que compete a um magistrado civil. Gostaria de tapar os ouvidos para o ruído que vem do pátio lá embaixo, o qual agora, ao que parece, tornou-se um pátio de prisão permanente. Sinto-me velho e cansado, quero dormir. Durmo sempre que posso agora e, quando acordo, acordo relutantemente. Dormir já não é um banho curativo, uma recuperação de forças vitais, mas um esquecimento, um roçar noturno com a aniquilação. Morar no apartamento passou a ser ruim para mim, acho; mas não só isso. Se eu morasse na vila dos magistrados, na rua mais tranqüila da cidade, realizando julgamentos às segundas e quintas-feiras, indo à caça toda manhã, ocupando minhas noites com os clássicos, tapando os ouvidos para as atividades desse policial pretensioso, se resolvesse espantar o mau momento e me mantivesse isolado, poderia deixar de me sentir como um homem que, levado pela corrente, desiste de lutar, pára de nadar, vira o rosto para o mar aberto e para a morte. Mas é o conhecimento do quanto é contingente a minha inquietação, do quanto ela depende de um bebê chorar debaixo de minha janela um dia e não chorar no próximo, que atrai a pior vergonha para mim, a maior indiferença à aniquilação. De alguma forma, eu sei demais; e desse conhecimento, depois que se foi contaminado, parece não haver recuperação. Eu nunca deveria ter pegado a lanterna para ver o que estava acontecendo na cabana ao lado do celeiro. Por outro lado, para mim não havia como, depois de ter pegado a lanterna, deixá-la de lado outra vez. O nó se fecha sobre si mesmo: não consigo encontrar a ponta.

O dia seguinte inteiro o coronel passa dormindo em seu quarto na hospedaria, e o pessoal tem de fazer seus deveres na ponta dos pés. Tento não prestar atenção na nova leva de prisioneiros no pátio. É uma pena que todas as portas do bloco do alojamento, assim como a da escada que leva a meu apartamento, dêem para o pátio. Saio depressa à luz das primeiras horas, me ocupo o dia inteiro com aluguéis municipais, janto à noite com amigos. A caminho de casa, encontro o jovem tenente que acompanhou o coronel Joll ao deserto e lhe dou os parabéns pelo retorno em segurança. "Mas por que não explicou ao coronel que os pescadores não têm como ajudar nas investigações dele?" Ele me olhou embaraçado. "Falei com ele", me diz, "mas ele só disse assim: 'Prisioneiros são prisioneiros'. Achei que não era meu papel discutir com ele."

No dia seguinte, o coronel dá início a seus interrogatórios. Antes, eu pensava que ele era preguiçoso, pouco mais que um burocrata com gostos perversos. Agora, via o quanto estava errado. Em sua busca da verdade, ele é incansável. O interrogatório começa de manhã cedo e ainda prossegue quando eu volto, depois do escurecer. Ele convocou a ajuda de um caçador que passou a vida matando porcos rio abaixo e rio acima e conhece uma centena de palavras da língua dos pescadores. Um por um, os pescadores são levados para a sala onde o coronel se instalou, para responderem se viram movimentos de cavaleiros estranhos. Até a criança é interrogada: "Algum estranho visitou seu pai durante a noite?". (Evidentemente, adivinho o que acontece naquela sala, o medo, a confusão, a humilhação.) Os prisioneiros são devolvidos não para o pátio, mas para o salão principal do alojamento: os soldados foram removidos, aquartelados na cidade. Sento em meu quarto com as janelas fechadas, no calor sufocante de uma noite sem vento, tento ler, apuro o ouvido para ouvir ou não ouvir os sons da violência. Por fim, à meia-noite o interrogatório cessa, já não há batidas de portas, nem pisar de pés, o pátio fica silencioso ao luar, e tenho a liberdade de dormir.

A alegria desapareceu de minha vida. Passo o dia brincando com listas e números, esticando pequenas tarefas para preencher as horas. À noite, janto na hospedaria; depois, relutante em voltar para casa, subo para as alas de cubículos e quartos divididos onde dormem os moços das estrebarias e as garotas atendem amigos.

Durmo como um morto. Quando acordo na luz rala do amanhecer, a garota está deitada encolhida no chão. Toco seu braço: "Por que está dormindo aí?".

Ela retribui o sorriso. "Tudo bem. Estou bem assim." (É verdade: deitada no tapete macio de pele de carneiro, ela se espreguiça e boceja, seu lindo corpinho nem cabe direito ali.) "Você estava se mexendo no sono, me disse para ir embora, então resolvi que ia dormir melhor aqui."

"Mandei você embora?"

"Foi: dormindo. Não se incomode." Ela sobe a meu lado na cama. Eu a abraço com gratidão, sem desejo.

"Gostaria de dormir aqui esta noite de novo", digo. Ela esfrega o nariz em meu peito. Ocorre-me que tudo o que eu quiser dizer para ela será ouvido com simpatia, com bondade. Mas o que posso dizer? "Coisas terríveis acontecem na noite enquanto você e eu dormimos"? Os chacais dilaceram as entranhas da lebre, mas o mundo continua girando.

