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01/07/2009 - 17h32

Zuenir Ventura discute a herança deixada pelo ano 1968 em livro; leia trecho

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da Folha Online

Zuenir Ventura marcou a literatura e o jornalismo ao lançar "1968: O Ano que Não Terminou", que retratava o ano que se tornaria um divisor de águas com as barricadas em Paris, a guerra do Vietnã e a luta pela democratização no Brasil. Escrito em 1988, o livro marcou época e serviu de base para a pesquisa da minissérie "Anos Rebeldes".

20 anos depois da publicação do primeiro volume, Ventura apresenta "1968: O que Fizemos de Nós" (Planeta, 2008). Diferentemente do primeiro, este procura observar as marcas deixadas pelos eventos do final da década de 1960. O que restou dos ideais daqueles jovens? O que terminou? O que não terminou? O que mudou ao longo de 40 anos?

Tratando o ano como um personagem, ao invés de simples marcação temporal, o autor traz depoimentos inéditos de Caetano Veloso, Fernando Henrique Cardoso, José Dirceu, Fernando Gabeira e Franklin Martins, entre outras personalidades para fazer um balanço da herança que deixaram.

Veja abaixo trecho do primeiro capítulo de "1968: O que Fizemos de Nós" : "Reflexos do Baile Distante".

*

Reflexos do Baile Distante
O que restou dos tempos de Leila Diniz para as que são avós hoje

Divulgação
40 anos depois, Zuenir Ventura analise o legado deixado por 1968
40 anos depois, Zuenir Ventura analise o legado deixado por 1968

Como eu ia dizendo... ou melhor, como eu disse há vinte anos na introdução de 1968 - o ano que não terminou, a história que eu ia contar começava com um baile de réveillon antecipando simbolicamente aquele carismático ano bissexto que ainda se recusa a sair de cena. A festa foi o capítulo inicial, uma espécie de trailer do que viria em seguida: uma mudança radical ou, como querem muitos, uma "revolução", talvez a única ocorrida naquele período que, politicamente, se pretendia tão revolucionário - a dos costumes.

Maria Clara Mariani, Marília Carneiro e Maria Lúcia Dahl são aquelas mesmas personagens marcantes do réveillon, do livro e do ano. Elas pertenciam a uma geração de jovens entre 20 e 30 anos que decidiu inaugurar um estilo de vida e experimentar formas alternativas de relacionamento que não reeditassem os compromissos matrimoniais impostos pelas convenções. Nada da hipocrisia dos velhos casamentos, nenhuma forma de dominação afetiva, não aos amores servis, fora com as imposições "burguesas" tais como ciúme, fidelidade, monogamia, virgindade. Eram tempos de utopia.

Quarenta anos depois, elas estão em torno dos 65 e são avós. Maria Clara não se casou de novo e tem sete netos; Maria Lúcia, atriz e cronista, voltou a se casar e a se separar, e tem dois netos; Marília é figurinista da tv Globo, teve dois casamentos e três netas. a ligação com a chamada "geração do milênio" permite às três acompanhar de perto as mudanças do tempo, sobre as quais aceitam estabelecer comparações, mas sem a pretensão de dar a última palavra.

Elas acham que 1968 terminou, mas continuam falando com carinho dele. Maria Lúcia ainda se diz "apaixonada", por ter sido o ano em que se decretou um "vamos parar de mentir", "vamos parar de fingir ser uma coisa quando somos outra". Segundo ela, "acabou aquela coisa de família com outra família escondida, de garçonnière para levar a amante, fingindo estar às mil maravilhas com a mulher". Maria Clara não tem certeza se isso acabou mesmo. Considera que o grande avanço se deu no terreno da liberdade pessoal, que pode ser exercida diante de uma grande variedade de opções. Dá o exemplo de uma amiga que tem três netas: uma é ambientalista radical e mora na Austrália; outra freqüenta raves; uma terceira faz faculdade de relações internacionais.

Já Marília prefere enfatizar o que é agora uma banalidade: poder se divertir. Divertir-se era, por exemplo, viajar, coisa que a profissão hoje lhe facilita. Naquela época, sentia inveja dos homens que viajavam. "Meus maridos sumiam no mato; agora posso sumir no mato. Quer coisa melhor?"

Maria Clara acha que a questão não era apenas poder se divertir, e sim não ter a vida pautada pelos outros. As meninas do século XXI, que podem passar as noites num botequim, acompanhadas ou sozinhas, não desconfiam de que houve uma época não muito distante em que no rio de Janeiro, cidade já com fama de liberal, uma mulher não podia freqüentar um bar sozinha. Maria Lúcia se lembra da atriz Tônia Carrero fazendo um escândalo porque não a deixaram entrar com uma amiga no Antonio's, no Leblon - e o Antonio's não era um reduto conservador, mas o point de Rubem Braga, Vinicius de Morais, José Carlos oliveira, Otto Lara Resende, entre outros representantes da fina flor da boemia intelectual carioca.

