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18/02/2006 - 02h00

Leia 1º capítulo do livro "O Atentado"

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da Folha de S. Paulo

Leia o primeiro capítulo do livro "O Atentado" (R$ 33, 256 págs.), assinada por Yasmina Khadra, com tradução de Ana Montoia, a ser lançado no Brasil nesta segunda-feira (20) pela Sá Editora. Yasmina é pseudônimo feminino usado pelo escritor Mohammed Moulessehoul, 51, para burlar a censura dos antigos patrões --o Exército argelino. A edição deste sábado da Folha de S. Paulo traz resenha sobre o livro.




Não lembro ter ouvido nenhuma explosão.

Um sibilar, talvez, como o esgarçar de um tecido se rasgando, mas nem tenho certeza. Minha atenção se concentrava toda naquela espécie de divindade em torno da qual enxameava uma matilha de fiéis, que uma guarda pretoriana tentava afastar, abrindo-lhepassagem até o carro. "Saiam da frente, por favor. Por favor, afastem-se." Os fiéis acotovelavam-se para ver o xeque mais de perto, roçar uma aba de seu kamis. O venerado ancião voltava a cabeça de tempos em tempos, saudando um conhecido ou agradecendo a um discípulo. Seu rosto ascético brilhava com um olhar afiado como a lâmina de um alfanje. Tentei livrar-me dos corpos em transe que me oprimiam, em vão. O xeque desapareceu em seu carro, agitou uma mão por trás das janelas blindadas enquanto seus dois guarda-costas se acomodavam a seu lado... Depois, mais nada. Alguma coisa riscou o céu e fulgurou no meio da rua, semelhante a um raio; sua onda de choque atingiu-me em cheio, deslocando o tropel desarvorado que me mantinha cativo de seu delírio. Em uma fração de segundo, o céu desabou, e a rua, antes cheia de fervor, agora era só tumulto. O corpo de um homem, ou então de um menino, atravessou minha vertigem como um relâmpago escuro. O que é isso?... Uma onda de pó e fogo veio me engolir, lançando-me entre mil projéteis. Tenho a vaga sensação de que vou me desfiando, dissolvido no sopro da explosão... A alguns metros - ou então a anos-luz - o veículo do xeque queima como uma tocha. Tentáculos vorazes tragamno, deixando no ar um insuportável cheiro de cremação.

O zumbido deve ser aterrador, mas não me dou conta. Uma surdez fulminante raptou-me aos ruídos da cidade. Não escuto nada, não sinto nada. Só faço pairar pelos ares, planando, planando. Levo uma eternidade antes de pousar no solo, nocauteado, desfeito, mas curiosamente lúcido, os olhos maiores que o horror que acaba de se abater sobre a rua. Quando toco o chão, tudo se imobiliza; as chamas acima do carro desmembrado, os projéteis, a fumaça, o caos, os cheiros, o tempo... Só uma voz celeste, pendendo sobre o silêncio insondável da morte, canta: retornaremos, um dia, um dia retornaremos. Não é exatamente uma voz; parece mais um frêmito, uma filigrana...

Minha cabeça salta em algum lugar... Mamãe, grita uma criança. Seu apelo é fraco, mas nítido, claro. Vem de muito longe, de um além apaziguado... As chamas que devoram o veículo não querem mover-se, e os projéteis relutam em cair... Minha mão se busca no meio do cascalho; acho que me pegou. Tento mexer as pernas, levantar o pescoço; nenhum músculo me obedece... Mamãe, grita a criança... Estou aqui, Amin...

Está ali, essa mãe, emergindo de uma cortina de fumaça. Avança no meio dos destroços suspensos pelo ar, entre os gestos petrificados, as bocas abertas sobre o abismo.Por um momento, com seu véu lácteo e seu olhar martirizado, tomo-a pela Virgem. Minha mãe sempre foi assim, radiante e triste a um só tempo, como um círio. Quando punha a mão em minha testa queimando, absorvia toda a febre e todos os temores...

E ela está aqui, agora; sua magia não ganhou uma ruga. Um arrepio me atravessa da cabeça aos pés, liberando o universo, provocando meus delírios. As chamas retomam sua dança macabra, os estilhaços suas trajetórias, o pânico seus desvarios... Um homem em farrapos, o rosto e o braço enegrecidos, tenta aproximar-se do carro em fogo. Foi gravemente atingido e, contudo, movido por não sei qual teimosia, busca a todo custo socorrer o xeque. A cada vez que sua mão chega à porta, é empurrado pelo jato das chamas. No interior do carro, os corpos emboscados queimam. Dois espectros ensangüentados avançam do outro lado, tentando forçar a porta de trás. Vejo-os gritando suas ordens, ou então era a dor, mas não os ouço. Perto de mim, um velho desfigurado me fixa com um ar embotado; não parece ter notado que suas tripas estão para fora, que seu sangue corre para o charco.

