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04/03/2006 - 02h20

Leia trecho do livro "A Neve do Almirante"

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da Folha de S. Paulo

Leia trecho de "A Neve do Almirante", de Álvaro Mutis, lançamento da editora Record. A edição impressa da Folha traz hoje resenha sobre o livro.




A Ernesto Volkening
(Antuérpia, 1908 - Bogotá, 1983)

Em recordação e homenagem
a sua amizade sem sombras,
a sua lição inesquecível.

N'accomplissant que ce qu'il doit,
Chaque pêcheur pêche pour soi:
Et le premier recueille, en les mailles qu'il serre,
Tout le fretin de sa misère;
Et celui-ci ramène, à l'étourdie
Le fond vaseux des maladies
Et tel ouvre les nasses
Aux desespoirs qui le menacent;
Et celui-là recueille au long des bords,
Les épaves de son remords.

ÉMILE VERHAEREN, Les pêcheurs

Quando achava que já tinham passado por minhas mãos todos os textos, cartas, documentos, relatos e memórias de Maqroll, o Gaviero, e que aqueles que sabiam de meu interesse pelas coisas de sua vida tinham esgotado a busca de vestígios escritos de sua desastrada errância, vi, quando menos esperava, que o acaso ainda me reservava uma curiosa surpresa.

Um dos prazeres secretos que meus passeios pelo Bairro Gótico de Barcelona me dão é o de visitar seus velhos sebos; a meu ver, não há livrarias tão bem abastecidas. Seus donos preservam as sutis habilidades, as intuições gratificantes e o saber contido que são virtudes do autêntico livreiro, espécie em vias de iminente extinção. Tempos atrás, resolvi vasculhar a rua de Botillers, e fui atraído pela vitrine de uma antiga livraria que está quase sempre fechada e oferece à avidez do colecionador peças realmente excepcionais. Nesse dia, estava de portas abertas. Entrei com sentimento semelhante ao que se tem quando se entra em um santuário de algum rito esquecido. Um homem jovem, com espessa barba negra de judeu levantino, tez de marfim e negros olhos aquosos, detidos em uma delicada expressão de assombro, atendia atrás de uma pilha de livros em desordem e de mapas que catalogava com apurada letra de outros tempos. Sorriu-me ligeiramente e, como bom livreiro de tradição, me deixou farejar as prateleiras, tentando se manter o mais desatento possível. Quando separava alguns livros que me propunha comprar, me deparei de repente com uma bela edição, encadernada em couro vermelho, do livro de P. Raymond que procurava havia anos e cujo título já é em si uma promessa: Enquête du Prévôt de Paris sur l'assassinat de Louis Duc D'Orléans, editado, em 1865, pela Bibliothèque de l'École de Chartres. Muitos anos de espera eram assim recompensados por um golpe da sorte sobre o qual há tempos eu não tinha mais ilusões. Peguei o livro sem abri-lo e perguntei o preço ao jovem da barba. Informou-me, mencionando o valor com o tom firme, definitivo e inapelável que também é próprio de sua altiva confraria. Paguei sem hesitar, junto com os outros já escolhidos, e saí para usufruir a sós minha aquisição com lenta e saboreada voluptuosidade em um banco da pracinha onde está a estátua de Ramón Berenguer, o Grande. Ao folhear o volume, notei que havia, preso à contracapa, um amplo bolso, destinado, originalmente, a guardar mapas e árvores genealógicas que complementavam o saboroso texto do professor Raymond. Em seu lugar, encontrei uma porção de folhas, em sua maioria cor-de-rosa, amarela e azul-celeste, com aspecto de faturas comerciais e formulários de contabilidade. Ao examiná-las de perto, me dei conta de que estavam cobertas por uma letra miúda, um tanto trêmula, febril, diria eu, traçada a lápis roxo, de vez em quando umedecido pela saliva do autor das apertadas linhas. Estavam escritas em ambas as faces, evitando, com todo cuidado, o que havia sido impresso originalmente, e pude comprovar que se tratava, de fato, de vários formatos da papelaria comercial. De repente, uma frase me saltou à vista e me fez esquecer a rigorosa investigação do historiador francês sobre o traiçoeiro assassinato do irmão de Carlos VI da França, a mando de João sem Medo, duque de Borgonha. No final da última página, lia-se, em tinta verde e em letra um tanto mais firme: "Escrito por Maqroll, o Gaviero, durante sua viagem rio Xurandó acima. Para entregar a Flor Estévez onde quer que esteja. Hotel de Flandre, Antuérpia". Como o livro tinha muitos grifos e anotações feitas com o mesmo lápis, era fácil inferir que nosso homem, para não se livrar destas páginas, preferiu guardá-las no bolso destinado a fins um tanto mais transcendentes e acadêmicos.