Não só ali era assim. No Bateau e em outros lugares mais ou menos metidos a besta também. Maria Clara conta da noite em que, saindo do teatro municipal, resolveu passar com uma amiga pelo real Astoria, também no Leblon. Elas puderam entrar, mas em compensação todos os olhares, surpresos, se voltaram para aquele acontecimento extraordinário: duas mulheres sozinhas num bar. Isso no popular RA, que não era lá essas coisas em matéria de freqüência.

Nem tudo avançou, porém. Se alguém perguntar às três o que há de pior em comparação com 68, elas citarão o individualismo - do tipo que "leva um a querer matar o outro para tomar o seu lugar", como definiu Maria Lúcia - e o que Maria Clara chama de "hegemonia da grosseria", ou, nas palavras de Marília, "grossura" mesmo. Para elas, acabou a delicadeza no trato entre as pessoas. Morreu o "Profeta Gentileza", um velho de barbas brancas tido como louco porque pregava pelas ruas do rio e de outras cidades o princípio de que "gentileza gera gentileza".

Contraditoriamente, esse traço de comportamento tão contemporâneo pode ter sido uma herança distorcida de 68. "Leila Diniz foi a primeira pessoa grossa que eu conheci", revela Marília, e aí começa uma discussão entre ela e a irmã Maria Lúcia sobre aquela que foi um emblema da liberação de costumes, pondo em prática o que as três teorizavam.

Maria Lúcia - ela era insuportavelmente grossa, e destoava da turma da gente. Em compensação, inventou aquela coisa bonita de abolir as batas, sair de biquíni grávida num tempo em que grávida usava burca.
Marília - ela foi uma pessoa importantérrima, Maria Lúcia.
Maria Lúcia - sim, mas ficar lá no fundo do Antonio's dizendo palavrão não tinha graça nenhuma.
Marília - Concordo que ela era extremamente malcomportada, mas tinha um lado solto muito simpático.
Maria Lúcia - o que eu achava simpático, engraçado, era ela tomar chope com a equipe da Globo no Bunda de fora.
Marília - ou então jogar sinuca. Foi a primeira menina a jogar sinuca, e agora minhas filhas jogam. Dentro do pacote Leila vinha a grossura, mas o pacote era muito maior e melhor.

Derivados ou não de 68, o fato é que alguns traços fortes de comportamento ficaram visíveis nestes últimos anos, como o despudor, o exibicionismo, a falta de recato. Por exemplo, o fenômeno das "garotas de programa". elas sempre existiram, mas com outro nome e outro status. Maria Lúcia viu na televisão "algumas calculando com quantos tinham que transar por dia para ganhar tanto por mês. Diziam ter ficado ricas". mas nada ilustra melhor o fim do pudor e da privacidade que as celebridades do showbizz que posam nuas para revistas masculinas. Fala-se muito dos pêlos púbicos lisos de uma atriz global e do modo como foram depilados, em forma de triângulo, que não se usa mais, e não como um bigodinho, que seria mais moderno.

Para quem achar pouco, existe a moda do "vibrador", um uso que parece estar se institucionalizando. Maria Lúcia diz que ouviu de uma personagem da novela das 8 esta afirmação: "Pra que homem, se eu tenho vibrador?". Marília informa que nos chás de panela é comum presentear a noiva com esses objetos fálicos que em tempos remotos, quando circulavam clandestinamente, eram chamados de "consolador" ou "consolo".
Agora, há vários modelos e desenhos, nacionais e importados. Alguns desses, por funcionarem a pilha, já foram retirados das bagagens de mão na alfândega, o que deve ter criado para as usuárias situações embaraçosas. Ou não. Afinal, é um sinal dos tempos. Mais um, numa sociedade em que a permissividade parece estimular não o contato, mas a solidão. Marília estranha, mas não por moralismo: "Já imaginou em 68, num chá de panela, você dar para uma amiga um vibrador?".

É inegável que o feminismo conseguiu avanços no campo profissional e no do relacionamento amoroso: as mulheres ampliaram o espaço no mercado de trabalho e conquistaram o direito ao prazer e ao uso do próprio corpo. Em compensação, continuam ganhando menos, e a violência doméstica permanece como um problema grave. As agressões são freqüentes, ainda que o número de denúncias tenha aumentado: 51% das pessoas ouvidas numa pesquisa disseram conhecer uma mulher que é ou foi agredida pelo parceiro.

Descasadas quando esse estado civil era um estigma, elas acham que, em comparação com aquela época, restaram poucos tabus, pelo menos no seu círculo de amizades. o aborto, por exemplo - uma questão de saúde pública que a sociedade não aceita sequer discutir e que cada vez mais é praticado clandestinamente -, vitimiza as camadas mais desprotegidas da população. Para a classe social a que pertencem as três, com acesso a todos os métodos de contracepção, a interrupção de uma gravidez "é uma decisão pessoal baseada em razões emocionais, profissionais, financeiras ou até ético-religiosas".

