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28/03/2006 - 02h00

Leia conversa entre Hector Babenco e Alan Pauls

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SILVANA ARANTES
Enviada especial a Buenos Aires pela Folha de S. Paulo

Na semana passada, o cineasta brasileiro de origem argentina Hector Babenco, 60, e o escritor argentino Alan Pauls, 46, encontraram-se no Café La Biela, no coração da Recoleta, um dos mais notórios endereços de Buenos Aires, para falar sobre "El Pasado" (o passado), romance de Pauls que Babenco levará ao cinema. As filmagens estão previstas para começar em julho, na capital argentina.

O ator mexicano Gael García Bernal fará o papel do protagonista, o tradutor Rímini. Antes do encontro com Pauls, que a Folha acompanhou, Babenco fez testes com atrizes, em busca da intérprete da principal personagem feminina, Sofía. A seguir, trechos da conversa entre o escritor e o cineasta.

Alan Pauls:

"Hector me surpreendeu completamente quando me sugeriu a idéia de fazer um filme com o romance. Como tudo o que eu escrevo, é um romance espessamente literário, onde a escrita é muito importante e com tantas camadas e dimensões que eu só o conseguia ver como um objeto hiperliterário. E acho os objetos hiperliterários difíceis de imaginar como filmes.

Normalmente pensamos em transformar em filmes romances que tenham uma intriga muito acentuada ou um mundo muito chamativo, espetacular, impressionante. Tenho a impressão de que meu romance é muito interno.

Eu não mudei de idéia [sobre a adaptação], ele [Babenco] é quem quer ver o romance em forma de cinema. Ainda é muito difícil para mim imaginar em que pode se transformar um livro meu quando levado ao cinema. É a primeira vez que isso vai acontecer. Mesmo quando escrevi roteiros para cinema foi difícil para mim imaginar o filme. Ou seja, sou basicamente um escritor, inclusive quando escrevo roteiros de cinema".

Hector Babenco:

"Não leio livros procurando uma história para fazer um filme. Leio porque minha primeira conexão com o mundo foi através da leitura. Comecei a crescer no momento em que a TV começava a se tornar popular. Acho que tivemos TV em casa pela primeira vez quando eu tinha uns 12 anos. Não cresci vendo televisão. Cresci vendo filmes e lendo.

Um dia, muito depois de haver lido o livro ["El Pasado"] eu me dei conta de que havia situações e momentos na vida deste personagem que, se fossem desenterrados do livro e estruturados, dariam um filme. Estou envolvido com essa história que senti que havia dentro do livro. Ainda não terminamos a versão final do roteiro, para poder dizer o que ele é exatamente. A gente nunca sabe exatamente por que quer fazer algo. Se soubesse, não teria tanta graça fazê-la".

Pauls:

"No livro e, pelo que sei do roteiro que Hector está escrevendo, também no filme, existe um narrador ou um olhar sobre o mundo que é o de Rímini. Mas o verdadeiro personagem central é Sofía, no sentido de que Rímini é uma espécie de olho que vê tudo, analisa tudo, esquadrinha tudo, reflete sobre tudo e, a rigor, o personagem que age, que movimenta, que se dispõe ao choque, que faz mudanças, que abre caminhos e transforma as coisas é Sofía, sempre.

Eu não planejei escrever o romance dessa forma. Para mim, o personagem principal era Rímini. Mas depois me dei conta de que mesmo o romance estando muito colado ao ponto de vista de Rímini e que apenas muito de vez em quando se atreva a contar coisas que acontecem sem ele, havia um movimento centrípeto em direção a Sofía, como uma espécie de tufão girando ao redor de um buraco. Nesse sentido, é como um buraco negro, algo de uma força tão fenomenal que é capaz de mudar tudo, mesmo sem aparecer ou abrir a boca.

Quando comecei a escrever, minha intenção era que a história se passasse ao longo de 20 anos e que cada capítulo fosse uma reaparição de Sofía na vida de Rímini, durante esses 20 anos. Ou seja, a história estava pontuada pelas intervenções de Sofia, como se o mundo não seguisse caso ela não aparecesse.