Enquanto as pombas continuavam tisnando a nobre estampa do conquistador de Maiorca, genro de El Cid, comecei a ler os desordenados papéis onde, em forma de diário, o Gaviero narrava suas desventuras, recordações, reflexões, sonhos e fantasias, enquanto enfrentava a corrente de um dos muitos rios que descem das serras para perder-se na penumbra vegetal da selva incomensurável. Muitos trechos estavam escritos com letra mais firme, e, por isso, era fácil deduzir que a vibração do motor da embarcação que levava o Gaviero era a culpada pelo tremor que, no princípio, atribuí às febres que nesses climas são tão freqüentes como rebeldes a qualquer medicamento ou cura.

Este Diário do Gaviero, assim como tantas coisas que deixou escritas como testemunho de seu contrariado destino, é uma mistura indefinível dos mais diversos gêneros: vai desde a narração superficial de fatos cotidianos até a enumeração de herméticos preceitos do que pensava ser sua filosofia de vida. Tentar corrigir-lhe a página teria sido ingênua presunção, e não traria nenhuma contribuição a seu propósito original de registrar dia a dia suas experiências nesta viagem, de cuja monotonia e inutilidade talvez o distraísse seu trabalho de cronista.

Parece-me, por outro lado, de elementar justiça que este Diário leve como título o nome do lugar onde Maqroll desfrutou por mais tempo de uma relativa calma e dos cuidados de Flor Estévez, a dona do lugar e a mulher que melhor soube entendê-lo e compartir a exorbitante dimensão de seus sonhos e o árduo emaranhado de sua existência.

Ocorre-me, também, que poderia interessar aos leitores do Diário do Gaviero ter a seu alcance outras notícias de Maqroll, relacionadas, de alguma forma, com fatos e pessoas mencionados em seu Diário. Por esta razão, reuni no final do volume algumas crônicas sobre nosso personagem - elas apareceram em publicações anteriores e me parece que aqui ocupam o lugar que de fato é seu.

