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03/06/2006 - 06h00

Leia o 1º capítulo de "O Outro Pé da Sereia", de Mia Couto

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da Folha de S.Paulo

Leia o primeiro capítulo de "O Outro Pé da Sereia", de Mia Couto, que está sendo lançado pela Companhia das Letras.

Capítulo um

A Estrela Enterrada

Moçambique, Dezembro de 2002

Em todo o mundo é assim:
morrem as pessoas, fica a História.
Aqui, é o inverso: morre apenas
a História, os mortos não se vão.

O Barbeiro de Vila Longe

- Acabei de enterrar uma estrela!

Foi assim que o pastor Zero Madzero se anunciou junto à cama de sua esposa, Mwadia Malunga. Lá fora, espreitavam os primeiros sinais de luz. A mulher, ainda emergindo do sono, sorriu e disse:

- Venha, marido, venha que eu lhe apronto um bom banho.

Olhou o homem em contraluz: parecia um fantasma, magro e sujo, carregando mais poeira que o vento do Norte. Um cheiro a queimado se espalhou na ensonada claridade do quarto.

- Trouxe os burros?

Ele acenou com a cabeça, como se estivesse bêbado. Quando Mwadia se aprontava para o encaminhar por entre as penumbras, o pastor deu um passo atrás e murmurou:

- Não me toque! Não me toque que tenho as mãos em fogo.

Só então a esposa reparou no brilho que emanava das mãos fechadas de Madzero. Lentamente, ele entreabriu os dedos, um por um, como se desfolhasse uma flor. Mwadia Malunga levou o braço ao rosto, incapaz de enfrentar a reverberação. A sua voz esgueirou-se num gemido:

- Meu marido, me confesse: você já morreu?

- Não, tudo isto vem da estrela, mulher.

- Mas qual estrela?

- A estrela que enterrei no nosso quintal.

Mwadia espreitou, receosa, pela janela. O amanhecer costumava ser um beijo no vidro de sua casa. Naquela manhã, porém, a luz era mais tensa que intensa. Foi então que ela viu a pá, espetada junto a um amontoado de areia. Enterrada na vertical, cumpria o serviço de cruz em campa rasa.

Saiu para o pátio, o marido seguindo-a em passos sonâmbulos. Em redor do tambor de água, ela juntou umas tantas latas enquanto o homem se ia despindo. Tinha sido sempre assim: o pastor recusava banhar-se sozinho. Um homem fica menos macho se passeia as mãos pelo seu próprio corpo. Era essa a crença de Zero Madzero. A esposa fazia de conta que acreditava.

Desta vez, como sempre acontecia, manchas de sangue iriam sujar a água que restava do banho. Ela nunca lhe perguntou porquê. A um homem não se perguntam certas coisas. Também ela, quando saltava a lua e lhe vinham os sangues, gostava de ser guardada em silêncio. Uma esteira diferente à entrada da porta: era o que bastava para Zero saber que esses eram dias interditos.

- Não gaste muita água, pediu Zero.

Mwadia sentiu os riscos abertos no pescoço do marido. Dizia-se que eram antigas cicatrizes de golpes de faca, de certa vez que quase o mataram. O pastor defendia que eram guelras, que metade da sua alma era de peixe e ele, quando dormia, descia às profundezas do rio e se embalava na corrente.

- Tem a certeza que não estava viva?

- Quem?

- A estrela.

- Estava morta. Quando tombou do céu, já vinha despedaçada.

O que restou, disse ele, era pouco menos que uns montes de lata incandescente. Uma lata voadora?, se admirou Mwadia. O pastor Madzero descreveu o mutilado corpo celeste: uns ferros brilhantes, mais amolgados que sucata tombada de uma desconstelação.

- Você tocou na estrela?

- Toquei, fiz mal.

- Mas porquê não resistiu, marido? Vê como não posso confiar em si?

- Eu queria aproveitar aqueles ferros, fazer um portão para o curral.

Ali estava a explicação. Não podia ser senão um castigo pela pretensão do burriqueiro em se apropriar de uma criatura celestial. As mãos se impregnaram de cintilações, dessas luzes que acendem os astros no fundo da noite.

- Me conte, meu marido. Conte tudo que lhe darei um banho de desencardir a alma.