O romance tem um pouco desse movimento de uma panela que se remexe, sempre com o mesmo conteúdo. As mudanças são de consistência e a temperatura, enquanto você revolve o caldo ele fica mais ardente ou mais frio, mais espesso ou mais leve, mas os elementos são sempre os mesmos.

Pelo que li do roteiro, ele tem um pouco dessa idéia obsessiva. É um romance totalmente obsessivo --ele não vai para a frente, mas dá voltas ao redor da mesma coisa uma e outra vez. No cinema, funciona um pouco como uma fuga para a frente, ainda bem, senão seria insuportável. Mas acho que no roteiro há uma estranha combinação de fuga para a frente e obsessão, que é algo que me interessava muito".

Babenco:

"Depois de muitas idas e vindas, toda a saga [dos personagens] Riltse e Pierre-Gilles saiu. Levei um ano para aceitar a idéia de que tinha de renunciar a esse cordão narrativo. Quando tive que tirar, fui tirando aos poucos, deixando uns restos, mas aí a história não ficava em pé e decidi finalmente arrancá-la de todo, como se arranca uma sonda de uma uretra, arrrrgh, tchau.

Essa história obrigava a narrativa do filme a uma ação paralela. Ela só poderia ficar, se o filme ganhasse uma proporção mais pretensiosa e épica, na medida que ambas as histórias teriam de ter o mesmo peso. Seria um discurso sobre a arte, sobre a criação anônima , o destino da obra.

E a outra parte seria sobre o amor e suas conseqüências, sobre o sentimento amoroso --os compromissos, os pactos feitos pelos casais. Houve um momento em que não consegui segurar o peso das duas histórias [no roteiro]. Talvez em outras circunstâncias, em outro momento, com algum companheiro de viagem mais poderoso eu tivesse conseguido desenvolver isso com a riqueza que aquilo merecia e seria um filme muito maior e mais imponente, que lidaria com o gesto da criação artística e o destino da obra e com aquela coisa tão ínfima e aparentemente tão pouco importante que é o sentimento amoroso.

As pessoas falam muito de história de amor, mas isso aqui não é uma história de amor. É uma história da impossibilidade de deixar de amar".

Pauls:

"Tento dissimular minha dor [com a retirada de partes da história do livro do roteiro do filme]. Conheço cinema, sei como se escreve um roteiro e como se adapta um texto literário para o cinema, então me resignei rapidamente. Sabia que num romance como "El Pasado" seria necessário fazer uma cirurgia maior e que a primeira coisa que sofreria seria a história de Riltse, que na massa literária que é o romance, parece ser a história mais independente e móvel. Era então a candidata a desaparecer ou a ser muito reduzida.

Eu poderia sonhar com uma versão do livro para o cinema que durasse seis horas e incluísse absolutamente tudo, mas, ao mesmo tempo, sei que há algo aí de inevitável. Se eu resistir a isso... Preferi deixar o processo que Hector quisesse fazer em relação à adaptação. Quando se decide que o romance vai ser adaptado para o cinema, ele já se converte em outra coisa. É uma matéria-prima. Pretender impor o romance ao roteiro não é um bom caminho. Fiz um trabalho de resignação muito escrupuloso".

Babenco:

"O eixo principal que sustenta o livro está intacto. E a alma da história está preservada. O que se deixou para trás não são coisas que se perderam. São coisas que não eram necessárias para preservar a história do livro. Acho que o roteiro faz jus ao estilo e à radicalidade do livro. Em nenhum momento o roteiro trai o livro com nenhuma mundanalidade naturalista. É difícil falar, porque o filme ainda não foi feito.

Quando liguei para o Alan, ele disse que nunca havia pensado que alguém pudesse se interessar em filmar seu livro, o que é um sinal muito inocente e limpo por parte do escritor. Hoje em dia, a mecânica do mercado editorial está cada vez mais ligada à transformação da palavra em imagem, passando o livro para filme. Eu vi que tinha uma responsabilidade muito grande e tentei ser o mais fiel possível e não trair a alma, o encanto, o poder secreto do livro, o que seria banalizá-lo".

Pauls:

"Eu escrevo literatura quase contra o cinema. Como dizia Hector, a indústria editorial está cada vez mais ligada à capacidade dos livros de serem transformados em filmes. Acho que muitos livros já são escritos dessa forma, como quem descreve uma imagem que ainda não existe, mas que depois existirá.