Diário do Gaviero

Março 15

Os informes em meu poder indicavam que boa parte do rio era navegável até chegar ao pé da cordilheira, mas não é bem assim. Vamos em uma barcaça de quilha plana movida por um motor diesel que luta com asmática teimosia contra a corrente. Na proa, há um teto de lona sustentado por suportes de ferro de onde pendem redes de dormir, duas a bombordo e duas a estibordo. Quando há outros passageiros, eles ficam amontoados em metade da embarcação, sobre um piso de folhas de palmeira que protege os viajantes do calor emanado pelas placas metálicas. Seus passos ressoam no oco do porão com um eco fantasmagórico e grotesco. Paramos a todo momento para livrar o barco dos bancos de areia que se formam de repente e logo desaparecem, ao sabor da corrente. Duas das quatro redes são ocupadas por nós, passageiros que embarcaram em Puerto España; as outras duas são destinadas ao mecânico e ao prático. O capitão dorme na proa sob um guarda-sol multicolorido que ele vai girando conforme a posição do sol. Está sempre em uma semi-embriaguez, que mantém, sabiamente, ingerindo repetidas doses, de tal forma que jamais sai de um estado de ânimo em que a euforia se alterna com o torpor de um sono que nunca o vence por completo. Suas ordens não têm nenhuma relação com a trajetória da viagem e sempre nos deixam uma irritada perplexidade. "Ânimo! Coragem! Olho no vento! Vigor na luta! Fora as sombras! A água é nossa! Queimem a sonda!", e assim durante todo o dia e boa parte da noite. Nem o mecânico nem o prático dão a menor atenção a esta ladainha que, no entanto, de alguma forma os mantém despertos e alertas e lhes transmite a destreza necessária para driblar as infinitas armadilhas do Xurandó. O mecânico é um índio que parece mudo de tanto ficar calado e só se entende de vez em quando com o capitão em uma mistura de idiomas difícil de traduzir. Anda descalço, o torso nu. Usa calças jeans cobertas de graxa, amarradas sob o saliente e terso estômago; do umbigo, salta-lhe uma hérnia que se dilata e contrai à medida que seu dono se esforça para manter a marcha do motor. Sua relação com este é um caso claro de transubstanciação; os dois se confundem e convivem em um mesmo esforço: o barco deve avançar. O prático é um desses seres dotados de uma inesgotável capacidade de mimetismo; suas feições, gestos, voz e demais características pessoais foram levados a um grau tão perfeito de inexistência que nunca conseguem ficar gravados em nossa memória. Tem os olhos muito próximos do arco do nariz e só posso recordá-lo evocando o sinistro Monsieur Rigaud-Blandois de Little Dorrit [A pequena Dorrit]. Mas nem mesmo uma referência tão indelével serve por muito tempo. O personagem de Dickens se esfuma quando observo o prático. É um pássaro raro. Meu companheiro de viagem, no setor protegido pelo toldo, é um gigante louro que pronuncia algumas palavras mastigadas por um sotaque eslavo que as torna quase completamente indecifráveis. É tranqüilo e fuma sem parar os cigarros pestilentos que o prático lhe vende a um preço exorbitante. Seu destino, fico sabendo, é o mesmo que o meu: a fábrica onde se processa a madeira que descerá por este mesmo caminho e de cujo transporte supõe-se que eu me encarregue. A palavra fábrica faz a tripulação rir, mas eu não acho a menor graça e fico no desamparo de uma vaga dúvida. Uma lâmpada Coleman nos ilumina à noite; e nela se estatelam grandes insetos de cores e formas tão variadas que às vezes tenho a impressão de que alguém organiza seu desfile com um propósito didático indecifrável. Leio à luz das mechas de fio incandescente, até que o sono me derruba como uma droga repentina. A irrefletida ligeireza do duque de Orléans me ocupa por um instante e depois caio em um torpor implacável. O motor muda de ritmo a cada instante, nos mantendo em estado permanente de incerteza. Tememos que de um momento a outro pare para sempre. A correnteza se torna cada vez mais indomável e cheia de caprichos. Tudo isso é absurdo. Nunca saberei o que me levou a embarcar nesta história. Sempre acontece o mesmo no começo das viagens. Depois, vem a saudável indiferença que acaba curando tudo. Espero-a, ansiosamente.

Março 18

Aconteceu o que eu temia há tempos: a hélice chocou-se contra um fundo de raízes e o eixo que a sustenta foi torcido. A vibração se tornou alarmante. Tivemos que atracar em uma margem de areia de ardósia que exala um bafo vegetal adocicado e penetrante. Até conseguir convencer o capitão de que só endireitaria o eixo se o aquecesse, os homens passaram várias horas lutando para fazer manobras imprudentes e imprevisíveis em meio a um calor soporífero. Uma nuvem de mosquitos se instalou sobre nós. Por sorte, estamos todos imunes a esta praga, à exceção do gigante louro que suporta o ataque com olhar colérico e contido, como se não soubesse de onde vem o suplício que o acossa.

Ao anoitecer, apareceu uma família de indígenas; o homem, a mulher, um menino de uns seis anos e uma menina de quatro. Estavam todos completamente nus. Ficaram olhando a fogueira com indiferença de répteis. Tanto o homem como a mulher são extremamente belos. Ele tem ombros largos e seus braços e pernas se movem com uma lentidão que destaca ainda mais a harmonia das formas. A mulher, da mesma altura do homem, tem seios abundantes e firmes, e suas coxas terminam em pequenas cadeiras graciosamente arredondadas. Uma leve camada de óleo cobre todo o seu corpo e desvanece os ângulos das juntas e articulações. Os dois têm os cabelos cortados em forma de capacete que besuntam e mantêm sólidos com alguma substância vegetal que os tinge de ébano, e brilham com as últimas luzes do poente. Fazem algumas perguntas em sua língua que ninguém entende. Têm os dentes limados e pontiagudos e sua voz lembra o arrulho surdo de um pássaro adormecido. Já é noite quando conseguimos consertar a peça, mas ela só poderá ser colocada amanhã. Os índios capturaram alguns peixes perto da margem e foram comê-los em um canto da praia. O murmúrio de suas vozes infantis durou até o amanhecer. Fiquei lendo até conciliar o sono. À noite, o calor não cessa e, esticado na rede, penso longamente nas tolas indiscrições do duque de Orléans e em certos traços de seu caráter que se repetem em outros membros da branche cadette, sempre distintos, mas com as mesmas tendências à felonia, às aventuras galantes, ao nocivo prazer de conspirar, à avidez por dinheiro e a uma deslealdade permanente. Teria que pensar mais um pouco sobre as razões pelas quais tais constantes de conduta estão sempre, implacavelmente, presentes; elas vêm quase até os nossos dias, embora os príncipes tenham origens tão diferentes. A água golpeia o fundo metálico e plano com um borbulhar monótono e, por alguma razão que não consigo entender, consolador.