Enquanto se deixava banhar, sob as demoradas carícias de sua esposa, o pastor Madzero não podia saber que longe, mais longe que o outro lado do mundo, uma mão nervosa viria a redigir a seguinte mensagem:

Comunicação interna, urgente

Um aparelho de espionagem usado pelos nossos serviços secretos desapareceu esta noite, algures no Norte de Moçambique. A aeronave não pilotada poderá ter sido abatida, o que confirma a suspeita de que forças terroristas estão actuando nessa região de África. A aeronave cumpria uma missão de reconhecimento militar quando, inesperadamente, se interrompeu o contacto com a base de apoio, localizada num porta-aviões estacionado no oceano Índico. Forças de segurança terrestres poderão ser enviadas para o território onde aconteceu o acidente para confirmar o destino do aparelho e as causas do seu desabamento. Desde os atentados do Quénia e Dar-es-Salaam que os nossos serviços de segurança mantêm a região sob estreita vigilância.

A melhor maneira de fugir é ficar parado. Lição que o burriqueiro Zero Madzero aprendera com a imbabala, a gazela dos matos densos. É a fuga da presa que engrandece o caçador. O ficar imóvel é o mais astuto modo de enfrentar o predador: deixar de ter dimensão, converter-se em areia no deserto. Desaparecer para fazer o outro se extinguir.

A melhor maneira de mentir é ficar calado. Lição que o burriqueiro não aprendera com ninguém. O silêncio não é ausência da fala, é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra. Por isso, Madzero só falou quando a esposa deixou de lhe pedir para contar a história do astro. Enquanto Mwadia lhe enxugava o corpo, o burriqueiro relatou as extraordinárias sucedências que a ele pareciam singelas, mas que iriam mudar o destino do seu lugar e da sua gente.

As lágrimas de Mwadia, ao escutar o relato de seu marido, não resultavam do que ele ia dizendo. Comovia-a, sim, o simples facto de Zero Madzero falar. Desde há anos que a sua voz se tornara tão episódica como se ele estivesse existindo por conta de um outro que já vivera. O homem calava cobras e lagartos. No silêncio, Zero se embalava, feito um pêndulo, pontual para lá e para cá.

- Estou a esquecer-me.

E oscilava como água na onda. A kapunda, essa túnica de algodão branco, sobrava-lhe nos ombros. A mulher suportava mal esse lento silenciar e, mais e mais vezes, o espicaçava para as falas:

- Então, marido, já não fala?

- Estou à procura das palavras...

Demorava-se, olhos rebuliçosos, à cata dos termos. No esforço, ele contava pelos dedos, como se palavra e algarismo se misturassem, informes, nos obscuros lamaçais de seu pensar. A esposa foi confirmando: o marido estava sendo atingido por uma estranha cegueira. Ele era invisual para palavras. Preocupada, ainda pensou: farei com que se alimente melhor. Quem come pouco, fala pouco. O prato encheu-se, não se encheram as falas. Zero se aproximava do próprio nome: ele se anulava, em ocaso de si mesmo.

Rosto velado, Mwadia torceu o pano com que lavava o marido e se deixou possuir pelo doce sabor do pranto. Só então ela prestou atenção ao que o marido contava, o surpreendente relato de ocorrências que iriam mudar o seu destino.

Naquela noite, como em todas as outras, Zero Madzero saíra para levar os burros e os cabritos a pastar. Preferia pastorear os seus bichos quando estava mais fresco e lá, ao longe, a fogueira da sua casa lhe indicava o único caminho em todo o universo. Devia ser quase madrugada quando ele olhou o firmamento como quem, na cidade, consulta o relógio. Eram horas de encaminhar os animais de volta a casa. Seus olhos ganharam brilho num silencioso agradecimento: só é olhado pelo céu quem olha para as estrelas. Nem o burriqueiro sabia o quanto, nos próximos tempos, ele seria contemplado pelos céus.

Apoiou-se no pau bifurcado que ele esculpira para que as cabras dessem à luz, em igual número, machos e fêmeas. O brilho em seu rosto era a única cintilância na aridez da paisagem. Naquelas esqueléticas paragens só chove quando os joelhos dos bois tocam o chão, as mulheres cantam e os homens rezam. Mas fazia tempo que não havia bois, há muito que as mulheres tinham emudecido e os homens perdido a crença.