Eu escrevo ao contrário disso --como se a imagem não existisse nem nunca fosse existir. O que existe é essa estranha espécie de imagem invisível que as palavras provocam quando alguém as lê. Mas essa imagem é totalmente contrária à do cinema, porque é sempre virtual, incerta, onde tudo é possível ao mesmo tempo. Rímini pode ter todas as caras do mundo. E quando ganha uma rosto específica, essa decisão de que seja um só rosto é inteiramente brutal e antiliterária.

Nesse sentido, por um lado Gael [García Bernal, ator que fará o papel de Rímini] me agrada muito, porque é muito bom ator e muito inteligente e, ao mesmo tempo, preciso encontrá-lo, para talvez começar a vê-lo como Rímini. Rímini é um personagem um pouco sem cara. Poderia ser invisível. É quase puramente um olhar, um ponto de vista. No limite, poderíamos pensar que todo o filme poderia ser uma subjetiva de Rímini".

Babenco:

"Fazendo testes com atrizes, sinto que sempre são elas que estão brilhando e ele está sempre passivo, receptor do encanto feminino, de qualquer índole. Ele é sempre uma espécie de instrumento dos caprichos, dos desejos das mulheres. Mas acho que nessa atitude há uma grande sabedoria.

Tenho dois ou três amigos e, analisando suas relações amorosas e vendo o comportamento deles no presente, vejo que esse é um modelo masculino existente, não é uma invenção. O que é realmente uma invenção, acho eu, é esse modelo do comportamento masculino que a mídia, em sua diferente paleta de personagens tem popularizado, tornado conhecido, seja do homem ciumento, seja do homem super-sexualizado, o homem belo, charmoso, o galã maduro.

Rímini é uma espécie de Peter Pan, tem algo de pequeno notável. Sua aparente fragilidade é um eterno contraponto à sua tremenda obsessão por Sofía. Acho que Sofía não é a única obsessiva. Acho que Rímini também é obcecado por ela, senão a teria matado, teria extrapolado o limite da normalidade e cometido um ato anômalo, no sentido que uma mulher que te rapta um filho, que te provoca uma morte, que atormenta de tal forma a sua vida somente é aceitável se você sente que, sem essa mulher, não poderia viver.

Há um lado doentio aí, ou de placebo. Ele poderia ter se livrado dela em algum momento. O livro provoca umas elipses e, quando você tenta imaginar o que ocorreu nessas elipses de tempo, percebe que não houve coisas diferentes porque o personagem não teve o vigor.

Acho que o amor verdadeiro é o que nunca morre dentro da pessoa, apesar de você estar feliz com outra pessoa e construindo algo novo, seja família seja relação, sejam descobertas, qualquer coisa. Isso não impede que haja outro amor vivendo dentro de você. E que não precisa ser alimentado de presença cotidiana. Não precisa que tenha uma continuidade física. É simplesmente deixá-lo viver dentro de você, que ele convive tranqüilamente com outros amores".

Pauls:

"Eu sempre pensei o romance como uma história de fantasmas. Primeiro, não era uma história de amor, no sentido de que o romance começava quando o casal se separava. É um romance sobre o que ocorre com o amor depois que ele aparentemente terminou. O resumo, entre aspas, do livro é que a relação termina e os dois amantes se convertem em fantasmas um para o outro.

Mas essa é a maneira pela qual o amor continua, não o modo como a relação termina. Eu sempre pensei a história assim, de dois ex-amantes que começam a se perseguir como fantasmas, que é a única forma que têm de existir, já que a relação terminou.

Mas, para mim e para o romance, essa existência fantasmagórica que eles têm é tão real quanto a das pessoas com quem eles vivem depois de sua separação. Não há nenhuma diferença de peso, de pressão, de realidade entre os fantasmas, ou seja, as pessoas que você amou, e as que você ama na atualidade. Nesse sentido, todo mundo é polígamo. Não vive só com a pessoa com quem está casado, mas também com todas as pessoas que amou, as que deixou, as por quem foi deixado. Gosto disso que Hector disse. Parece-me que é a alma do livro".

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