Março 21

A família embarcou na madrugada seguinte. Enquanto lutávamos debaixo d'água para fixar a hélice, eles permaneceram de pé sobre o chão de palmeiras. Ficaram ali o dia inteiro, sem se mexer, inteiramente mudos. Nem o homem nem a mulher têm pêlos em qualquer parte do corpo. Ela mostra seu sexo que brota como uma fruta recém-aberta e ele o seu com o longo prepúcio terminado em ponta. Parece um chifre ou uma espora, algo muito distante de qualquer idéia sexual e sem o menor significado erótico. Às vezes sorriem, mostrando seus dentes afilados e por isso seu sorriso perde qualquer matiz de cordialidade ou de simples convivência.

O prático me explica ser comum nestas paragens que os índios viajem pelo rio em embarcações de brancos. Não costumam dar explicações nem dizem jamais onde vão descer. Um dia desaparecem como chegaram. São de índole pacífica e nunca pegam nada que não lhes pertença, nem compartem a comida com o resto dos passageiros. Comem ervas, peixe cru e répteis que também não são cozidos. Alguns sobem armados com flechas cujas pontas estão embebidas em curare, o veneno de ação imediata cuja fórmula é um segredo nunca revelado.

Esta noite, enquanto dormia profundamente, invadiu-me de repente um cheiro de limo em decomposição, de serpente no cio, uma inhaca crescente, adocicada, insuportável. Abri os olhos. A índia me olhava fixamente, sorrindo com uma malícia que tinha algo de carnívoro, mas, ao mesmo tempo, era de uma inocência nauseabunda. Pôs a mão no meu sexo e começou a me acariciar. Deitou-se ao meu lado. Ao penetrá-la, senti como se estivesse afundando em uma cera insípida que, sem opor resistência, deixava que tudo se fizesse com uma imóvel placidez vegetal. O cheiro que me despertara era cada vez mais intenso pela proximidade do corpo macio que em nada lembrava o tato das formas femininas. Uma náusea irreprimível ia tomando conta de mim. Terminei rapidamente, antes de ser obrigado a me retirar para vomitar sem haver chegado ao final. Ela afastou-se em silêncio. Enquanto isso, na rede do eslavo, o índio, entrelaçado ao seu corpo, penetrava-o, emitindo um levíssimo chilro de ave em perigo. Depois, foi a vez de o gigante penetrá-lo, e o índio continuava com seus queixumes que não tinham nada de humano. Fui até a proa e tentei lavar-me como pude, procurando apagar a hedionda camada de pântano podre que aderia ao meu corpo. Vomitei com alívio. Até agora ainda me vem, de repente, ao nariz o hálito fétido que, temo, não me abandonará por muito tempo.

Eles continuaram ali, em pé no meio do barco, com o olhar perdido nas copas das árvores, mastigando sem cessar uma pasta feita de folhas parecidas com louro e carne de peixe ou de lagarto que capturam com notável habilidade. Ontem à noite, o eslavo levou a índia para sua rede, e hoje, ao amanhecer, o índio estava de novo dormindo abraçado sobre ele. O capitão separou-os, não por pudor, mas, como explicou com suas palavras embaralhadas, porque o resto da tripulação podia seguir o exemplo e isso traria, com certeza, complicações perigosas. A viagem, acrescentou, era longa, e a selva tem um poder incontrolável sobre o comportamento de quem não nasceu nela. Torna-os irritadiços e costuma levar a delírios não isentos de risco. O eslavo balbuciou uma explicação que não consegui entender e voltou tranqüilamente à sua rede depois de tomar uma xícara de café oferecida pelo prático, a quem, suspeito, havia conhecido no passado. Desconfio da obediente mansidão deste gigante, em cujos olhos às vezes surge a sombra de uma cansada e triste demência.