Todavia, aquele lugar nem sempre fora um território isolado, longe do mundo, do outro lado do tempo. Há trinta anos --quando Zero Madzero nascera-- ali se espraiavam as chamadas mphalas verdes, as férteis colinas dos montes Camuendje. Converteram-se numa ilha esquecida quando se encheu a albufeira da barragem de Cahora Bassa. O Zambeze inchou e os riachos de Nkazi e Muzenguezi coalesceram, sepultando vales e terras baixas. Quando as águas subiram, os mais-velhos sorriram, satisfeitos. A Bíblia também está a ser escrita na nossa terra, diziam. Mas depois a inundação conteve-se e sobraram montes, cabeços e outeiros.

- Nem o dilúvio merecemos, resmungavam os velhos.

Nascemos para ser escolhidos, vivemos para escolher. Podia-se dizer de Madzero que era tonto mas, ao menos, ele escolhera viver nesse lugar de que se esqueceram os caminhos. Há anos que ele quase não cruzava com alma vivente. A única pessoa de seu convívio era Mwadia, essa que tinha corpo de rio e nome de canoa.

E era para reencontrar a sua esposa que o pastor agora apressava o passo. Queria regressar antes que fosse manhã. A última coruja já havia pousado, sinal de que a noite estava prestes a desvanecer-se. Daí a pouco, a esposa estaria despertando. O burriqueiro anteviu os grandes olhos da mulher e a savana se encheu de luminações como um pestanejar dos céus.

- Vou no caminho de ser Deus.

Arrependeu-se da ousadia do pensamento. Na igreja lhe ensinaram que Deus só é se é único, mais que único. Ele que apagasse a multidão de deuses familiares, essas divindades africanas que teimavam em lhe povoar a cabeça. Madzero era um "postori". Noutras palavras, ele era um crente da Igreja Apostólica, criada por John Marange em 1930. Não seria exactamente um caso de fé, pois o juízo de Zero não aguentava nem metade de crença. Ele aderira aos "vapostori" apenas porque, para ele, o nome soava como um aportuguesamento da palavra pastores, e não de apóstolos. A seita seria onde os pastores pobres como ele se reuniriam e evocariam o dia em que o planeta inteiro se converteria numa reverdejante paisagem.

Nos tempos de hoje, pouco restava da agremiação religiosa. Todavia, o burriqueiro mantinha-se um seguidor dos preceitos do finado Marange. Assim, até na doutrina ele se revelava bem distinto da maioria que frequentava a Igreja Católica. Madzero não era apenas diferente: ele gostava dessa diferença, trazia-a ao peito como se de uma medalha se tratasse. Cabelo sempre rapado, não bebia álcool, não fazia uso dos tambores nem das mbiras para convocar os espíritos.

Enquanto apressava o regresso a casa, Zero Madzero ergueu os olhos para a noite como se nela procurasse chão. De repente, o pastor se arrepiou: um ruidoso fogo rasgou os céus como um chicote de luz. Parecia um fósforo a ser aceso pelas mãos de Deus. Depois, foi a explosão. Madzero se apeou da alma, tal o susto. Parecia que o universo todo se estilhaçara. Sem pisar nem pesar, o pastor se ajoelhou. Seus lábios imploraram:

- Me salve, Deus! E acrescentou, em célere sussurro: E me acudam os meus deuses, também...

Fosse há uma dezena de anos e o pastor estaria seguro de que se tratava de um acto de guerra. Mas, agora, era impossível. A guerra era coisa do passado e o tempo varrera as cinzas e lavara as lembranças.

Decorreram viscosos instantes, enquanto o mundo reganhou ordem e silêncio. O burriqueiro viu, longe, uma silhueta ainda incandescente, afocinhada nas areias. E concluiu tratar-se de uma estrela-cadente. Ela se despenhara ali, com propósitos que se iriam ainda descortinar.

Acto descontínuo, assim que a poeira assentou, Zero Madzero foi ver dos burros e cabritos, seus únicos valores. Espreitou os graus do horizonte e os degraus do céu. Os cabritos não demoraram a despontar. Mas os jumentos nem vê-los. Tudo desarreado, cascos empoeirados, desapeados pelos vãos.