Mais um dia e mais uma noite eu passo longe do império da dor. Adormeço nos braços da garota. De manhã, ela está de novo deitada no chão. Ri de minha aflição: "Você me empurrou com as mãos e os pés. Por favor, não se incomode. Não dá para controlar os sonhos, nem o que se faz dormindo". Gemo e desvio o rosto. Eu a conheço há um ano, visito-a duas vezes por semana neste quarto. Sinto por ela um afeto tranqüilo, que é talvez o que de melhor se pode esperar entre um homem que envelhece e uma garota de vinte anos; melhor que uma paixão possessiva, sem dúvida. Brinquei com a idéia de convidá-la para morar comigo. Tento lembrar qual pesadelo me possuía quando a empurrei, mas não consigo. "Se eu fizer isso de novo, prometa que me acorda", digo a ela.

Depois, em meu escritório no tribunal, anunciam um visitante. O coronel Joll, usando seus óculos escuros dentro de casa, entra e senta-se diante de mim. Ofereço-lhe chá, surpreso com a firmeza de minha mão. Ele está indo embora, diz. Devo tentar esconder minha alegria? Ele toma o chá, sentado cuidadosamente ereto, inspecionando a sala, as estantes e mais estantes de papéis amarrados com fita, registro de décadas de enfadonha administração, a pequena estante de textos legais, a escrivaninha cheia. Completou a investigação por enquanto, diz, e está com pressa de voltar para a capital e apresentar seu relatório. Tem o ar de um triunfo controlado com austeridade. Balanço a cabeça mostrando que entendi. "Qualquer coisa que possa fazer para facilitar sua viagem...", digo. Há uma pausa. Depois, no silêncio, como uma pedra num poço, jogo minha pergunta.

"E suas investigações, coronel, entre os nômades e os aborígines... foram bem-sucedidas como o senhor gostaria?"

Ele encosta os dedos ponta com ponta antes de responder. Tenho a impressão de que sabe o quanto sua afetação me irrita. "Sim, magistrado, posso dizer que tivemos algum sucesso. Principalmente quando se considera que investigações semelhantes estão sendo realizadas em outros pontos da fronteira de maneira coordenada."

"Isso é ótimo. E pode nos dizer se temos alguma coisa a temer? Podemos descansar em segurança à noite?"

O canto de sua boca se dobra num pequeno sorriso. Ele então se levanta, faz uma reverência, vira-se e sai. Cedo na manhã seguinte parte acompanhado de sua pequena escolta, toma a longa estrada leste de volta à capital. No decorrer de todo um difícil período ele e eu conseguimos nos portar um com o outro como pessoas civilizadas. Toda a minha vida acreditei em comportamento civilizado; nesta ocasião, porém, não posso negar, a lembrança me deixa mal comigo mesmo.

Minha primeira atitude é visitar os prisioneiros. Destranco o salão do alojamento que serviu de prisão para eles, os sentidos já enojados pelo cheiro enjoativo de suor e excremento, e escancaro as portas. "Tirem todos daqui!", grito para os soldados semivestidos que se põem de pé, olhando para mim, enquanto comem seu mingau de aveia. Da penumbra os prisioneiros espiam, apáticos. "Vão lá dentro e limpem essa sala!", grito. "Quero tudo limpo! Água e sabão! Quero tudo como era antes!" Os soldados correm para obedecer; mas por que minha raiva se dirige a eles?, devem estar perguntando. Os prisioneiros saem para a luz do dia, piscando, protegendo os olhos. Uma das mulheres tem de ser ajudada. Treme o tempo todo como uma velha, embora seja jovem. Alguns estão doentes demais para ficar em pé.

A última vez que os vi foi cinco dias atrás (se é que posso dizer que os vi, que alguma vez fiz mais que passar os olhos por eles, distraidamente, com relutância). O que sofreram nesses cinco dias não sei. Agora, reunidos pelos guardas, formam um pequeno novelo desamparado no canto do pátio, nômades e pescadores juntos, doentes, esfaimados, estragados, aterrorizados. Seria melhor se esse capítulo obscuro na história do mundo fosse encerrado de imediato, se essa gente feia fosse obliterada da face da Terra e jurássemos começar de novo, administrar um império onde já não houvesse injustiça nem dor. Custaria pouco fazê-los marchar para o deserto (dando-lhes uma refeição primeiro, talvez, para possibilitar a marcha), mandá-los cavar, com suas últimas forças, uma cova grande o bastante para deitarem todos dentro (ou até mesmo cavar para eles!) e, depois de deixá-los lá enterrados para todo o sempre, voltar para a cidade murada cheios de novas intenções, novas resoluções. Mas não será esse o meu rumo. Os novos homens do Império são os que acreditam em novos começos, novos capítulos, páginas limpas; eu continuo lutando com a velha história, esperando que, antes que termine, ela me revele por que foi que achei que valia a pena. Assim é que, tendo a administração da lei e da ordem nestas partes sido devolvida a minhas mãos, ordeno que os prisioneiros sejam alimentados, que o médico seja chamado para fazer o que puder, que o alojamento volte a ser alojamento, que sejam tomadas providências para devolver os prisioneiros a sua vida anterior o mais depressa possível, o mais longe possível.

Especial
  • Leia o que já foi publicado sobre John Maxwell Coetzee
  • Leia o que já foi publicado sobre o escritor na Folha de S. Paulo (só para assinantes)


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