Março 24

Chegamos a uma ampla clareira da selva. Depois de tantos dias, acima aparecem, finalmente, o céu e as nuvens que se deslocam com aprazível lentidão. O calor é mais intenso, mas não nos aflige com a angustiante densidade que, sob o verde domo das grandes árvores, na penumbra constante, o transforma em um elemento que vai nos minando com implacável persistência. O ruído do motor chega diluído à parte de cima e a barcaça desliza sem que soframos o desespero de sua luta contra a correnteza. Algo semelhante à felicidade toma conta de mim. É fácil perceber que os outros também estão aliviados. Lá no fundo, começa a perfilar-se de novo a escura muralha vegetal que nos engolirá dentro de algumas horas.

Este agradável intervalo de sol e relativo silêncio foi propício ao exame das razões que me impulsionaram a fazer esta viagem. Ouvi pela primeira vez a história da madeira em A Neve do Almirante, a loja de Flor Estévez que fica na cordilheira. Eu estava vivendo com ela há vários meses, curando uma ferida em minha perna provocada pela picada de uma mosca peçonhenta dos mangues do delta. Flor cuidava de mim com um carinho distante, mas firme; à noite fazíamos amor, apesar do compreensível incômodo da minha perna imóvel. Havia, no entanto, um sentimento de resgate e alívio de infelicidades passadas que cada um de nós carregava como um fardo opressor. Creio que já falei da loja de Flor e de meus dias no páramo em relatos anteriores. Um dia apareceu, ao volante, o dono de um caminhão carregado de cabeças de gado compradas na planície. Ele nos contou a história da madeira que podia ser comprada em uma madeireira situada nos limites da selva e que, se fosse descida pelo Xurandó, podia ser vendida a um preço muito mais alto nos postos militares que estavam sendo instalados às margens do grande rio. Quando a ferida secou, e com o dinheiro que Flor me deu, desci à selva, sempre suspeitando de que havia alguma coisa incerta em todo aquele empreendimento. O frio da cordilheira e a neblina constante que corria como uma procissão de penitentes no meio da vegetação anã e lanosa dessas paragens me fizeram sentir a necessidade inadiável de mergulhar no clima ardente das terras baixas. Devolvi, sem assinar, o contrato que estava examinando para levar à Antuérpia um cargueiro de bandeira tunisiana que precisava de ajustes e modificações para poder transportar banana; limitei-me a dar algumas desculpas tolas que devem ter deixado intrigados seus donos, velhos amigos e companheiros de outras andanças e tropeços que algum dia merecerão ser lembrados.

Ao subir nesta lancha, mencionei a madeireira já citada, mas ninguém soube me dar uma idéia precisa de onde ficava. Nem mesmo se existia. Sempre me acontece a mesma coisa: os empreendimentos em que me envolvo têm o estigma do indeterminado, a maldição de uma astuciosa metamorfose. E aqui vou eu, rio acima, como um bobo, sabendo de antemão em que tudo isso vai dar: na selva, onde nada me espera e cuja monotonia e clima de toca de iguanas me fazem mal e entristecem. Longe do mar, sem fêmeas e falando uma língua de doidos. E, no entanto, meu querido Abdul Bashur, companheiro de tantas noites às margens do Bósforo, de tantas tentativas inesquecíveis de fazer dinheiro fácil em Valência e Toulon, está me esperando e pensando que talvez eu tenha morrido. O que me deixa mais intrigado é a forma como se repetem em minha vida essas frustrações, essas decisões equivocadas de início, esses becos sem saída que, somados, viriam ser a história de minha existência. Uma fervorosa vocação de felicidade constantemente traída, diariamente desviada e que sempre desemboca na necessidade de míseros fracassos, todos inteiramente contrários àquilo que, no lugar mais profundo e recôndito do meu ser, sempre soube que deveria concretizar não fosse por esta minha propensão a uma incessante derrota. Quem pode entender? Já vamos entrar de novo no túnel verde da selva preocupante e ameaçadora, já me chega seu cheiro de infelicidade, de morno sepulcro desabrido.