Só depois de muito chamamento é que os burros assomaram entre brumas e fumos, aproximando-se em passo resignado e com olhos de obediente tristeza. Por fim, estavam todos, completos, jumentos e caprinos. Os asnos, inquietos, agitavam as orelhas. Os cabritos, como sempre, caminhavam imperturbáveis. Cabrito é bicho que já viu o fim do mundo. Nada o surpreende.

Cambaleando na areia, o pastor se aproximou da estrela. O corpo celeste estava desfigurado, todo amassado, ainda chamuscando em fugazes labaredas. Zero se admirou do tamanho. Por certo era uma estrela em idade infantil, dessas que ainda tropeçam nos atalhos do firmamento. Tombara mesmo nas traseiras da casa, por pouco não acertara no tecto. Madzero, primeiro, levantou os braços a mostrar que não tinha culpa no acidente. Pobre como era, seria o único a receber punição. Permaneceu assim, de mãos erguidas, até estar certo de que não havia testemunha. Depois, cumpriu deveres de fé: cobriu a pobre defunta com umas pazadas de terra, balbuciando umas ininteligíveis palavras de encomenda a Deus.

Antes de entrar em casa ainda espreitou o céu. Seria aquela apenas a primeira de um chuvisco de estrelas? A savana iria sofrer uma inundação de luz, enchente de astros desamparados?

- Foi então assim?

- Foi, mulher. Sem tirar nem opor.

- Pois eu lhe digo, marido: temos que desenterrar essa estrela decadente.

- Porquê?

- No nosso quintal só os nossos é que plantamos, só os nossos de carne e osso.

O casal decidiu que, nesse mesmo dia, transladaria os restos imortais do corpo celeste. E os enterraria junto ao rio, no lugar do sagrado bosque. É lá que se sepultam as crianças.

Antes, porém, consultariam o curandeiro Lázaro Vivo. Não que essa consulta fosse do agrado de Mwadia, que ela não dava créditos àquilo que chamava de crendices. Nem Zero, se fosse coerente com os mandamentos dos vapostori, se prestaria a tais consultas. Quando olhou a sombra nos olhos do marido, Mwadia entendeu que aquele não era o momento para lhe requerer coerências.

Aliás, desde os tempos da Revolução que o velho Lázaro Vivo deixara de se apresentar como um nyanga. Ele era, agora, um conselheiro tradicional. Fosse qual fosse a sua oficial designação, o adivinho lhes daria a necessária permissão para entrar na floresta. Só isso, agora, importava.

Antes da visita a Lázaro, Zero Madzero teve ainda tempo para se deitar. Queria dormir, apagar o seu existir. Mwadia Malunga acariciou-lhe a fronte e ele se afundou no sono. A mulher voltou a espreitar a campa no quintal. Pobre Madzero, ele acreditava tratar-se de uma estrela. Não seria ela a desmenti-lo.

Mas a esposa sabia: aquilo que se vê no céu nem sempre são astros. Aprendera com o pai a distinguir os verdadeiros dos falsos corpos celestes. Esses outros, os enganosos astros, são barcos em que viajam os que não souberam morrer. A mulher sorriu: o que estava ali sepultado no quintal eram restos de uma desembarcação. Ela sabia de suas certezas: o seu nome, Mwadia, queria dizer "canoa" em si-nhungwé. Homenagem aos barquinhos que povoam os rios e os sonhos.

Depois, olhou a nascente madrugada como se procurasse um lugar vago nos céus. A lua ainda se destacava, lá no lusco-fusco. A Mwadia doeu-lhe uma súbita saudade da casa de infância. Chegou a escutar a voz de sua mãe, como se a lembrança fosse água tombando sobre água. Fixou aquela luz viúva e o seu olhar se embaciou. Esfregou o rosto, corrigindo tristezas, num gesto redondo:

- A lua hoje está cheia de pólen.