Um ferido escala os destroços, uma enorme mancha fumegante nas costas. Passa bem ao meu lado, gemendo e afobado, e entrega a alma um pouco mais adiante, os olhos escancarados, como se não pudesse admitir que aquilo acontecia com ele, bem com ele. Os dois espectros terminam por quebrar o pára-brisa, e lançam-se ao interior do carro. Outros sobreviventes acodem ao salvamento. As mãos nuas, desmancham o carro em fogo, quebram os vidros, disputam-se com as portas e conseguem retirar dali o corpo do xeque.

Uma dezena de braços o transporta, afasta-o do braseiro antes de instalá-lo na calçada, enquanto uma nuvem de mãos estendidas se esgrime em apagar o fogo em sua roupa. Sinto as picadas de um formigueiro no meu quadril. Minha calça quase desapareceu: restam algumas tiras calcinadas que teimam em me cobrir em algum canto. Minha perna repousa de lado, grotesca e horrível a um só tempo, apenas um mísero cordão fino de carne ainda a retém à coxa. Súbito, as forças me desertam. Tenho a sensação de que minhas fibras se dissociam umas das outras, decompõem-se...

Os uivos de uma ambulância chegam até mim, finalmente; pouco a pouco, os ruídos da rua retomam seu curso e, desabando impetuosos sobre mim, atordoam-me. Alguém se inclina sobre meu corpo, ausculta-o sumariamente e afasta-se. Vejo-o ajoelhar-se diante de um amontoado de carne carbonizada, tatear-lhe o pulso e depois fazer sinal aos padioleiros.

Outro homem vem tomar meu pulso, para logo deixá-lo cair... "Este já foi. Não há mais o que fazer..."

Quero retê-lo, obrigá-lo a repetir sua lição de casa; meu braço revolta-se, me renega. Mamãe, faz de novo a criança... Procuro minha mãe nesse caos... Só vejo pomares a perder de vista... os pomares do avô... do patriarca... uma terra de laranjais onde era sempre verão... e o menino que sonha no alto de uma colina.

O céu é de um azul límpido. As laranjeiras formam uma ciranda. O menino tem doze anos e um coração de porcelana. Nessa idade de todas as paixões, simplesmente porque a confiança é tão grande quanto suas alegrias, pensava poder tocar a Lua, como se estivesse bem ao alcance de sua mão, certo de que bastava querer para colher toda a felicidade do mundo... E agora, ali sob meus olhos, apesar do drama que acabava de enxovalhar para sempre a lembrança desse dia, apesar dos corpos agonizando na calçada e das chamas que terminam de devorar o carro do xeque, o menino dá um salto e, os braços abertos como as asas de um gavião, lança-se através dos campos onde cada árvore é uma festa feérica... Lágrimas me atravessam a face... "Quem te disse que homem não chora não sabe o que é um homem", confiou-me um dia meu pai, surpreendendo-me desfeito no velório do patriarca.

"Não há vergonha nenhuma em chorar, meu filho. As lágrimas são o que temos de mais nobre." Eu não queria largar a mão do avô, e meu pai ajoelhou-se à minha frente e tomou-me nos braços. "Não serve de nada ficar aqui. Os mortos estão mortos e se foram, em algum lugar purgaram suas penas. E os vivos são só fantasmas esperando sua vez..." Dois padioleiros me suspendem e me jogam em uma maca. Uma ambulância chega em marcha a ré, as portas bem abertas. Braços me lançam no interior da cabine, me atiram quase entre outros cadáveres. Em um último sobressalto, escuto a mim mesmo num soluço... "Meu Deus, se isso for um horrível pesadelo, faça com que eu desperte, já..."