Março 27

Esta manhã, quando encostamos para deixar vários tambores de inseticida em uma rancharia ocupada por militares, os índios desceram. Fiquei sabendo, então, que meu vizinho de rede se chama Ivar. O casal se despediu da margem piando: "Ivar, Ivar", enquanto ele sorria com doçura de pastor protestante. Ao cair da noite, quando estávamos deitados em nossas redes e, para evitar os insetos, ainda não havíamos acendido a Coleman, perguntei-lhe em alemão de onde era, e ele me respondeu que de Pärnu, na Estônia. Conversamos até muito tarde. Trocamos recordações e experiências de lugares que eram familiares para nós dois. Como acontece tantas vezes, a língua revela de repente uma pessoa totalmente diferente da que imagináramos. Ele me dá a impressão de ser um homem extremamente duro, cerebral e frio, e de ter um desprezo absoluto por seus semelhantes, sentimento mascarado por fórmulas impregnadas de uma falsidade que ele mesmo é o primeiro a delatar. É um homem cheio de cuidados. Suas opiniões e comentários sobre o episódio erótico com o casal de índios constituem um verdadeiro tratado de gélido cinismo de quem já se afastou, não só do pudor ou das convenções sociais, mas da mais primária e simples ternura. Diz que também está indo para a madeireira. Quando a chamei de fábrica, começou a dar uma confusa explicação sobre as instalações, o que serviu apenas para mergulhar-me ainda mais no desalento e na incerteza. Ninguém sabe o que me espera nesse buraco ao pé da cordilheira. Ivar. Depois, durante o sonho, entendi por que seu nome me era tão familiar. Ivar, o grumete que morreu apunhalado a bordo do Morning Star, sacrificado por um contramestre que garantiu que havia roubado seu relógio quando desceram juntos para visitar um bordel em Pointe-à-Pitre. Ivar, que recitava parágrafos inteiros de Kleist e, nas noites de frio, vestia, cheio de orgulho, um suéter tecido pela mãe. No sonho, me acolheu com seu costumeiro sorriso cálido e inocente e tentou me explicar que não era o outro, meu vizinho de rede. Entendi no mesmo instante sua preocupação e assegurei que sabia disso muito bem e não havia confusão possível. Escrevo na madrugada, aproveitando o relativo frescor da hora. A longa investigação sobre o assassinato do duque de Orléans começa a me chatear. Neste clima, só os mais elementares e sórdidos apetites sobrevivem e abrem caminho no banho de imbecilidade que aos poucos nos invade, irremediavelmente.

Ao meditar um pouco mais sobre essas quedas recorrentes, esses dribles que vou dando no destino com a mesma repetida torpeza, percebo, de repente, que ao meu lado foi desfilando outra vida. Uma vida que passou perto de mim sem que eu percebesse. Ela está ali, continua ali, feita da soma de todos os momentos em que desprezei esse caminho alternativo, em que abri mão dessa outra saída, e assim foi se formando a cega corrente de outro destino que teria sido o meu e que, de certa forma, continua estando lá, nessa outra margem em que nunca estive, embora corra paralelamente à minha jornada cotidiana. Aquela me é alheia, mas arrasta todos os meus sonhos, quimeras, projetos, decisões que são tão meus quanto este desassossego que sinto e teriam podido conformar a matéria de uma história que agora transcorre no limbo do contingente. Uma história talvez igual a esta que me diz respeito, mas cheia de tudo o que aqui não foi, mas lá continua sendo, formando-se, correndo ao meu lado como um sangue fantasmagórico que me nomeia e, no entanto, nada sabe a meu respeito. Ou seja, que teria sido igual se eu também a tivesse protagonizado e a tivesse tingido com essa minha habitual e tola angústia, mas totalmente diferente no que diz respeito a seus episódios e personagens. Penso, também, que quando a hora derradeira chegar, será a outra vida que vai desfilar com a dor de alguma coisa totalmente perdida e desperdiçada, e não esta, a real e efetiva, cuja matéria não creio que mereça esse olhar, esse reexame final conciliador, porque não chega para tanto nem quero que seja a visão que virá para aliviar meu último momento. Ou o primeiro? Este é um assunto para ser pensado em outra ocasião. A mariposa enorme e escura que golpeia com suas asas peludas o vidro da luminária começa a paralisar minha atenção, me leva a um estado de pânico imediato, insuportável, alucinado. Espero, encharcado de suor, que ela desista de seus revoluteios ao redor da luz e fuja para a noite de onde veio e à qual de fato pertence. Ivar, sem nem perceber minha transitória paralisia, apaga a chama da lâmpada e desaparece no sono, respirando profundamente. Invejo sua indiferença. Terá, em algum lugar escondido de seu ser, uma brecha onde um pavor desconhecido está à espreita? Não creio. Por isso deve ser temido.
 

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