Não tinha passado uma hora: a mulher escutou o pastor gemendo. Ardiam-lhe as mãos. Ela chamou-o. Mas o homem se queixava dormindo, o pranto lhe emergia do outro lado da consciência. Mwadia teve medo de tocar nas lágrimas que escorriam pelo rosto do marido e encharcavam a almofada. Quem chora dormindo pode também rezar sem despertar. E, assim, ela encorajou o pastor:

- Isso, vá rezando, marido. Mas reze de sua maneira, você é um postori.

Os outros rezavam a Deus. Ele rezava com Deus. Os outros rogavam ao Criador. Madzero conversava com Ele, fazendo dele as Suas palavras.

A presença da esposa deve ter invadido o espírito do adormecido burriqueiro. Pois, segundo contou mais tarde, Madzero sonhou que as suas mãos se juntavam, duas chamas numa única fogueira. Em lugar dos dedos, lhe doíam dez pequenas labaredas. Foi então que outras mãos, feitas de água, se aconchegaram nas suas e aplacaram aquele incêndio. Eram as mãos de mulher. Seriam as minhas, adiantou-se Mwadia. Não. Aquelas eram mãos de mulher branca. E a mulher do sonho vaticinou:

- As minhas mãos são de água. Sou feita para a sede dos homens.

A voz ecoou na cabeça do pastor. As palavras o sacudiram por dentro. A voz tomava posse dele, usando a sua boca para falar:

- Eu sou a mulher.

- Está maluco, marido? Agora sonha que é mulher?

Foi o trespassar da gota. Nenhum homem no mundo se envaidecia tanto de ser macho. Zero Madzero puxava lustro da tradição viril dos seus antepassados: os Chikundas, bravos caçadores de elefantes, intrépidos viajantes do rio, lendários guerreiros. Como podia, agora, o seu homem se confessar mulher?

Mwadia sacudiu o marido, vestiu-o à pressa e o encaminhou pelos carreirinhos até ao topo do morro Camuendje. Seguiram por velhos e secretos atalhos, ocultos entre areias e cascalhos, por onde, durante séculos, os Chikundas conduziram missionários, exploradores e comerciantes de escravos e marfim.

Em Antigamente toda a noite é derradeira. Cada dia é tão custoso e espesso que parece carregar o último sol. Depois deste escuro, pensou Mwadia, já nenhuma outra luz haverá. Talvez tenha sido esse receio que a fez sorrir, aliviada, quando, já no topo do monte, avistou na distância as escassas luzes de Vila Longe.

Contornaram as grandes rochas de granito: nas traseiras daquele cabeço morava o adivinho Lázaro Vivo.

- Diga-me, marido: você quer mesmo consultar o conselheiro? E a sua igreja não proíbe as cerimónias tradicionais?

- A nossa igreja proíbe, mas, às vezes, a circunstância é maior que a situação.

O compadre Lázaro refugiara-se no monte Camuendje desde que a Revolução perseguira os curandeiros. Dizia-se que, agora, os tempos tinham mudado, mas Lázaro Vivo não facilitava. Quisessem incomodá-lo e deveriam atravessar vales e rios e vasculhar por entre as penedias da montanha.

Chegados à vedação, Mwadia bateu as palmas, em pedido de licença, enquanto Zero Madzero foi entrando pelo pátio do curandeiro. Espreitou pelos recantos e não viu ninguém. Mwadia procurou uma sombra e recostou-se, decidida a esperar à entrada do recinto.

Recordava-se bem de Lázaro Vivo, o adivinho. O homem se convertera numa figura mítica desde que, aquando do enchimento da albufeira de Cahora Bassa, ele se recusara a abandonar a sua velha casa.

- Fico a fazer companhia aos mortos, teimara.

Zero Madzero e Lázaro Vivo eram dois opostos: contrastando com a cabeça rapada do primeiro, o adivinho exibia longas e farfalhudas tranças; o burriqueiro vestia sempre uma camisa branca, o nyanga envergava uma túnica preta. Um e outro se colocavam em lados contrários do oculto: os feiticeiros trazem a chuva dos primórdios; os vapostori transportam o fogo do fim do mundo.

Um ruído alvoroçou Mwadia: era o nyanga que entrava em casa, vindo do mato. A mulher se espantou: o adivinho mudara de aparência dos pés à cabeça. As tranças deram lugar a um cabelo curto e penteado de risca, a túnica fora substituída por uma blusa desportiva. Debaixo do braço trazia uma tabuleta e foi assim, surpreendido e meio torcido, que saudou a visitante:

- Acabo de chegar de Vila Longe! Fui lá buscar esta tabuleta que mandei fazer para colocar aqui, na entrada do estabelecimento.