Terminada a cirurgia, Ezra Benhaïm, nosso diretor, veio à minha sala. É um senhor atento e vivo, mesmo tendo passado dos sessenta e apesar da barriga nascente. No hospital, apelidam-no de sargento, por causa de seus modos de caporal, agravados por um humor em geral impróprio ou um tantinho atrasado. Mas nas horas difíceis é o primeiro a arregaçar as mangas e o último a abandonar o campo. Antes de eu me naturalizar israelense, ainda um jovem cirurgião, volvendo céus e terras para conseguir meu posto, ele já estava ali. Embora fosse à época um modesto chefe de serviço, usava do pouco de influência que lhe conferia o cargo para manter à distância meus detratores. Era difícil para um filho de beduíno juntar-se à confraria da elite universitária sem provocar uma reação de desgosto. Meus colegas eram todos uns judeuzinhos afortunados, a pulseira de ouro pendurada no pulso e o conversível na garagem. Olhavamme do alto e recebiam cada um de meus feitos como uma ameaça à sua posição. Assim, quando um deles me tirava do sério, Ezra não queria saber quem tinha começado; punha-se sistematicamente do meu lado.

Empurra a porta sem bater, me olha de esguelha, uma ponta de sorriso no canto dos lábios. É sua maneira de demonstrar satisfação. Depois, como girei minha poltrona para vê-lo de frente, ele tira os óculos, limpa-os com o avental e diz:

- Parece que você desceu ao limbo para ressuscitar o paciente.

- Ora, sem exageros.

Põe de novo os óculos no nariz de narinas ingratas, meneia a cabeça e, depois de uma breve reflexão, seu olhar retoma a austeridade de hábito.

- Vai ao clube esta noite?

- Não dá, minha mulher volta hoje.

- E minha desforra?

- Qual? Você não ganhou nem uma partida...

- Não está sendo leal, Amin. Sempre aproveita meus maus passes para marcar pontos em cima de mim. Hoje, que me sinto em forma, você cai fora!

Jogo-me contra o encosto de minha poltrona para vê-lo melhor.

- Quer que eu lhe diga uma coisa, meu pobre Ezra? Você não tem mais o pique de antigamente e eu não quero me aproveitar da situação.

- Não me enterre antes da hora. Vou conseguir derrubar você de uma vez por todas.

- Não precisa da raquete pra isso. Um simples pontapé bastaria.

Ele promete pensar no assunto, leva o dedo à têmpora numa saudação desenvolta e sai pelo corredor dando bronca nas enfermeiras.

Sozinho, tento refletir onde estava antes da intromissão de Ezra e lembro que ia telefonar para minha mulher. Pego o aparelho, disco o número de casa e desligo depois de sete toques. Meu relógio marca 13h12. Se Sihem pegou o ônibus das 9 horas, já deveria ter chegado há um bom tempo.

- Não fique inquieto! - surpreende-me a doutora Kim Yehuda invadindo meu canto.

E logo acrescenta:

- Eu bati antes de entrar. Você é que estava nas nuvens...

- Ah, desculpe, não vi você chegando.

Ela afasta minhas desculpas com uma mão altiva, vigia o movimento das minhas sobrancelhas e inquire:

- Estava ligando para casa?

- Não dá para esconder nada de você.

- E, claro, Sihem ainda não chegou...

Sua perspicácia me irrita, mas aprendi a lidar com ela. Conheço Kim desde a universidade. Não éramos do mesmo ano - eu estava três turmas à sua frente -, mas simpatizamos um com o outro desde os primeiros encontros. Era bonita e espontânea e não relutava em pedir ajuda a um árabe, quando os outros estudantes davam nós na língua antes de fazê-lo, mesmo o tal árabe sendo um brilhante e belo rapaz. Kim tinha o riso fácil e o coração generoso. Nossos flertes eram perturbadores de tanta ingenuidade. Sofri um bocado quando um jovem deus russo, recém-chegado de seu komsomol, veio roubá-la de mim. Bom jogador, não contestei. Depois, eu me casei com Sihem e o russo voltou para casa sem aviso prévio, assim que o império soviético foi desmembrado. Tornamo-nos excelentes amigos, Kim e eu, e nossa estreita colaboração teceu em torno de nós um halo de formidável cumplicidade.

- Hoje é a volta das férias - avisa-me. - As estradas estão lotadas. Tentou na casa da avó?

- Eles não têm telefone na fazenda.

- Ligue pro celular.

- Deixou em casa, de novo.

Ela abre os braços em sinal de fatalidade:

- Sem sorte.

- Pra quem?

Ela alteia a magnífica sobrancelha, e, com o dedo apontado para mim, me põe em guarda.

- O drama de certos bem-intencionados é que não assumem com coragem seus compromissos nem dão continuidade a suas idéias.