"Tabu atual", Maria Clara acrescenta com humor, "é não ter sucesso, não ser rico." As irmãs concordam, e Maria Lúcia conta que anda muito de ônibus: "quando encontro alguém conhecido, a pessoa esconde a cara atrás do jornal. Encontro o Country Club inteiro, e só falta eles se atirarem pela janela. engraçado que só os homens; as mulheres não, vêm conversar". E o politicamente correto? "ai, que saco!", suspira Marília. "Essa é a coisa mais chata que inventaram." Ela diz que fica "reativa" e até de fumar tem vontade, apesar de sofrer de asma. Já Maria Clara confessa que adorou a proibição de fumo nos locais públicos.

"Como sou superalérgica, passava mal nos lugares. minha vida melhorou muito."

E sobre virgindade, há algo a dizer? Soube que muitas meninas de 19-20 anos escondem que são virgens. Têm vergonha do atraso. "mas é para ter mesmo", comenta marília. "no trópico, isso é muito tempo." O tema está tão em desuso que o neto de maria Clara, de 12 anos, quando fala de virgindade, é de boca: "Bv", boca virgem, que nunca foi beijada.

Uma preocupação comum às três: os jovens das novas gerações lhes parecem meio sozinhos, voltados para si mesmos, alienados, individualistas, dependentes da internet. "ficam horas no msn", constata maria Lúcia. "Em vez de conversar com pessoas, preferem ficar falando com milhares de letrinhas." Por outro lado, os que já têm idade para transar demoram mais a sair da casa dos pais, ao contrário das avós, que desde cedo já moravam sozinhas ou com amigas. Um dado comprovado por pesquisas é que o quarto do rapaz na casa dos pais é o lugar preferido para a primeira transa - preferido pelos casais e pelos pais das duas partes interessadas, por ser mais seguro.

A insegurança, aliás, transformou as relações entre os jovens. A aids, pode-se dizer, acabou com a "revolução sexual", foi a contra-revolução. Fenômenos como o "ficar", em que as pessoas se beijam, mas não necessariamente chegam às vias de fato, têm muito a ver com isso, embora signifiquem também descompromisso. "Ficar", ensina Marília, "é como se dissesse: nada de telefonema no dia seguinte, nenhuma obrigação, não devo nada." "O pessoal beija, beija, beija e vai embora, ninguém transa", acrescenta
Maria Lúcia. Marília tem uma explicação: "transar, que no nosso tempo era uma coisa saudável, é hoje uma aventura perigosíssima. tem o risco de HP não sei o quê, uma hepatite não sei das quantas, esses vírus todos".

E usar camisinha - nós, homens, sabemos - é tão prático quanto calçar galocha, se é que alguém nesse novo milênio tem idéia do que se trata.

Outra mudança radical em relação a 68 é o desinteresse pela política. "Com razão", justifica Maria Lúcia. "Também eu não agüento mais. Do jeito que está, qual é a motivação?" Sem falar que essa garotada está encontrando um mundo em que até o planeta está ameaçado de morrer - de sede. E não num futuro distante, mas daqui a pouco. "A notícia de que em 2014 não vai ter mais gelo no pólo norte", lembra Maria Clara, "É uma ameaça mais concreta para eles: 2014 está a sete anos, a mesma distância, para trás, do bug do milênio, que foi ontem." E não seria a hora de terem como ideal salvar o planeta?, pergunta Maria Lúcia, que defende o ambientalismo como ideologia, até porque "foi a gente que começou isso. os hippies foram morar nas fazendas, em comunidades, preservando a natureza".

Maria Clara chama a atenção para uma novidade que nem todo mundo está percebendo: é a entrada na universidade de jovens vindos dos vestibulares comunitários. Eles entram nos primeiros lugares com as cotas, e lá dentro dão um banho em todo mundo. "Uma amiga, coordenadora de um departamento da PuC, me contou que eles são altamente qualificados. Já ouvi o mesmo em outros lugares. Essas pessoas vêm com uma garra que muitas vezes falta aos que já estão lá."

"Está aí uma mudança que nem 68 esperava", diz Marília. "Saiu de onde a gente não imaginava: da periferia e não da elite."

Vocês acreditam que 1968 mudou o mundo, como acha um escritor americano?

Marília - Acredito. Revolucionou os costumes.
Maria Clara - Só não concordo com a idéia corrente de que houve "espírito de sacrifício". As pessoas entraram porque acreditavam. Era um sacro ofício.
Maria Lúcia - Acho que mudou inclusive politicamente, porque contribuiu para acabar mais tarde com a ditadura. Tenho o maior orgulho de ter pertencido a essa geração.

Sua amiga e sua irmã também.

Para finalizar, como é ter 40 anos a mais?

Marília - Não tem a mínima graça. Quer dizer, a graça que tinha.
Maria Lúcia - Acho chatérrimo, se você quer saber. Do que eu gosto mesmo é dos meus netos, isso eu adoro, mas aí não é minha vida, é a vida deles.
Maria Clara - Estou com Caetano: a pior coisa é usar óculos.

*

"1968 - O que Fizemos de Nós"
Autora: Zuenir Ventura
Editora: Planeta
Páginas: 224
Quanto: R$ 37,50
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha.

 

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