Colocou a tábua no chão de modo a que o letreiro se tornasse legível. Estava escrito: "Lázaro Vivo, notável das comunidades locais, curandeiro e elemento de contacto para ONGs". O riso de confiante orgulho não esmoreceu quando o adivinho perguntou:

- E Madzero, onde está?

- Já entrou, está aí no quintal.

- Ele está bem? É que, lá na Vila, dizem-se coisas.

- Zero só sai de noite.

- Pois ele que se acautele e se torne mais diurno. Dá azar um homem deixar de ver a sua própria sombra.

- Agora vá, compadre Lázaro: fale com Zero que ele está muito angustiado. Eu aguardo aqui fora.

A mulher regressava à sua condição de esposa: retirou-se, convertendo-se em ausência. Lá fora, ela se dedicaria à sua mais antiga vocação: esperar. As vozes, mesmo aguadas, lhe chegariam, ora distintas, ora enevoadas. Embalada, a mulher fechou os olhos, encurvou os ombros para reduzir o tamanho da sua sombra.

Lázaro Vivo fixou os olhos em Mwadia e suspirou longamente. Há uns anos talvez ele ensaiasse um tropeção de pestanas com Mwadia. Agora era tarde. Corrigiu o devaneio, acertando os chinelos nos pés como se, desse modo, espantasse pensamentos e rematou:

- Não fique aí, faça o favor de entrar.

Surpreendida, a visitante ainda reagiu. Mas o curandeiro insistiu, peremptório: aquilo não era um ritual, era apenas uma conversa sem demais implicações. A mulher acabou por aceitar e, timidamente, cruzou o pátio onde Zero Madzero já ganhara assento.

- Não contava que eu viesse, compadre Lázaro?, começou por inquirir Madzero.

O curandeiro espreguiçou-se demoradamente, como se entendesse expulsar o corpo de si mesmo.

- Os que me conhecem, sabem: gosto de surpresa, mas só quando sou avisado.

- Quer saber o que sonhei?, perguntou o burriqueiro, com voz pastosa.

Não. Era isso que ao curandeiro Lázaro lhe apetecia responder: que não, não queria que ninguém mais lhe contasse sonhos. Estava saturado. Já não suportava essa mentira que é o relatar dos sonhos. Porque nenhum sonho se pode contar. Seria preciso uma língua sonhada para que o devaneio fosse transmissível. Não há essa ponte. Um sonho só pode ser contado num outro sonho. Mas o curandeiro, amável, quase profissional, lá condescendeu:

- Conte. Conte lá esse seu sonho.

- Sabe uma coisa, Lázaro? Até tenho medo de contar...

- Medo?

O compadre Lázaro sabia: havia o sagrado e o segredo. Lázaro ficava com um, Zero ficava com o outro. Assim se expressou o pastor, entre nervosos risos. Falava apenas para afastar o silêncio. E depois, perguntou:

- Tem um beberico por aí?

- Mas vocês, os vapostori, não podem beber...

- Nós também não podemos estar aqui nas cerimónias. Um pecado perdoa outro.

- Bom, acho que sobrou uma cabanga. Com este calor, porém, já deve estar muito fermentada.
O adivinho arrastou o braço e tomou a garrafa pelo gargalo. Um líquido espesso e esbranquiçado foi tombando num copo de metal. Madzero, primeiro, entornou uns pingos no chão, a lembrar os falecidos. Depois, fechou os olhos enquanto sorvia a bebida. Desconhecia se o que lhe sabia bem era aquele dedilhar de prosa ou o adiar do assunto da consulta. Só agora notava o quanto lhe fazia falta conversar com gente humana. Não o palavrear ligeiro que, às vezes, destrocava com Mwadia. Mas conversa de macho para macho. Estalou a língua nos dentes a aprovar a qualidade da bebida.

- Fermentadinho é que é muito óptimo. E peço desculpa, compadre Lázaro, nem cumprimentei como deve ser. O senhor está bom, como vai a vida pessoalmente?