- É a hora então dos bravos - digo, levantando-me. - A cirurgia foi exaustiva e precisamos recuperar as forças...

Tomando-a pelo braço, empurro-a em direção ao corredor.

- Você na frente, belezura. Quero ver as maravilhas que leva atrás de você.

- Teria coragem de repetir isso na frente de Sihem?

- Só um tolo não muda de idéia.

A risada de Kim rutila pelo corredor como faria o brilho de uma guirlanda no meio de um asilo.

Ilan Ros encontra-nos no refeitório quando acabamos de almoçar. A bandeja repleta, instala-se à minha direita de modo a ter Kim a sua frente. O avental aberto na barriga pantagruélica e as bochechas escarlates, ingurgita primeiro três fatias de carne fria antes de limpar a boca num guardanapo de papel.

- Continua a procurar uma casa na praia? - pergunta-me num marulho voraz.

- Depende de onde.

- Acho que encontrei algo para você. Não muito longe de Ashqelon. Uma casa simpática com tudo de que se precisa para se desconectar do mundo.

Minha mulher e eu procuramos uma casinha à beira-mar já há um ano. Sihem adora o mar. A cada quinze dias, quando minhas folgas de fim de semana o permitem, pegamos o carro e corremos para a praia.

Depois de caminhar horas pela areia, alcançamos uma duna e contemplamos o horizonte até tarde da noite.

O pôr-do-sol sempre exerceu sobre Sihem um fascínio que nunca consegui entender inteiramente.

- Acha que dá pro meu bolso? - pergunto.

Ilan Ros solta uma risada curta que faz tremelicar como uma gelatina seu pescoço carmesim.

- Pelo tempo que você não enfia essa mão no bolso, Amin, acho que tem de sobra para se presentear com a metade dos seus sonhos...

Súbito, uma terrível explosão faz vibrar as paredes e tilintar as vidraças do refeitório. Todos se olham, perplexos; depois, aqueles que estão mais perto das janelas levantam-se para olhar para fora. Kim e eu corremos à janela mais próxima. No pátio do hospital, os que ali estavam, cuidando de suas coisas, mantêm-se imóveis, a cabeça voltada para o norte. A fachada do prédio da frente não nos deixa ver mais longe.

- Deve ser um atentado - diz alguém.

Kim e eu precipitamo-nos ao corredor. Já um batalhão de enfermeiras sobe do subsolo correndo em direção ao hall. A julgar pela importância da onda de choque, o lugar da explosão não deve estar muito longe.

Um segurança aciona seu rádio para inteirar-se da situação. Seu interlocutor declara que não sabe muito mais que ele. Tomamos de assalto o elevador. Uma vez no último andar, corremos ao terraço que cobre a ala sul do edifício. Alguns curiosos já estão ali, a mão em concha sobre os olhos escrutando o horizonte.

Olham para uma nuvem de fumaça que emerge a uma dezena de quarteirões do hospital.

- Vem do lado de Haqirya - relata um vigia em seu posto. - Uma bomba ou então um kamikaze. Ou talvez um ônibus emboscado. Estou sem informação. Tudo o que consigo ver é a fumaça que escapa do local alvejado...

- Melhor descer - diz-me Kim.

- Tem razão. Precisamos nos preparar para receber as primeiras vítimas.

Dez minutos depois, nacos de notícias daqui e dali dão conta de uma verdadeira carnificina. Uns dizem que um ônibus foi atingido, outros que um restaurante saltou pelos ares. O sinal de alarme ameaça explodir. É o alerta vermelho. Ezra Benhaïm decretou o acionamento da tecla de crise.

As enfermeiras e os médicos correm ao setor de urgências onde carrinhos e macas estão dispostos num carrossel frenético, mas ordenado. Não é a primeira vez que um atentado sacode Tel-Aviv, e os socorros são prestados na medida da necessidade com uma eficácia cada vez maior. Mas um atentado continua a ser um atentado. Com o tempo, pode-se aprender a gerenciá-lo com técnica, mas não com humanidade.

Comoção e medo não rimam com sangue-frio. Quando bate o horror, é o coração sempre o primeiro a ser atingido.

Vou, por minha vez, às urgências. Ezra está a postos, o rosto pálido, o celular grudado na orelha. Com a mão, tenta dirigir os preparativos operacionais.

- Um kamikaze explodiu em um restaurante. Vários mortos e muitos feridos - anuncia. - Evacuem as salas 3 e 4. E preparem-se para receber as primeiras vítimas. As ambulâncias estão a caminho.