- Ora, eu continuo sempre na mesma: vou fazendo o favor de viver. Mas, agora, a minha vida vai mudar. Vejam só...

Lázaro dobrou o tronco para ir ao fundo do bolso e retirar algo que a Zero pareceu um pequeno rádio de pilhas.

- Um telemóvel, meus amigos.

Zero e Mwadia permaneceram impassíveis enquanto o outro agitava o minúsculo telefone como uma bandeira vitoriosa.

- Eu já estou no futuro. Quando chegar aqui a rede, já posso ser contactado para serviços internacionais. Entendem, meus amigos?

- Entre nós dois quem percebe é Mwadia.

Ficaram a olhar a tarde, calados. Como se o que esperassem fosse o próprio tempo. Madzero sabia: era falta de maneiras expor logo a sua aflição. Até porque Lázaro sempre dizia que não resolvia problemas. Ele dissolvia os problemas, que é uma forma superior de prestar ajuda.

- Mas, então, compadre: ficou-lhe a doer um sonho?

- O pior, Ba Lázaro, o pior não foi o sonho. O despertar é que foi um pesadelo.

- Explique-se, meu amigo, detalhe-se.

- Acordei todo cansado, ombro derreado. E as mãos, as mãos eram um incêndio.

O curandeiro ergueu-se com pesos que lhe vinham não do corpo mas da tardia hora da consulta. Postou-se rente ao queixoso e soprou como se trombeteasse o ar, semelhando o vozear de um paquiderme. Pediu a Zero que estendesse os braços. Com inesperado vigor, repuxou a manga da camisa para lhe descobrir o ombro magro. Depois, o curandeiro fungou ruidosamente como se a alma lhe escapasse pelas narinas. Debruçou-se sobre o pastor e farejou-lhe a omoplata. Num ápice, desviou o olhar e passou a mão pelo rosto, limpando invisíveis transpirações. Em seguida, cuspiu repetidas vezes, parecendo expulsar a alma aos retalhos.

- O que se passa, Ba Lázaro?, inquiriu Zero com o susto atravessado na garganta.

- Você andou carregando um peso toda a noite.

Madzero estranhou, sobrancelhas em arco. O nyanga adivinhava a queda e o enterro da estrela? A medo, o pastor perguntou:

- Peso? Que peso?

- Uma mulher.

- Uma mulher?

- Sim, meu amigo, uma mulher. E lhe digo mais: uma mulher muito quente.

- Isso não pode ser. Desculpe, mas não pode. Eu durmo sozinho. Mais do que sozinho, eu durmo com minha esposa.

- Veja, então! Veja essa marca! E lhe apontou um espelho para que ele espreitasse a sua própria omoplata.

- Marca de quê?

- Não está a ver? Isso é a marca de um seio. Um seio de mulher.

Seio deixa marca? Nem objectou, por respeito. Lázaro Vivo adivinhou-lhe a descrença. E voltou a levantar-lhe a manga, apontando para um sulco redondo sobre a pele.

- Isso, compadre, é a pegada de um seio. Mas também lhe digo: essa mama não é feita de carne.

Lázaro não tinha mais a dizer. Com um gesto vazio ordenou o fim da consulta. Madzero retirou-se confuso e abatido. O curandeiro desvariava. O burriqueiro só conhecia as belas e carnudas mamas de Mwadia. Era evidente que a marca tinha sido produzida pela estrela decadente que ele transportara e enterrara. Quem pode confundir mulher e estrela?

À despedida, o curandeiro enfrentou Mwadia, que permanecia calada, olhos no chão.

- E você, Mwadia, você não sonha?

- Eu? Ora, compadre Lázaro, eu nunca lembro o que sonho.

- Cuidado, minha filha, muita cautela: quem não vê os seus sonhos é porque está sonhando aquilo que está vendo.

- Não diga isso que me assusta.

- Espere um pouco, disse Lázaro, quero-lhe mostrar uma coisa.

Lázaro Vivo inclinou-se sobre a areia e arrancou uma planta pela raiz. Levantou a planta, virou-a ao contrário e pediu a Mwadia que contemplasse o recorte das raízes de encontro ao céu.

- Espreite bem: o que lhe parece essa raiz?

- Parece uma árvore, avançou com timidez.

Ele sorriu, confiante. Era a resposta que esperava. Sacudiu a raiz, espalhando areia húmida.

- Isto é você. Parece uma raiz. Mas é uma árvore que vive enterrada.

Mwadia despediu-se, cumprindo a vénia respeitosa. Depois, correu para acompanhar o marido que, entretanto, ganhara caminho. As enigmáticas palavras do curandeiro ecoavam na sua cabeça. Rapidamente decidiu esquecê-las. Assim que contornaram o cabeço rochoso ela perguntou ao marido:

- Não escutei tudo o que falaram: afinal, o curandeiro autorizou?

- Hein?

- Pergunto se Lázaro autorizou a nossa viagem à floresta.

O burriqueiro acenou afirmativamente. Depois, apressou o passo para que todos vissem que ele caminhava à frente da mulher, como era devido a um homem-macho. Mas logo ele se riu. Não havia ali ninguém para os ver passar. E o riso lhe foi murchando numa linha entristecida.

- Marido, me diga uma coisa: você não inventou toda esta história da estrela só para me fazer esquecer da sua promessa...

- Da promessa?

- Há quantos anos você anda a prometer que me vai tirar desta porcaria desta vida?

- Mas, Mwadia, você não desiste dessa ideia?

- Eu já não tenho motivo de viver, Zero. E você me prometeu que me matava de boa maneira...

- Eu ainda estou a pensar numa maneira.

- Ainda estou a pensar, ainda estou a pensar... pois pense rápido, que um dia ainda me acontece como essa estrela, e me despedaço dos céus.

Longe da família, sem filhos, sem chuva, naquele canto para além do mundo, Mwadia não era nem a árvore nem a raiz de que falara Lázaro. Ela era um arbusto definhado e seco. Toda a morte tem o seu quê de suicídio. Mwadia, porém, já não se considerava vivente. Por isso, para deixar de viver, já nem carecia morrer.

Segunda comunicação urgente e confidencial:

Aviões militares foram enviados para missões de reconhecimento na costa moçambicana a partir de bases navais norte-americanas no oceano Índico. O objectivo é recolher informações sobre o estranho desaparecimento de um aparelho de espionagem no Norte de Moçambique. Até ao presente, nenhum vestígio do aparelho foi detectado. A hipótese de um acto de sabotagem começa a tornar-se mais e mais plausível. Operações de busca no terreno foram sugeridas mas revelaram-se, à partida, difíceis de montar pela ausência de apoios logísticos na região.

Chegados a casa, Mwadia derramou a sua fadiga sobre a velha esteira. Zero puxou do banco para perto, sentou-se junto da esposa e olhou em redor, como se temesse algo. A mulher estranhou a proximidade e esperou o que viria a seguir. Nada veio. Zero se afundou na sonolência, a cabeça tombada sobre o ombro, deixando visíveis os sulcos na garganta.

Mwadia efabulou: a idade das girafas pode ser medida pelas cicatrizes no pescoço. São marcas de lutas de cortejo, despiques pela fêmea desejada. É assim que o amor se escreve na pele dos amantes. No caso do burriqueiro, porém, não era a caligrafia do amor. Era uma assinatura cega de quem escreve para nunca ser lido.

Em silêncio, Mwadia foi à varanda e desamarrou o nó que atava duas fitas de pano vermelho. Não corria brisa, as fitas tombaram, pesadas, no chão. Fazia anos que ela pendurava, de forma cruzada, os dois pedaços de pano na travessa de madeira que sustentava o tecto. Era um expediente contra a saudade que fazia justiça à sua fama de "inventadeira", como lhe chamavam na casa da infância. Nessa mesma casa, em Vila Longe, pequenas aves pousavam constantemente nos beirais. O lugar onde agora vivia, porém, não tinha céu para pássaros. Nos dias em que ventava, os panos estremeciam e eram duas asas de uma ave silenciosa, tão silenciosa como o marido, como os burros, como as pedras da paisagem.

Desta vez, Mwadia não se debruçou a apanhar os panos. Ficaram ali derramados, pobres inutensílios condenados à imobilidade do pó, como a estrela que, na véspera, tombara dos céus.
 

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