Kim, que fora a seu consultório telefonar, me alcança na sala 5. É para lá que serão levados os feridos mais graves. Às vezes, quando o bloco cirúrgico não basta, fazemos as amputações ali mesmo. Com mais quatro cirurgiões, verificamos os equipamentos de intervenção. Enfermeiras azafamam-se em volta das mesas de cirurgia, lestas e precisas.

- Há pelo menos onze mortos - comunica-me Kim, procedendo à ligação dos aparelhos.

Lá fora as sirenes uivam. As primeiras ambulâncias invadem o pátio do hospital. Deixo Kim ocupar-se dos aparelhos e vou ao encontro de Ezra no hall.

Os gritos dos feridos ressoam pelo saguão. Uma mulher quase nua, tão grande quanto seu medo, contorce-se em uma maca. Os enfermeiros têm dificuldade em mantê-la quieta. Passa diante de mim, os cabelos eriçados e os olhos fora de órbita. Imediatamente depois, chega o corpo ensangüentado de um menino.

Tem o rosto e os braços negros como se saísse de uma mina de carvão. Tomo seu carrinho e conduzo-o de lado para liberar a passagem. Uma enfermeira vem me ajudar.

- Sua mão foi arrancada - ela grita.

- Não é hora de fraquejar - recomendo-lhe. - Ponha-lhe um garrote e conduza-o ao centro cirúrgico imediatamente. Não há um minuto a perder.

- Certo, doutor.

- Tem certeza que está tudo bem?

- Não se preocupe comigo, doutor. Eu me viro.

No espaço de quinze minutos, a sala das urgências transforma-se em campo de batalha. Não menos que uma centena de feridos ali se amontoa, a maioria jogada pelo chão. As macas estão repletas de corpos estraçalhados, crivados de estilhaços, alguns horrivelmente queimados. Choros e soluços atravessam o hospital. De tempos em tempos um grito domina a balbúrdia, anunciando o falecimento de uma vítima.

Um paciente me escapa entre as mãos, sem me deixar tempo de examiná-lo. Kim me anuncia que o bloco está saturado e que será preciso orientar os casos graves à sala 5. Um ferido exige que nos ocupemos dele imediatamente. Tem as costas esfoladas de uma ponta à outra e um pedaço da omoplata para fora. Não vendo ninguém socorrê-lo, agarra uma enfermeira pelos cabelos. É preciso três decididos soldados para fazê-lo largar sua presa. Um pouco mais longe, imprensado entre duas macas, um ferido urra, debatendo-se como o diabo. Termina caindo da maca de tanto agitar-se. O corpo retalhado, põe-se a dar socos no vazio. A enfermeira que está a seu lado parece perder o controle. Os olhos dela iluminam-se quando me vê.

- Rápido, rápido, doutor Amin...

Súbito, o ferido cai em torpor; os estertores, as convulsões, as patadas, seu corpo inteiro imobiliza-se e seus braços vergam sobre o peito, como os de uma marionete a quem se tivesse acabado de cortar os cordões. Em uma fração de segundo, sua fisionomia congestionada desfaz-se da dor e cede lugar a uma expressão demente, feita de um ódio frio e de desgosto. Quando me debruço sobre ele, ameaça-me com o olhar e retorce os lábios numa careta de ultraje.

- Não quero que um árabe toque em mim - repele-me com a mão raivosa. - Prefiro morrer.

Tomo-o pelo pulso e torço firmemente seu braço contra o flanco.

- Segure-o bem - digo à enfermeira. - Vou examiná-lo.

- Não me toque - insurge-se o ferido. - Não ponha suas mãos em mim.

Cospe-me. Sem força, sua saliva cai sobre o queixo, trêmula e elástica, enquanto lágrimas furiosas inundam suas pálpebras. Tiro-lhe o casaco. Seu ventre não é mais que uma pasta esponjosa que cada esforço comprime. Perdeu muito sangue e seus berros só fazem aumentar a hemorragia.

- É preciso operá-lo imediatamente.

Faço sinal a um enfermeiro para que me ajude a recolocar o ferido na maca e depois, afastando os leitos que nos barram o caminho, corro para o bloco cirúrgico. O ferido me encara raivosamente, com os olhos prestes a saltar da órbita. Tenta protestar, mas suas contorções esgotaram-no. Aterrorizado, vira a cabeça de lado, de modo a não me ver mais à sua frente, e abandona-se ao torpor que vai se apoderando dele.
 

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